sábado, 20 de maio de 2023

Rita Lee dialogou com os valores do seu tempo

A morte de Rita Lee nos deixa um vazio. Ela é o ícone de uma época. Com sua obra dialogou com as transformações sociais desde os Anos de Chumbo, na década de 1970. A primeira vez que ouvi falar dela, foi em 1975, ano do lançamento do disco Fruto Proibido. Eu ainda não tivera a atenção despertada para ela. Mas um colega de escola ouvira, numa pregação religiosa, repúdio ao seu estilo e à banda Tutti Frutti, cujos integrantes viviam numa casa à beira da represa de Ibiúna, onde compunham.

A mãe do meu colega, uma senhora religiosa, endossava orgulhosa tudo o que o filho falava. Ela tinha outros filhos, mas aquele era o prodígio defensor dos valores familiares. Era um menino radical na defesa de Deus, da pátria e da família. O menino discursava sobre sexo, drogas e Rock´n Roll como se soubesse do que falava, tal como alguns pregadores mirins neopentecostais da atualidade. Nas bifurcações da vida cada um de nós seguiu um caminho.

Quando o reencontrei, ele continuava inquieto com o que considerava pecados do mundo. Perguntei pelos seus irmãos e pela sua mãe. Ele disse que ela desaparecera. Isto me impressionou. Ele me apresentou Rita Lee, que passei a admirar, e o desaparecimento de pessoas, que me assombra até hoje, notadamente depois que estudei o tema e passei a atuar em defesa da dignidade da pessoa humana. De vez em quando recordava dele e dos irmãos que não sabiam o paradeiro da mãe.

Em data recente o reencontrei nas redes sociais. Ainda assombrado com o desaparecimento de sua mãe, perguntei por ela. Ele disse que ela reaparecera. Nada mais falou, nem quis assunto comigo. Falei disto para uma amiga comum. Minha amiga começou a rir e disse que a senhora havia efetivamente desaparecido, mas não em situações trágicas como eu supunha. Mas que havia deixado para trás, na pequena cidade em que vivíamos, o marido e a penca de filhos e fugido com um médico, por quem se apaixonara.

A referência que me veio à memória foi o diálogo da personagem de Nicole Kidman com o personagem de Tom Cruise no início do filme ‘De Olhos Bem Fechados’, de Stanley Kubrick, onde narra para o marido o desejo por um desconhecido que avistara: “Na praia, passei o dia inteiro perdida em devaneios. Se ele me chamasse — julguei então —, não teria podido resistir. Acreditava-me capaz de tudo, pronta a abrir mão de você, da criança, de meu futuro; acreditava estar já decidida e, ao mesmo tempo — será que poderá me entender? —, você me era mais caro do que nunca”.

Aquela mãe que aplaudia o precoce conservadorismo do filho, que aos 12 anos repetia como um papagaio os sermões religiosos, também tinha seus desejos e para reprimi-los condenava Rita Lee, que fazia sucesso cantando “Ovelha Negra” e “Luz del Fuego”, além de outras músicas compostas em parceria com Paulo Coelho.

Em 1980, um programa numa TV aberta pretendia se comunicar nas manhãs com as donas de casa. Não era um programa de culinária. Nele se falava de tudo, notadamente de sexo. O programa era apresentado pela sexóloga Marta Suplicy, pelo estilista Clodovil Hernandez, por Marília Grabriela e por Ney Gonçalves Dias, além de outros. A abertura do programa mostrava os bastidores da TV, com apenas mulheres no controle, embalado pelo som da música "Cor-de-rosa Choque", de Rita Lee.

Rita Lee fez mais pelas sadias relações sociais que muitos discursos, teses ou manifestos. Ela era um manifesto. Era cantora, compositora, multi-instrumentalista, apresentadora, escritora e ativista. Participou de importantes revoluções no mundo da música e da sociedade. Suas canções, evocando a felicidade e o bem viver são recheadas de ácida ironia e com reivindicação de independência e liberdade, o que se depreende das mais populares: “Ovelha Negra”, "Mania de Você", "Lança Perfume", “Agora Só Falta Você”, "Baila Comigo", "Banho de Espuma", "Desculpe o Auê", “Erva Venenosa”, "Amor e Sexo", "Flagra" e "Doce Vampiro".

Num país marcado pelo militarismo, onde perduram as pensões para filhas “solteiras”, justiça própria para julgar seus crimes, regime de previdência próprio e rede hospitalar própria custeada por toda a nação, apenas o seu nome traz esta referência, sem contaminar sua biografia. Seu pai era descendente de imigrantes estadunidenses confederados do Alabama e Tennessee estabelecidos em Santa Bárbara d`Oeste em São Paulo e o nome composto lhe atribuído, bem como às suas irmãs é uma homenagem ao general Lee, comandante vencido na Guerra Civil Americana ou Guerra de Secessão.

Ela desafiou a sisudez do regime empresarial-militar e contribuiu para uma nova concepção da realidade. Em sua apresentação em Aracaju, em 2012, a artista se mostrou indignada com a violência policial contra os meninos que assistiam ao seu show. Revoltada, denunciou, protestou e xingou os que praticavam a arbitrariedade. Processada, a ação com pedido de danos morais, ajuizada por 35 policiais de Sergipe, foi julgada improcedente. Rita Lee não foi apenas a Rainha do Rock Nacional. Ocupou lugar dentre os defensores das liberdades públicas; foi vanguarda das liberdades e do bem viver.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA em 20/05/2023, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/05/6635788-joao-batista-damasceno-rita-lee-dialogou-com-os-valores-do-seu-tempo.html


 

sábado, 6 de maio de 2023

Não é mera falsificação, nem foram 20 centavos


Reducionismo é uma tendência consistente em abreviar fenômenos complexos, analisando-os e explicando-os exclusivamente por um dos seus componentes mais simples. As insatisfações manifestadas quando das Jornadas de Junho de 2013 foram interpretadas por muitos como oposição ao aumento das passagens do transporte público em vinte centavos. Revogados os aumentos e mantidos os protestos imputaram-lhes qualidade de manifestações orquestradas contra governantes específicos. Desconsideram-se as reais razões do descontentamento e abriram-se as portas para os que prometiam soluções simples para os problemas complexos.

O moralismo absorveu o discurso institucional e político e a difusão de fake news serviu de escada para a ascensão da ignorância audaciosa. A internacionalização da Economia e a crise globalizada tem propiciado redução da qualidade e expectativa de vida, difundindo mal-estar. O capital internacional que entrou no país e prognosticou determinada taxa de rentabilidade não aceita receber menos que o programado.

Daí a redução dos postos de emprego, achatamento de salários, precarização do processo produtivo e outros meios para manter o lucro esperado, ampliando a desigualdade social, desconsiderando o princípio da dignidade da pessoa humana e impedindo a realização dos direitos fundamentais e sociais, esculpidos na Constituição, dentre os quais Educação, Saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.

A democracia é a força política do número. E se propositadamente parcela da população é afastada do direito à Educação fica sujeita à incompreensão dos valores que permeiam as relações sociais e que são marcos de civilidade, convertendo-se em presa fácil para o oportunismo. Num cenário de insatisfação, incompreensão e conflito o campo se torna fértil para os propagadores de soluções simplistas a exemplo do que o mundo experimentou na primeira metade do século XX na Itália fascista e Alemanha nazista.

As instituições foram criadas para dar referência de ordem, e não para impô-la, e reduzir as incertezas do futuro. Dos chefes dos poderes do Estado exige-se tenham paixão pela causa pública, sentimento de responsabilidade e senso de proporção na tomada de decisões. Imbróglios institucionais, por vezes decorrem de excessiva paixão no exercício do poder e ausência de sentimento de responsabilidade, acarretando falta de proporcionalidade nas decisões estatais.

Dispõe a Constituição que os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. A imunidade, no entanto, se destina ao fiel exercício do mandato, visando a realizar os objetivos fundamentais da República, quais seja, construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A imunidade parlamentar não pode ser utilizada contra tais objetivos. E, se for tentada a violação, cabe aos demais poderes o exercício do controle. Dispõe também a Constituição que compete privativamente ao Presidente da República conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei.

O juízo sobre a necessidade ou não de consulta aos órgãos instituídos por lei é uma faculdade do presidente da República. Mas, seja mediante prévia consulta ou dispensando-a, deve o chefe do poder político - no exercício de suas funções - subordinar-se aos interesses da sociedade e aos princípios que norteiam os atos da Administração Pública, dentre os quais, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. A conduta dos administradores públicos ou chefes de poder visando a caprichos ou atendimentos de interesses pessoais de aliados ou correligionários torna o ato praticado inválido.

Monteiro Lobato disse que “uma nação se faz com homens e livros”. O autor chamava a atenção para a importância da leitura na construção de uma identidade social e desenvolvimento de um país. Mas já tivemos na elite política brasileira quem acreditasse que “livros têm muita coisa escrita”, denotando o desprezo pela Ciência, pelo conhecimento e pela Cultura, indispensáveis ao processo de socialização.

O resultado não poderia ter sido outro que não o rodeamento por quem igualmente não tinha apreço pelos valores fundamentais à sociedade e que eram capazes de atos vis, tais como pequenos falseamentos e vilipêndio a memória de vítima de assassinato. A pequena falsificação, por vezes, apenas demonstra a estatura de quem a pratica, de quem a ordena, tolera ou dela tira proveito.

Maquiavel, no seu livro O Príncipe, dedicou um capítulo aos auxiliares dos governantes e disse que “a primeira opinião que formamos de um príncipe e da sua inteligência estriba-se na qualidade dos homens que o circundam”. É isso!

 

Publicado originariamente no dia 06/05/2023 no jornal O DIA, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/05/6626436-joao-batista-damasceno-nao-e-mera-falsificacao-nem-foram-20-centavos.html