sábado, 26 de agosto de 2023

A volta da gratificação faroeste


 

Na próxima segunda-feira, dia 28, pela manhã, ocorrerá, na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio de Janeiro, um debate intitulado 'Direito à Vida: Reparação da Escravidão Negra X Política de Extermínio'. O termo "política de extermínio" foi cunhado em 2007, após as primeiras duas chacinas ocorridos à luz do dia: a do Alemão e a da Coreia. Antes, as chacinas ocorriam nas noites ou madrugadas. Naquela oportunidade, a sociedade civil, indignada, se mobilizou e redigiu um manifesto que foi lido, publicamente, na Fundição Progresso, e entregue a um observador da ONU, que veio ao Brasil analisar as ocorrências.

Atrás de pesados óculos, o então secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, declarou que o manifesto era míope e que seria mantida a política que ele dizia ser "política de confronto". Daquele modelo surgiram as UPPs e todos os seus desmandos, bem como as ocupações militares das favelas e bairros da periferia, responsáveis pelo retorno dos militares das Forças Armadas à política nacional, desde que dela foram afastados após os 21 anos de ditadura empresarial-militar.

Entre 1995 e 1998, o governador Marcello Alencar, por proposta do então secretário de Segurança Pública, general da reserva e deputado federal Nilton Cerqueira, editou o decreto estadual 21.753/1995, que estabeleceu o que ficou popularmente conhecido como "gratificação faroeste". A gratificação iniciou em maio de 1995 e garantia o "pagamento por mérito" de 50% a 150% do salário a policiais que se envolvessem em confronto.

Tratava-se de uma gratificação aos policiais que participassem de operações "demonstrando alto preparo profissional ao agirem com destemida coragem para alcançar o sucesso das missões", ou seja, era o prêmio pela política de extermínio e ganhava mais quem mais letalidade proporcionasse. Tal política igualmente acentuou a morte de policiais em serviço. A prisão legal do criminoso não era premiada, mas o confronto sim.

No governo anterior, de Leonel Brizola, a gestão da política de segurança era voltada para a defesa dos direitos humanos, tanto dos cidadãos quanto dos policiais, e foi criticado pela banda podre das instituições. O general Cerqueira, instituidor da "gratificação faroeste", foi quem chefiou a operação da qual resultou a morte de Carlos Lamarca durante a ditadura empresarial-militar. Diziam as autoridades que, diante da corrupção nas instituições policiais, a oferta de dinheiro para o policial entrar em confronto implicaria na recusa de dinheiro oriundo do crime organizado. Logo surgiram 'policiólogos' teorizando que a violência é própria das polícias e que apenas não podiam ser corruptas. O resultado foi desastroso. As execuções policiais exponenciaram e eram registradas como autos de resistência. Além da violência policial que estimulou, igualmente ampliou a corrupção.

Não foram poucos os casos de confronto forjado para recebimento da "gratificação faroeste". Os grupos de extermínio se fortaleceram naquele período, dando origem às milícias que hoje ocupam a cidade. Revisitando a "gratificação faroeste", o Governo do Estado editou decreto no último dia 21 e anunciou que pagará R$ 5 mil por cada fuzil apreendido pelas polícias. De acordo com o governo, a medida é uma forma de premiar e incentivar que policiais retirem armas de circulação no estado. A premiação será garantida mesmo aos policiais que estiverem de folga e fizerem a apreensão. Somente os que estiverem afastados por punição disciplinar não serão recompensados. Diz o Estado que a medida é uma ação estratégica para redução da letalidade policial.

Todo trabalhador tem o direito a remuneração digna e merece reconhecimento pelos seus esforços. Mas as opções que o Estado tem feito ao longo do tempo apenas ampliam os vícios que se deveriam corrigir, a começar por atacar o problema na sua origem, qual seja, o modelo de segurança. A "gratificação faroeste" não reduziu a corrupção policial. Ao contrário, a manteve, encareceu o 'arreglo' e ampliou as situações das quais resultaram mortes, simulações de confronto e falsidades diversas para o recebimento do bônus.

A premiação por fuzil apreendido igualmente poderá ser um tiro no pé. A apreensão de armas sem uma política que seja efetivo obstáculo ao seu comércio ilegal traz como benefício, apenas, o lucro das empresas produtoras e dos traficantes de armas. Para cada arma ilegal apreendida, os traficantes de armas disponibilizam outra para quem quiser e puder comprar. Um fuzil custa algumas dezenas de milhares de reais nas mãos de um traficante de armas. A premiação pela apreensão de fuzil poderá aquecer a indústria de armas, encarecer o custo no comércio ilegal, bem como propiciar meios para a comercialização por quem tiver feito a apreensão e pretender atuar fora do marco legal recebendo valores, mais e imediatamente, das mãos de quem queira adquirir ilegalmente. A gratificação somente será paga ao final de cada semestre. "Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes", disse Albert Einstein.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 26/08/2023, pag. 11. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/08/6697575-a-volta-da-gratificacao-faroeste.html


A volta da gratificação faroeste



Na próxima segunda-feira, dia 28, pela manhã, ocorrerá, na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Rio de Janeiro, um debate intitulado 'Direito à Vida: Reparação da Escravidão Negra X Política de Extermínio'. O termo "política de extermínio" foi cunhado em 2007, após as primeiras duas chacinas ocorridos à luz do dia: a do Alemão e a da Coreia. Antes, as chacinas ocorriam nas noites ou madrugadas. Naquela oportunidade, a sociedade civil, indignada, se mobilizou e redigiu um manifesto que foi lido, publicamente, na Fundição Progresso, e entregue a um observador da ONU, que veio ao Brasil analisar as ocorrências.

Atrás de pesados óculos, o então secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, declarou que o manifesto era míope e que seria mantida a política que ele dizia ser "política de confronto". Daquele modelo surgiram as UPPs e todos os seus desmandos, bem como as ocupações militares das favelas e bairros da periferia, responsáveis pelo retorno dos militares das Forças Armadas à política nacional, desde que dela foram afastados após os 21 anos de ditadura empresarial-militar.

Entre 1995 e 1998, o governador Marcello Alencar, por proposta do então secretário de Segurança Pública, general da reserva e deputado federal Nilton Cerqueira, editou o decreto estadual 21.753/1995, que estabeleceu o que ficou popularmente conhecido como "gratificação faroeste". A gratificação iniciou em maio de 1995 e garantia o "pagamento por mérito" de 50% a 150% do salário a policiais que se envolvessem em confronto.

Tratava-se de uma gratificação aos policiais que participassem de operações "demonstrando alto preparo profissional ao agirem com destemida coragem para alcançar o sucesso das missões", ou seja, era o prêmio pela política de extermínio e ganhava mais quem mais letalidade proporcionasse. Tal política igualmente acentuou a morte de policiais em serviço. A prisão legal do criminoso não era premiada, mas o confronto sim.

No governo anterior, de Leonel Brizola, a gestão da política de segurança era voltada para a defesa dos direitos humanos, tanto dos cidadãos quanto dos policiais, e foi criticado pela banda podre das instituições. O general Cerqueira, instituidor da "gratificação faroeste", foi quem chefiou a operação da qual resultou a morte de Carlos Lamarca durante a ditadura empresarial-militar. Diziam as autoridades que, diante da corrupção nas instituições policiais, a oferta de dinheiro para o policial entrar em confronto implicaria na recusa de dinheiro oriundo do crime organizado. Logo surgiram 'policiólogos' teorizando que a violência é própria das polícias e que apenas não podiam ser corruptas. O resultado foi desastroso. As execuções policiais exponenciaram e eram registradas como autos de resistência. Além da violência policial que estimulou, igualmente ampliou a corrupção.

Não foram poucos os casos de confronto forjado para recebimento da "gratificação faroeste". Os grupos de extermínio se fortaleceram naquele período, dando origem às milícias que hoje ocupam a cidade. Revisitando a "gratificação faroeste", o Governo do Estado editou decreto no último dia 21 e anunciou que pagará R$ 5 mil por cada fuzil apreendido pelas polícias. De acordo com o governo, a medida é uma forma de premiar e incentivar que policiais retirem armas de circulação no estado. A premiação será garantida mesmo aos policiais que estiverem de folga e fizerem a apreensão. Somente os que estiverem afastados por punição disciplinar não serão recompensados. Diz o Estado que a medida é uma ação estratégica para redução da letalidade policial.

Todo trabalhador tem o direito a remuneração digna e merece reconhecimento pelos seus esforços. Mas as opções que o Estado tem feito ao longo do tempo apenas ampliam os vícios que se deveriam corrigir, a começar por atacar o problema na sua origem, qual seja, o modelo de segurança. A "gratificação faroeste" não reduziu a corrupção policial. Ao contrário, a manteve, encareceu o 'arreglo' e ampliou as situações das quais resultaram mortes, simulações de confronto e falsidades diversas para o recebimento do bônus.

A premiação por fuzil apreendido igualmente poderá ser um tiro no pé. A apreensão de armas sem uma política que seja efetivo obstáculo ao seu comércio ilegal traz como benefício, apenas, o lucro das empresas produtoras e dos traficantes de armas. Para cada arma ilegal apreendida, os traficantes de armas disponibilizam outra para quem quiser e puder comprar. Um fuzil custa algumas dezenas de milhares de reais nas mãos de um traficante de armas. A premiação pela apreensão de fuzil poderá aquecer a indústria de armas, encarecer o custo no comércio ilegal, bem como propiciar meios para a comercialização por quem tiver feito a apreensão e pretender atuar fora do marco legal recebendo valores, mais e imediatamente, das mãos de quem queira adquirir ilegalmente. A gratificação somente será paga ao final de cada semestre. "Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes", disse Albert Einstein.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 26/08/2023, pag. 11. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/08/6697575-a-volta-da-gratificacao-faroeste.html


sábado, 12 de agosto de 2023

Thiago Menezes, política de extermínio e cadeia de comando


 

A morte do adolescente Thiago Menezes na Cidade de Deus não pode ser interpretada como decorrente de conduta de maus policiais, pois executaram uma política que lhes foi ordenada e incentivada, qual seja, tratar pretos e pobres como inimigos. Numa guerra, não são maus os soldados que alvejam aqueles que lhes são apontados como matáveis. Quanto maior a perversidade praticada contra os que se ordenam ser perversos mais reconhecimento e prestígio angariam por quem comanda e por quem formula a estratégia de eliminação.

A política de extermínio de pretos pobres é uma política de Estado; não é apenas de governo, nem está restrita à corporação que a implementa. Praças que promovem sua execução também têm responsabilidade, pois todos fazemos opções e quem aperta o gatilho também as faz e ninguém pode, impunemente, cumprir ordem ilegal.

Uma obra recente propiciou discussão sobre o racismo estrutural no Brasil. O meio acadêmico se dividiu em discursos sobre a natureza do racismo: se estrutural, institucional ou intersubjetivo. Enquanto os termos eram discutidos e conceitos elaborados, os jovens pobres das favelas e periferia continuaram a ser mortos.

Diversamente do Apartheid, regime que vigeu na África do Sul, as leis brasileiras não estabeleciam diferenças raciais. Mas temos o jeitinho brasileiro. Desde a colonização até 1850, as terras brasileiras eram públicas e os particulares autorizados podiam se apropriar da porção necessária para suas sobrevivências e atividades. Abandonada a atividade, a terra voltava ao poder público para cessão a outro. Tal como o ar que respiramos ou a água do mar na qual nos banhamos, não haveria legitimidade na apropriação do que não fosse necessário, nem manutenção do que não mais era útil.

A edição da Lei 601 de 18 de setembro de 1850 foi o jeitinho brasileiro para excluir os negros livres da possibilidade de ter terra para viver. No processo de substituição da mão de obra escravizada pela mão de obra de pobres europeus, dispensados pelo avanço tecnológico decorrente da invenção da energia elétrica, os libertos foram segregados. Em 4 de setembro de 1850, fora promulgada a Lei 581, Lei Eusébio de Queiróz, que proibia o tráfico de pessoas da África para o Brasil. A Lei de Terras dispunha que a terra não mais era bem de uso, mas mercadoria e, portanto, somente se podia ser proprietário quem a comprasse. Apesar da abundância de terras, tal como ainda hoje, os negros livres e os brancos pobres não podiam ser proprietários por falta de recursos financeiros para a aquisição. Para comer, tinham que trabalhar para os proprietários.

A aporofobia, ou seja, o desprezo pelos pobres e o racismo no Brasil não estão nas leis. Se estivessem, bastaria revogá-las. É muito pior. Está entranhado nas relações sociais e na estrutura social. Não na estrutura formal, mas na estrutura que vale, ou seja, na relacional. Afinal, as normas de conduta sociais são o que se fazem na prática. O Direito escrito é apenas uma formalidade, tal como a Lei Feijó, que abolira o tráfico de pessoas africanas em 1831, "para inglês ver", sem pretensão de eficácia.

No caso do menino Thiago Menezes, não adianta punir apenas quem apertou o gatilho. Outros muitos meninos são e serão executados diariamente. Um caso emblemático foi o menino Juan, em junho de 2011, na Favela Danon, em Nova Iguaçu. Depois de matarem o menino em situação similar à do Thiago Menezes, confundido com quem estavam autorizados a matar, os policiais levaram o corpo e o jogaram na lixeira de um município vizinho.

É preciso parar a matança. Não há pena de morte no Brasil. Quem mata é criminoso. Mas quem ordena, autoriza ou consente o é igualmente. Afinal, quem de qualquer modo concorre para o crime há de incidir nas penas a ele cominadas. Em discurso anteontem, no Rio de Janeiro, o presidente Lula disse que "a polícia tem que saber diferenciar 'bandido' de 'pobre’". Em 2007, depois de uma chacina no Alemão, o presidente disse, no Canecão, na Zona Sul, ao lado do então governador Sérgio Cabral, para uma plateia de classe média, ser contra o pensamento de quem acredita que criminosos "devem ser enfrentados com pétalas de rosas". Ninguém defende a atuação do sistema de justiça contra os que se encontrem em conflito com a lei usando pétalas de rosas. O que se pretende é o império da lei. A civilidade nos impõe respeito à Constituição e ao Estado de Direito. Somente a barbárie autoriza execuções, chacinas, milícias, prisões ilegais e tentativas de golpes de Estado.

Grupos de extermínio e milícias são formados por quem um dia teve autorização para matar e gostou da tarefa. A autorização para matar pretos e pobres nos assombra e reforça a incivilidade. Enquanto cinicamente debatemos em mesas plurais e identitárias, entre cafezinhos, canapés e rapapés, a realidade dura elimina a juventude pobre. Inexistem instituições nacionais capazes do controle da política de extermínio e submissão da cadeia de comando ao banco dos réus, porque a política é do próprio Estado. Punem-se apenas praças que apertam o gatilho. É necessário levar a cadeia de comando ao banco dos réus do Tribunal Penal Internacional (TPI) em razão dos crimes contra a humanidade.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 12/08/2023, pag. 11. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/08/6689153-joao-batista-damasceno-thiago-menezes-politica-de-exterminio-e-cadeia-de-comando.html