sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Lombadas, tachões (“tartarugas”), placas de sinalização e as cidades do interior

 

Em 2009 o Conselho Nacional de Trânsito/CONTRAN editou a Resolução 336 proibindo o uso de tachões ("tartarugas") transversalmente às vias públicas, como redutores de velocidade ou como sinalizadores.

O texto é claro: “É proibida a utilização de tachas e tachões, aplicados transversalmente à via pública, como redutor de velocidade ou ondulação transversal”. Outro dispositivo da resolução se refere à proibição dos tachões como sinalizadores.

Impedidos de continuar fornecendo tais “tartarugas” para as grandes cidades os fornecedores iniciaram um processo de venda para as prefeituras do interior do Brasil.

Para tentar mostrar esforço de disciplinamento do trânsito, ou por algum vício que incentive a contratação de tais produtos e serviços, prefeitos interioranos usaram e abusaram da colocação dos tachões. Há lugares em que até em ruelas estreitas foram colocados para separar a faixa de pedestre e a parte utilizada pelos carros, ainda quando o movimento de pessoas ou carros é ínfima.

Há um surto de tachões pelo interior, bem como sinalizações diversas. Há uma indústria que produz estes equipamentos em larga escala e comerciantes especializados em vender para prefeituras, não raro, dada a especificidade do produto, sem regular processo licitatório.

A questão envolve alocação de recursos públicos, estabelecimento de prioridades e lucros de quem vende e, talvez, de quem promove as aquisições.

As placas de sinalização de trânsito são outra festa. Vendedores e compradores de placas inventam placas que não estão no “Conjunto de sinais de Regulamentação” dispostos no anexo do Código de Trânsito, que não pode ser ampliado, sob pena de violação ao princípio da legalidade.

A questão da colocação dos tachões em cidades do interior, onde a sociedade civil é menos plural e os controles de legalidade e orçamentários são menos rígidos, talvez deva ser levada ao Ministério Público.

Sobre lombadas (quebra-molas), que somente podem ser instaladas excepcionalmente, como tratam os artigos 94 e 334 do Código de Trânsito, falarei mais detalhadamente em outra oportunidade.

Os quebra-molas, descumprindo os requisitos técnicos previstos na Resolução 600/2016 do CONTRAN, abundam pelas vias públicas e são causas de sérios danos aos veículos. Além da ilegalidade das colocações, quando não atendidos os requisitos técnicos para a instalação, há despreocupação com os prejuízos aos cidadãos.

Os danos causados aos veículos ou aos seus proprietários devem ser ressarcidos pelos colocadores de tachões e lombadas, conforme dispõe o § 3º do art. 1º do Código de Trânsito e § 6º do art. 37 da Constituição da República.

O Ministério Público não há de formular juízo sobre a conveniência e oportunidade de colocação das “tartarugas”, mas pode exercer controle sobre a legalidade da instalação, da aquisição, do custo, de eventuais satisfações de interesses particulares ou outros vícios violadores dos princípios que hão de orientar a atuação da Administração Pública.

sábado, 19 de novembro de 2022

Intervenção federal, intervenção militar e golpe

 

Desconsiderando a institucionalidade própria do Estado de Direito setores inconformados com a derrota eleitoral da última eleição presidencial acampam em frente aos quarteis pedindo intervenção federal. A exemplo de dezenas de outras intervenções na ordem interna, promovidas pelos militares desde a Proclamação da República, o que setores antidemocráticos desejam é um golpe de estado, de impossível ocorrência no presente momento.

Em 11 de novembro de 1955, o Marechal Henrique Lott promoveu um inusitado golpe para evitar um golpe contra o presidente eleito Juscelino Kubistchek e o vice João Goulart. O imbróglio da Novembrada é surreal. O golpe evitado pelo Marechal Lott, insuflado pelas “vivandeiras de quarteis”, foi adiado para 1964. Mas não eram as vivandeiras caminhoneiros ou filhas “solteiras” de militares preocupadas com suas pensões vitalícias transmissíveis às filhas e netas. Dentre elas estava o ignóbil coronel Mamede, orador de velório.

Legalista e conhecedor do seu papel no tabuleiro da democracia e da República, o Marechal Lott entregou o cargo ao senador Nereu Ramos, que decretou estado de sítio “para impedir o rompimento com a legalidade e instauração de uma ditadura, bem como para a manutenção dos quadros constitucionais vigentes”. Foi um golpe para manter a legalidade. Mas o marechal legalista pagou por isso. Quando faleceu em 1984, no estertor da ditadura empresarial-militar, negaram-lhe as honras militares devidas.

Em nenhum momento de nossa história republicana encontraremos na ordem legal a possibilidade de intervenção militar, salvo na vigência do AI-5, o que não impediu dezenas de intervenções militares.

A Constituição, em seu Art. 34, prevê a possibilidade de intervenção federal. A regra é da não intervenção, mas excepcionalmente pode a União intervir nos estados, nos seguintes casos: manter a integridade nacional; repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra; pôr termo a grave comprometimento da ordem pública; garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação; reorganizar as finanças da unidade da Federação que suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior ou deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei; prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial; assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: forma republicana, sistema representativo e regime democrático; direitos da pessoa humana; autonomia municipal; prestação de contas da administração pública, direta e indireta, bem como aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de Saúde.

A única possiblidade de intervenção federal é nos estados, nos casos acima, e nos municípios dos territórios caso voltem a existir. Inexiste a possibilidade de intervenção federal em órgão federal. Seria um contrassenso. Só um aloprado em surto psicótico poderia conceber a intervenção de uma esfera federativa nela mesma. Tampouco existe a possibilidade de intervenção de um Poder em outro. A Constituição dispõe que os Poderes são harmônicos e independentes. A harmonia decorre do desempenho de cada qual das suas respectivas competências e a independência decorre da desnecessidade de autorização de outro Poder para o funcionamento de qualquer deles.

O Art. 142 da Constituição, tão aclamado pelos golpistas, dispõe que as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. A requisição das Forças Armadas somente pode ocorrer por requisição de quaisquer dos Poderes da República para os fins previstos na Constituição.

As guardas municipais podem atuar nos limites determinados pelas leis municipais que lhe confiram e delimitem as atribuições. Os agentes patrimoniais municipais não podem intervir nos poderes locais. As polícias estaduais idem em relação aos governadores. Os agentes do sistema de segurança são funcionários submetidos à chefia dos respectivos poderes constitucionais a que estejam subordinados. De outro modo teríamos situação similar a do rabo que abana o cachorro.

Se os chefes de poder cometerem crime de responsabilidade podem responder por eles. Mas, perante os órgãos institucionais que a Constituição outorga poderes para o processamento e julgamento. Até os ministros do STF podem responder por crime de responsabilidade, se o cometerem. Mas perante o Senado Federal. Nunca por uma sentinela com arroubos de autoridade.

O que se conclama na porta dos quarteis são crimes contra o Estado Democrático de Direito e contra as instituições democráticas, assim definidos em lei.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 19/11/2022, pag 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/11/6525302-joao-batista-damasceno-intervencao-federal-intervencao-militar-e-golpe.html


sábado, 5 de novembro de 2022

Anistias: tiros na democracia

Proclamada a República por um golpe do Exército Brasileiro, os militares se arvoraram tutores das instituições. Em 1964 a intervenção militar não resultou em entrega do poder a um dos grupos em conflito. Ao contrário, instalaram a ditadura empresarial-militar que durou 21 anos, quando houve supressão das liberdades públicas, sequestros, roubos, estupros, desaparecimentos e torturas até de crianças para compelir seus pais a confissões ou aos pais na presença dos filhos. O AI-5 suprimiu o direito ao habeas corpus e o AI-17 punia os militares que não se alinhassem com aquele período de trevas e horror.

Diversamente do que ocorreu em países vizinhos, o Estado Brasileiro se anistiou dos seus crimes e os algozes da democracia se sentiram fortalecidos e crédulos de que podem novamente atentar contra a vontade popular, aferida pela Justiça Eleitoral. A transição para a democracia restou inacabada. Mesmos os crimes cometidos pela linha dura, após a Lei da Anistia de 1979, ficaram impunes. A autoria das bombas na ABI, na OAB e na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro jamais foram apuradas.

E, a bomba que explodiu no colo dos terroristas do Exército no Riocentro, em 30 de abril de 1981, não resultou em qualquer consequência para o capitão Machado que sobreviveu. O Exército o protegeu e o promoveu até o posto de coronel, no qual se reformou.

O que hoje emerge dos porões é resultado da inacabada transição para a democracia, que não desarticulou o aparato repressivo do Estado, nem responsabilizou quem deveria. Para contestar o resultado proclamado pela Justiça Eleitoral, sob a direção firme do ministro Alexandre de Moraes, promovem-se cerceamento do direito de circulação nas rodovias nacionais, além de outros atos definidos como crimes contra o Estado Democrático de Direito. Mas em pontos de bloqueio foram montadas barracas com comida, água e café. O movimento antidemocrático tem direção, organização e financiamento.

A frase “intervenção federal já” aparece em lugares distintos com o mesmo padrão gráfico. O bloqueio é feito pelo mesmo pessoal que se articulou desde o governo Temer e que criou as condições para a vitória eleitoral em 2018. A maioria dos caminhoneiros não se declara manifestante, mas impedida de trafegar. O golpe foi no passado. O que assistimos é o suspiro final de um projeto genocida, vencido pelas forças vivas da sociedade.

Já tivemos meia centena de anistias a militares que atentaram contra as instituições durante a República. Se quisermos que a democracia sobreviva e se fortaleça não poderemos ter mais uma anistia. Na Bolívia e EUA, os grupos que atentaram contra as instituições, com os métodos de Steve Bannon, estão presos. Pessoas autônomas agem livremente e arcam com as consequências de suas condutas. É a ética da responsabilidade.

Os que atentam contra a democracia no presente momento são os mesmos que atentaram no passado recente. É crime continuado. Não podemos anistiar e devemos apurar todas as ocorrências, notadamente a partir do início do ano de 2018. Naquele ano, alguns militares chegaram a propor que não houvesse eleição e que o mandato de Temer fosse prorrogado.

Ocorrida a intervenção federal na área de Segurança do Rio de Janeiro, com nomeação de um general-interventor para a função do governador e outro general para o cargo de secretário de Segurança, foi explicitado que o ato poderia se estender aos demais Estados. Menos de um mês após a intervenção no Rio de Janeiro, a vereadora Marielle Franco (PSOL) foi executada.

No Caso Riocentro os militares do Exército e da Polícia Militar do Rio de Janeiro deixaram as digitais no detonador da bomba. A execução de Marielle foi encomendada ao ‘Escritório do Crime’. É importante condenar os executores. Igualmente é necessário apurar quem mandou matá-la. Talvez cheguemos a motivações políticas daqueles que pretendiam induzir reação popular e terem pretexto para adiamento das eleições de 2018.

A versão de que poderia ser um recado para o deputado que presidira a CPI das milícias é cômoda, quando se sabe que pessoas mais próximas dele poderiam ser mais facilmente atingidas, se as milícias lhe quisessem mandar algum recado.

A facilidade com que operários em Angra dos Reis e as torcidas organizadas corintiana, ‘Gaviões da Fiel’, e atleticana (MG), ‘Galoucura’, desfizeram pontos de bloqueio demonstra que não eram os caminhoneiros parados os autores dos crimes contra a ordem democrática, mas poucos incapazes de qualquer reação. Tais crimes somente se perpetram com o apoio dos órgãos de Segurança pública.

O presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, assegura que os atos antidemocráticos serão apurados e punidos. Merece todo o apoio da sociedade. As responsabilidades precisam ser apuradas e não podemos ter mais uma anistia se quisermos o fortalecimento da democracia e das suas instituições republicanas. 

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 05/11/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/11/6517427-joao-batista-damasceno-anistias-tiros-na-democracia.html