segunda-feira, 30 de maio de 2016

Avaliar para quê? (Tema em discussão: Sistema de avaliação do ensino no Estado do Rio)


“Se o programa servisse como meio para ações destinadas à garantia do direito à aprendizagem do que é indispensável, com proveito para o futuro dos estudantes, certamente seria aceito de braços abertos por todos, e as escolas estariam ocupadas por alunos, professores e diretores visando à preparação para a vida e não para domesticar crianças e adolescentes com o fim de transformá-los em vassalos úteis”.
 
O Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio de Janeiro (Saerj) foi instituído a pretexto de promover análise do desempenho dos alunos da rede pública do estado. Teoricamente, o programa tem por finalidade monitorar o padrão de qualidade do ensino ministrado pela rede estadual. Os resultados de avaliações globais de políticas públicas podem fornecer informações para planejamentos e subsidiar tomadas de decisões destinadas à melhoria da qualidade dos serviços prestados. Mas, em se tratando de Educação, não se pode perder de vista o objetivo para o qual se presta o serviço.
Não se educa para fazer prova, mas para a vida. Um sistema de avaliação que tenha por critério tão somente os parâmetros criados por ele mesmo é imprestável ao mundo para o qual se educa. Os estudantes da rede pública de ensino repudiam o Saerj, aplicado aos alunos do 3º ano do ensino médio, e o Saerjinho, aplicado aos alunos do 1º e 2º anos. Esta é uma das principais bandeiras do movimento de estudantes secundaristas que promove, há dois meses, ocupações de escolas e que já atinge quase uma centena delas. Ocupadas e não invadidas, pois os alunos, simplesmente, permanecem em lugar que lhes é de direito. E não esbulham a posse do estado, pois não pretendem desapossá-lo da titularidade de tais imóveis.
O que querem é a melhoria da educação que lhes é ministrada. Buscando com outros membros da Associação Juízes para a Democracia (AJD) propor que alunos e autoridades do sistema estadual de ensino procurem, pela mediação, a solução do impasse com satisfação mútua, vimos a maturidade dos jovens que postulam melhor qualidade de ensino, visando à plena formação e ampliação de seus horizontes. Os estudantes que organizam as atividades nas escolas que ocupam, com disciplina invejável, pretendem a reformulação do sistema de avaliação a fim de que, simultaneamente, sirva para outros fins.
O Saerj é um sistema de avaliação autorreferente, sem proveito para a educação regular ou preparação para avaliações posteriores, como o Enem. É uma avaliação destinada a si mesma, sem proveito de outra natureza para os educandos. Pode interessar aos que fornecem serviços e produtos ao estado. Mas aos alunos não tem demonstrado serventia. Ninguém haveria de ser contra o sistema de avaliação se ele, simultaneamente, permitisse obter informações sobre o desempenho escolar dos estudantes e propiciasse a melhoria da educação que se ministra.
Se o programa servisse como meio para ações destinadas à garantia do direito à aprendizagem do que é indispensável, com proveito para o futuro dos estudantes, certamente seria aceito de braços abertos por todos, e as escolas estariam ocupadas por alunos, professores e diretores visando à preparação para a vida e não para domesticar crianças e adolescentes com o fim de transformá-los em vassalos úteis.




Publicado originariamente no jornal O GLOBO, em 30/05/2016, pag. 12. Link:
http://oglobo.globo.com/opiniao/avaliar-para-que-19387389

A história não os absolverá!


“Pesquisas demonstram que o Judiciário é o poder que melhor seleciona entre as classes sociais. Na magistratura de primeiro grau, integralmente profissional e recrutada por meio de concurso público, os juízes são oriundos dos mais diversos segmentos, o que não implica manutenção da identidade de classe ao assumir. Embalado pela mídia, há quem seja capaz de seletividade penal e de vestir toga para expressar ódio de classe e homenagear ‘juizticeiro’”.
O poder do profeta que fala em nome de uma divindade e do demagogo que arrebata massas com promessas de um porvir maravilhoso tem fundamento mítico. O poder do mais idoso da tribo ou do patriarca nas sociedades conservadoras tem fundamento na tradição. Fora disto, todo exercício de poder é político. Se assentado na vontade popular, é democracia; se na vontade dos ricos, plutocracia. O Judiciário é também poder político, ainda que não legitimado pelo voto, e deve funcionar com independência para a realização da ordem jurídica e pronunciar julgamentos na base do alegado e no provado.
Mas a mídia tem substituído a racionalidade que se espera dos julgamentos. No Brasil, como demonstram pesquisas, a mídia comercial tem propiciado celeridade em julgamentos, e o noticiário opinativo, orientado decisões. A concentração fundiária, de renda, a exclusão social, o preconceito aos pobres e às ‘coisas de pobre’, herança da escravidão e da migração de camponeses miseráveis após a abolição, são marcas de nossa formação social. Concentradas em poucas famílias também são as empresas de comunicação.
No plano ideológico, aqueles que falam em nome dos pobres, mesmo sem possibilitar que falem por si, são atingidos pelo ódio de classe. Quando incidem em práticas viciosas caracterizadoras do patrimonialismo que mistura a esfera pública com a privada são exemplarmente punidos.
Pesquisas demonstram que o Judiciário é o poder que melhor seleciona entre as classes sociais. Na magistratura de primeiro grau, integralmente profissional e recrutada por meio de concurso público, os juízes são oriundos dos mais diversos segmentos, o que não implica manutenção da identidade de classe ao assumir. Embalado pela mídia, há quem seja capaz de seletividade penal e de vestir toga para expressar ódio de classe e homenagear ‘juizticeiro’.
Há quem seja capaz de se pronunciar em notas indignadas e sarcasmos para propiciar prisão e cassação de senador por tagarelice sem, no entanto, qualquer manifestação diante de gravação com conteúdo mais oneroso de outro senador que indica esquema corruptivo muito mais acentuado e demonstrativo de que o golpe foi dado para estancar investigações. Mas tudo passará, e a história também fará seus julgamentos.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 29/05/2016, pag. 14. Link: http://odia.ig.com.br/opiniao/2016-05-28/joao-batista-damasceno-a-historia-nao-os-absolvera.html
 

Tudo por um prato de lentinhas!


“Defensores de direitos sociais, sem definição do espectro ideológico no qual se situam, podem assumir qualquer viés. Normalmente tendem à direita e ao oportunismo, sejam militantes pelos direitos humanos, feministas, movimento negro ou outros. Desde a antiguidade há pouca gente capaz de recusar um prato de lentilhas”.
A professora Flávia Piovesan, jurista, feminista e militante pelos Direitos Humanos foi convidada para o cargo de Secretária de Direitos Humanos e aceitou. Será subordinada ao Ministro da Justiça Alexandre de Moraes, cuja trajetória e história merecem artigo exclusivo. Vai integrar um governo interino composto exclusivamente por ministros homens. Outras mulheres, anteriormente, recusaram o convite. A discussão sobre a legitimidade do presidente interino, o rebaixamento do nível do cargo que era ministério e a descrença na possibilidade de desempenho de qualquer política de valorização dos direitos inerentes à pessoa humana num cenário de predomínio dos interesses do capital em prejuízo das pessoas motivaram as recusas, além de ser um governo repleto de figurinhas carimbadas com atributos que não se caracterizam por virtudes republicanas.
A derrubada de uma presidenta eleita com 54 milhões de votos ainda causa perplexidade e nos rememora o tempo da UDN que somente reconhecia a legitimidade das eleições que vencia. Depois da eleição do presidente Lula em 2002 as eleições jamais foram tranquilas. A mídia corporativa levou os pleitos de 2006, 2010 e 2014 para o segundo turno com denúncias que apenas se noticiavam durante o período eleitoral. Nas eleições de 2006 um acidente de avião provocou a acusação de falta de ranhuras na pista reformada do aeroporto de Congonhas. Depois da eleição se noticiou que o defeito era da aeronave. Na eleição de 2010 o tema badalado diariamente foi uma acusação à ministra Erenice Guerra. Passada a eleição o telejornal de maior audiência anunciou, em míseros 17 segundos, que tudo o que noticiara fora arquivado a pedido do MP. O clima nas eleições de 2014 foi tenso e o resultado não foi acolhido pelos perdedores que articularam o golpe que afastou a presidenta. A composição do governo por pessoas cujo projeto foi rejeitado nas urnas é uma ofensa à democracia e um desrespeito ao povo brasileiro.
Defensores de direitos sociais, sem definição do espectro ideológico no qual se situam, podem assumir qualquer viés. Normalmente tendem à direita e ao oportunismo, sejam militantes pelos direitos humanos, feministas, movimento negro ou outros. Desde a antiguidade há pouca gente capaz de recusar um prato de lentilhas.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 22/05/2016, pag. 14.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Constituição de papel


“A admissão do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff pelo Senado é demonstração de que a Constituição é de papel e que os direitos e garantias que nela se contêm somente têm eficácia quando se encontra quem lhes queira atribuir efeitos”.

(...)

“Em 12 de julho de 2014 dezenas de pessoas foram presas para que não pudessem se manifestar no final da Copa do Mundo e o ministro José Eduardo Cardozo afirmou que conversara com o secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, e que este afirmara que as prisões não tinham sido arbitrárias. Outro ministro disse que a Lei Geral da Copa fora mantida pelo STF, em duas ações de inconstitucionalidade. “Tivemos zero problema na Justiça, durante a Copa”, disse. Provam agora do próprio remédio. O mesmo STF proporciona zero problema aos golpistas”.

 

A admissão do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff pelo Senado é demonstração de que a Constituição é de papel e que os direitos e garantias que nela se contêm somente têm eficácia quando se encontra quem lhes queira atribuir efeitos. Quem vive nas periferias brasileiras sabe, pela concretude da vida cotidiana, que a cidadania é algo a ser construído no Brasil. Direito é o poder de exigir de outrem a satisfação de um interesse. Mas, no Brasil, direito se suplica, pois quem ousa ser cidadão e o exigir acaba não tendo deferido o que é seu.

A lei 1079, editada em 10 de abril de 1950, fora arquitetada pela UDN visando ao impeachment de Getúlio Vargas, cuja eleição era previsível. A UDN somente reconhecia a legitimidade das eleições que vencia. Além da tentativa de golpe contra o presidente Vargas, tentou contra Juscelino Kubitscheck e contra o presidente João Goulart, até a sua deposição em 1964. As empresas de comunicação que naquela época apoiavam as tentativas de golpe, hoje atuam da mesma maneira. Se a democracia quiser se estruturar e sobreviver no Brasil será preciso pensarmos no desmonte do modelo de mídia comercial que atua por delegação do poder público.

Ao chegar ao poder, o presidente Lula e seu partido reiteraram erros que a classe dominante e as elites sempre praticaram. Imperdoável! Afinal, fora eleito para romper com tais estruturas. Em vez de se reforçar a cidadania pela construção de direitos preferiu-se a ampliação do consumo, dimensão liberal da cidadania. Uma cultura cidadã poderia evitar o golpe e a instauração de governo ilegítimo, cujas decisões são também ilegítimas e que não tem o direito de exigir obediência às ordens dele emanadas.

Em 12 de julho de 2014 dezenas de pessoas foram presas para que não pudessem se manifestar no final da Copa do Mundo e o ministro José Eduardo Cardozo afirmou que conversara com o secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, e que este afirmara que as prisões não tinham sido arbitrárias. Outro ministro disse que a Lei Geral da Copa fora mantida pelo STF, em duas ações de inconstitucionalidade. “Tivemos zero problema na Justiça, durante a Copa”, disse. Provam agora do próprio remédio. O mesmo STF proporciona zero problema aos golpistas.



 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 15/05/2016, pag. 15. Link: http://odia.ig.com.br/opiniao/2016-05-14/joao-batista-damasceno-constituicao-de-papel.html

segunda-feira, 9 de maio de 2016

MANIFESTAÇÃO NA ALERJ EM AUDIÊNCIA PÚBLICA DA CPI QUE APURA MORTE E INCAPACITAÇÃO DE POLICIAIS, realizada no dia 09/05/2016


MANIFESTAÇÃO NA ALERJ EM AUDIÊNCIA PÚBLICA DA CPI QUE APURA MORTE E INCAPACITAÇÃO DE POLICIAIS, realizada no dia 09/05/2016

João Batista Damasceno*

Exmo. Sr. Deputado Paulo Ramos, autor do convite a que tenho a honra de atender,
Exma. Sra. Deputada Martha Rocha,
Exmo. Sr. Deputado Zaqueu Teixeira,
Exmo. Sr. Deputado Wagner Montes,
Exma. Sra. Professora Maria Cecília, na pessoa de quem saúdo todas as autoridades e demais presentes,
Em boa hora esta casa de leis instaura uma Comissão Parlamentar de Inquérito, CPI, e designa esta audiência pública para apurar as causas do grande número de mortes e incapacitações de profissionais de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, as circunstâncias e consequências para os familiares e para a população.
Policiais são trabalhadores que merecem respeito e as condições de trabalho que os vitimam atentam contra a dignidade da pessoa humana, fundamento da República.
O estudo da escalada da violência no nosso Estado demonstra que periodicamente se tem exponenciado. No final dos anos 50 foi instituído neste Estado, quando ainda era Distrito Federal, um modelo de atuação estatal que deu o ponta pé inicial para esta escalada de violência contra policiais e contra a sociedade. Refiro-me ao grupo de homens sob comando do General Riograndino Kruel, para atuação sob parâmetros paraestatais. Posteriormente, no âmbito do Estado da Guanabara, outro grupo de homens, intitulados "Homens de Ouro da Polícia" subiram ainda mais o patamar da violência. A noite que caiu sobre o país em 13 de dezembro de 1968, com a decretação do AI-5, possibilitou que a partir de 1969 o Estado atuasse abertamente fora dos parâmetros legais. A redemocratização não desmontou um tipo de política estatal que promove a violência e sua escalada e o comando da polícia por um coronel do Exército quando da Bomba do RioCentro é emblemático para entendermos o que fazia o Estado naquele tempo.  A tentativa de construção de uma polícia cidadã que matasse menos e menos morresse foi obstaculizada no período de redemocratização. Em 1986 foi eleito governador do Estado do Rio o sociólogo Moreira Franco, que prometeu acabar com a violência em 6 (seis) meses. O que se viu, a partir de sua posse em 15 de março de 1987, foi o aumento da violência estatal. Em momento posterior o mesmo coronel que chefiara a polícia quando do episódio da Bomba do RioCentro chefiou a Secretaria de Segurança Pública e instituiu a "Gratificação Faroeste", estimulando confrontos, mortes e lesões. Por fim, desde 2007 temos em nosso Estado o que o Secretário José Mariano Beltrame denominou de "Política de Confronto" e que manifesto de artistas e intelectuais lançado naquele ano denominou de "Política de Extermínio". Este é o resumo das políticas de segurança neste Estado que violam direitos humanos, aumentam a escalada da violência, colocam policias em situação de risco, vitimam a sociedade e seus próprios familiares.
O atual secretário de Estado de Segurança Pública fala em “Guerra às Drogas” e “Retomadas de Territórios”. A tragédia anunciada das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) é expressão da miopia estatal, somente amparada por palavras sem sentido. Trata-se de discurso que não se sustenta, pois conceitualmente não há guerra, nem território que não esteja sob o domínio do Estado. O que há são crimes, cujo conceito precisa ser analisado, assim como se precisa analisar que tipo de crime o Estado tem se prontificando a combater.
Guerra é a contestação pela força nascida entre dois grupos políticos, sob a influência da concorrência vital; Guerra é a condição legal que permite a dois ou mais grupos hostis continuar um conflito pela força armada; Guerra é um ato de violência cujo objetivo é forçar o adversário a executar a sua vontade, estabelecendo dominação, na conceituação de Clausewitz.
Portanto, só por uma grosseria conceitual se poderia falar em guerra ao crime ou guerra às drogas. Não há guerra, pois para a conceituação de estado de guerra são necessárias duas características: aspecto político e finalidade da ação. Mesmo grupos armados que atuam com finalidade política na ordem interna, como são as FARC na Colômbia, têm dificuldade de obter reconhecimento do estado de guerra, pois isto implicaria em lhes atribuir os chamados Direitos de Guerra, estipulados pela Convenção de Genebra.
Fala-se em terrorismo para empurrar praças para o confronto que lhes tira a vida. Mas, terrorismo é atividade política de grupos políticos fracos, sem força para agir abertamente, visando intimidar o poder e lhe impor modo de comportamento condizente com os seus interesses ou da população que representa. Trata-se de modalidade de atuação de quem está fora do poder e sem interlocução com o Governo ou o grupo hegemônico. Não há prática de terrorismo no Brasil.
O que temos são crimes, cuja oposição do Estado não há de ser feita com o sacrifício da vida dos seus agentes.
Para os juristas crime é fato descrito em lei. Sociologicamente, crime é uma conduta desviante do padrão social no qual o indivíduo está inserido. Uma característica sociológica do crime é que ele é interno ao grupo social. O crime não é conduta praticada por um grupo contra outro ou de uma sociedade contra outra. Mas, é transgressão praticada por um indivíduo no seio da própria na sociedade onde vive. Crime é prática comum a todo grupo social. O crime é lesivo aos valores do grupo dominante, mesmo que não tenha qualquer repercussão social. Daí não se poder fazer guerra ao crime, pois implicaria guerra interna do grupo.
O consumo de determinadas drogas, como bebidas alcoólicas, é muito mais nocivo que o de outras consideradas ilícitas. No entanto aquelas são socialmente aceitas e o Estado não criminaliza sua produção, comércio ou consumo. Trata-se de opção estatal.
Policiais tem morrido e ficado incapacitados no que se tem chamado de "Guerra às drogas".  Trata-se de política obtusa incapaz de vencer o fluxo das mercadorias proibidas, uma vez que a demanda pressiona a oferta e se alguém pretender usar uma substância ela chegará ao seu destinatário, por que caminho for. Da mesma forma, a mortandade dos vendedores, de diversos níveis e categorias, apenas reporá nova mão de obra no comércio ilegal, sem a capacidade de impedir o fluxo da mercadoria proibida.
O que espanta em tal política é que não se fala em combate à violência do tráfico de drogas. O que se apresenta como modelo de combate é a apreensão de pequenas quantidades de drogas, dinheiros trocados e algumas armas e não o esclarecimento dos homicídios que se praticam em razão do tráfico.
As dezenas de milhares de homicídios praticados nos últimos anos se resumem a estatísticas e anotações em capas de processos onde se lê a sigla: A. I. (autoria ignorada). Em Nova Iguaçu, onde fui juiz titular por 15 anos havia 2 (dois) tribunais do juri quando lá cheguei, encarregados de julgar os crimes dolosos contra a vida. A maioria dos inquéritos que para eles era remetida tinha na capa tais letras. Hoje, os inquéritos são remetidos diretamente ao Ministério Público e não mais passam pelo judiciário. Assim, um dos tribunais do juri foi extinto e apenas o outro subsiste, assim como subsiste a falta de apuração dos crimes dolosos contra a vida que se cometem. E são números assustadores.
Portanto, não é a preocupação com a vida que move a política de segurança na atualidade. Não há preocupação com a apuração dos crimes de homicídio. Policiais morrem e ficam incapacitados por uma política canhestra de combate às drogas. E sem objetivo. Afinal, morrem mais policiais combatendo o tráfico de drogas no Rio de Janeiro que todos os casos de overdose no território nacional.
Portanto, não é a droga que mata. Mas, o combate às drogas. O que mata policiais é o proibicionismo e as políticas engendradas para sua efetivação.
É o proibicionismo e o que se denominam "Guerra às drogas" que geram a violência contra crianças, idosos, trabalhadores e outras pessoas que jamais tiveram contato com drogas ilícitas; que pavimentam o caminho para a corrupção e que matam policiais mandados irresponsavelmente para o confronto.
Morre-se e mata-se em razão da proibição em número assustador, quando os casos de morte por overdose são raros. A vida e a saúde pública não são defendidas com o proibicionismo, pois apenas serve para justificar o aparato repressivo e o controle da sociedade.
A Lei Seca nos Estados Unidos incentivou o desenvolvimento da máfia, da qual Al Capone foi o ícone. Regulamentado o comércio de bebida alcoólica, a máfia estadunidense teve que buscar novos negócios. Pessoas que cultivavam videiras e proprietários de pequenos alambiques clandestinos puderam produzir para consumo familiar sem necessidade de se armar ante o risco da violência para roubo do produto proibido.
A Leap (Law Enforcement Against Prohibition), que pode ser traduzida por Agentes da Lei Contra o Proibicionismo, é uma entidade mundial composta por juízes, promotores e policiais que tem a missão de reduzir os efeitos danosos resultantes da “guerra às drogas” e diminuir a incidência de mortes, crimes e dependência decorrentes da proibição.
A Leap-Brasil advoga a eliminação da política de proibição das drogas e a introdução de uma política alternativa de controle e regulação, com medidas restritivas à venda e uso de drogas em razão da idade, da mesma forma que existem outras restrições para aquisição ou consumo de álcool, de tabaco, para direção de veículos e operação de equipamentos pesados.
Uma criança ou adolescente pode ter dificuldade em comprar bebida alcoólica ou cigarro na maioria dos estabelecimentos comerciais do país, pois é regulamentado, mas nada a impede de adquirir o tipo de droga ilícita que quiser. Aqueles que ganham com o comércio ilegal têm razões justificáveis, por seus interesses, para a manutenção do proibicionismo e a “guerra às drogas”. É isto que precisamos pensar responsavelmente.
Os jornais ontem noticiaram a morte e ferimentos em policiais e cidadãos em confrontos estimulados pela política de segurança do Estado. Um policial militar foi morto e outro baleado anteontem, em duas ações distintas no Rio. O PM Eduardo José da Silva, de 38 anos, morreu durante um confronto e o soldado Igor Ramalho Martins, de 27 anos, foi baleado na madrugada durante uma troca de tiros entre a PM e traficantes no Complexo do Alemão. Anteontem foi enterrado o policial militar Fábio Julio Leite dos Santos, de 39 anos, morto após confronto. Na noite de quinta-feira, o sargento André Luiz Vaz, do Batalhão de Operações Especiais (Bope) foi atingido por um tiro na cabeça durante operação no Morro da Providência, na região central do Rio, e morreu no hospital e outros dois policiais ficaram feridos. Esta ação também resultou na morte de outras cinco pessoas, além de deixar quatro feridas.
Eu poderia relatar muitos outros casos recentes de morte ou incapacitação causados pela política de extermínio que o secretário de segurança pública nominou de política de enfrentamento em 2007.  Mas, limito-me aos casos de policiais noticiados ontem nos jornais fluminenses.
Não podemos admitir que policiais continuem a morrer no que se pode chamar de "faroeste gaúcho" realçado pelo Estado do Rio de Janeiro, desde 2007.
Policiais expostos no que chamam de ‘guerra ao crime’ são submetidos à violência que toda guerra produz. A determinação de confronto e a militarização da política de segurança expõe a vida de policiais, trabalhadores que merecem respeito. Omitem-se aos policiais os reais interesses da política de segurança que confronta os direitos humanos, assim como lhes negam os direitos decorrentes da cidadania assegurados aos demais servidores do Estado. Aos olhos de quem incentiva a ‘guerra’ pouco importa se morre um favelado ou um policial.
A política de confronto submete policiais à truculência e os expõe à morte. O policial que a executa também é vítima dela. É um trabalhador a quem se incumbe "lutar contra o mal", "ser forte" e "enfrentar a morte". Sendo impossível vencer a morte, do enfrentamento resulta a perda da vida do policial, enquanto quem ordena vive sem risco. A desmilitarização da política de segurança elevará o policial à condição de plena cidadania. Só os que se beneficiam da política de segurança militarizada e com a ‘guerra à criminalidade’ são capazes de defender a política de confronto e extermínio.
Os temas aqui tratados jamais foram objeto de estudo por parte do Secretário que implementa a política de segurança neste Estado. Para a comprovação desta afirmativa sugiro seja analisado por esta CPI a sua formação profissional e seu aproveitamento no concurso que prestou para a Policia Federal.
Em recente declaração na mídia o Secretário Beltrame disse que "as pessoas que atirarem na polícia vão levar tiro também". Ao invés de estimular o confronto não seria de esperar que o Secretário dissesse que quem o fizesse seria investigado, julgado por um tribunal do juri e preso? O que pretende o Secretário com sua declaração? Estimular o confronto que vitima e incapacita policiais? Elevar o patamar da violência a partir dos confrontos ainda mais acirrados? Declarações similares de autoridades em tempos passados serviram para justificar o aumento do número de vítimas entre policiais, ao estimular o confronto.
Não se pode negar a ninguém o direito à legítima defesa. Dispõe o art. 25 do Código penal que se entende em legítima defesa aquele que, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. A legítima defesa, no entanto, é para repelir a agressão injusta, atual ou iminente. Não há de servir para justificar revide ou vingança. A incitação ao revide é apologia a crime.
Ao longo do 23º ano na magistratura estadual, já julguei muitos casos de justificação de união estável a pedido de companheiras de policiais para fins previdenciários. Em todos os casos (todos os casos) eram senhoras pobres e sofridas e que viúvas de policiais mandados para confronto enfrentavam todo tipo de burocracia estatal para lhes reconhecer o direito ao pensionamento com o qual pretendiam custear a vida e a educação dos órfãos dos quais eram mães.
Promover a defesa dos policiais implica defender uma política de segurança humanizada que os valorize, propiciando-lhes vida com qualidade.
 
 
*Doutor em Ciência Política, ocupante do cargo de juiz de direito no TJ/RJ e membro da Associação Juízes para a Democracia/AJD.

Num Estado Democrático, juízes não podem tudo

"Num Estado de Direito, os agentes públicos têm competência nos limites da atribuição legal. Fora de marcos legais, os agentes públicos podem tudo o que julgam capazes. Duas decisões judiciais durante a semana passada colocaram o judiciário no centro dos debates sobre o poder dos juízes. Um juiz, a pretexto de coagir o Facebook a fornecer conteúdo de postagens no WhatsApp, suspendeu todo o serviço no país, causando danos a milhões de usuários. Poderia ter fixado multa diária até o fornecimento das informações desejadas. A outra decisão foi a liminar de um ministro do STF que suspendeu o exercício do mandato do deputado Eduardo Cunha".
Num Estado de Direito, os agentes públicos têm competência nos limites da atribuição legal. Fora de marcos legais, os agentes públicos podem tudo o que julgam capazes. Duas decisões judiciais durante a semana passada colocaram o judiciário no centro dos debates sobre o poder dos juízes. Um juiz, a pretexto de coagir o Facebook a fornecer conteúdo de postagens no WhatsApp, suspendeu todo o serviço no país, causando danos a milhões de usuários. Poderia ter fixado multa diária até o fornecimento das informações desejadas. A outra decisão foi a liminar de um ministro do STF que suspendeu o exercício do mandato do deputado Eduardo Cunha.
A mídia percebeu a exorbitância do juiz sergipano e o apelidou de ‘Sérgio Moro de Lagarto’, município onde atua. No meio jurídico diz-se a frase: "Que pereça o mundo, mas que se faça justiça". Trata-se de concepção de justiça exterior ao mundo e em nome do que se pode extinguir o planeta e o que nele habita; é concepção que não compreende a justiça como decorrência das relações sociais para a convivência saudável. Se o mundo perecer, pereceremos todos e o que concebemos como justiça.
O colega sergipano disse estar “à mercê de Deus e um dos predicados que todo magistrado deve ter é justamente o da coragem. Vim aqui para servir em nome de Deus e cumprir uma missão. E aqui cumprirei minha missão, doa a quem doer”. O compromisso dos juízes há de ser com a ordem jurídica democrática e republicana. Mas tais exorbitâncias não são motivos para instauração de procedimento disciplinar contra o juiz. De decisão judicial se recorre às instâncias superiores.
Não se pode instaurar procedimento disciplinar em decorrência de decisão judicial, sob pena de abrirmos precedente e termos juízes temerosos quando tiverem que decidir contra os poderosos. A independência judicial é fundamental para a garantia dos direitos.
A outra decisão foi a liminar do ministro do STF, que tardiamente afastou o deputado Eduardo Cunha do exercício de mandato. Se proferida tão logo ajuizada a ação, em dezembro de 2015, ou antes de 17 de abril, a história do Brasil poderia ser outra. Justiça que tarda falha. Retardamento ou omissão favorece a injustiça.
 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 08/05/2016, pag. 16. Link: http://odia.ig.com.br/opiniao/2016-05-08/joao-batista-damasceno-num-estado-democratico-juizes-nao-podem-tudo.html

domingo, 1 de maio de 2016

Acordo sobre direito alheio

"Contratos são ajustes bilaterais de vontades e somente os titulares dos direitos estão legitimados a celebrá-los. O titular de um direito pode designar pessoa para representá-lo. É o caso dos procuradores. Não há lei que outorgue poderes a presidentes de tribunais para celebrar acordos com fornecedores envolvendo direitos de consumidores, nem que lhes dê poderes para editar normas destinadas a juízes.
"Tal “Pacto” é mera carta de intenção que pode ou não ser acatado, por meio negocial, pelos titulares dos interesses envolvidos. Resta saber se os consumidores o acolherão. Juízes cumprem as leis e respeitam as vontades das partes".
O presidente do Tribunal de Justiça do Rio subscreveu conjunto de regras relativas ao mercado imobiliário, sob o pretexto de evitar práticas abusivas em cláusulas contratuais de compra e venda de imóveis. Notícia no site do tribunal informa que as medidas vão contribuir para reduzir a judicialização de conflitos entre consumidores e construtoras.
No dia 27, no Salão Nobre do TJRJ, foi realizada cerimônia de lançamento do Pacto Global para Aperfeiçoamento das Relações Negociais entre Incorporadores e Consumidores. O documento foi assinado pelo anfitrião e representantes da Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça, da Secretaria Executiva do Ministério da Fazenda, da OAB, da Associação Brasileira das Incorporadoras (Abrainc), da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), da Associação Brasileira dos Advogados do Mercado Imobiliário (Abami) e da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi-RJ).
A crise financeira deixa efetivamente compradores e construtoras em dificuldades para cumprir obrigações. O acordo pretende fixar critérios para o reembolso dos valores pagos pelos compradores de imóveis em construção. Pretende-se criar mecanismos para reembolso e sanções aos compradores desistentes, com pretensão de que tal pacto seja levado a outros estados e tenha abrangência nacional.
Para o presidente do Tribunal de Justiça, a crise financeira retirou poder de compra dos consumidores e que “o Pacto Global busca, entre outros problemas, reduzir volume de distratos, porque os consumidores não estão conseguindo arcar com as despesas”.
Contratos são ajustes bilaterais de vontades e somente os titulares dos direitos estão legitimados a celebrá-los. O titular de um direito pode designar pessoa para representá-lo. É o caso dos procuradores. Não há lei que outorgue poderes a presidentes de tribunais para celebrar acordos com fornecedores envolvendo direitos de consumidores, nem que lhes dê poderes para editar normas destinadas a juízes.
Tal “Pacto” é mera carta de intenção que pode ou não ser acatado, por meio negocial, pelos titulares dos interesses envolvidos. Resta saber se os consumidores o acolherão. Juízes cumprem as leis e respeitam as vontades das partes.
 
Artigo publicado originariamente no jornal O DIA, em 01/05/2016, pag. 16. Link: http://odia.ig.com.br/opiniao/2016-04-30/joao-batista-damasceno-acordo-sobre-direito-alheio.html