sábado, 23 de setembro de 2023

Agentes públicos, liberdades púbicas e nudez








 

 

Aborto: preocupação com a vida, pecado e descriminalização

 

Iniciou-se, no STF, a votação da ação que pretende descriminalizar o aborto, em outras situações que não as já autorizadas por lei. A presidenta do STF, ministra Rosa Weber, votou ontem, sexta-feira (22), a favor da descriminalização do aborto para as mulheres que interromperem a gravidez até a 12ª semana de gestação. A votação estava ocorrendo pelo plenário virtual, ou seja, pela internet. O ministro Luís Roberto Barroso propôs que o caso seja julgado no plenário presencial e isto deverá ocorrer futuramente.

Em voto muito fundamentado, a ministra Rosa Weber analisou estudos que mostram que a criminalização não é a melhor política para resolver os problemas que envolvem o aborto, e disse que a justiça social reprodutiva, "fundada nos pilares de políticas públicas de saúde preventivas na gravidez indesejada, revela-se como desenho institucional mais eficaz na proteção do feto e da vida da mulher".

A ministra ainda pontuou que "a criminalização perpetua o quadro de discriminação com base no gênero, porque ninguém supõe, ainda que em última lente, que o homem de alguma forma seja reprovado pela sua conduta de liberdade sexual, afinal a questão reprodutiva não lhe pertence de forma direta".

A ministra cita pesquisas indicando que as mulheres negras e de classe social mais baixa são as maiores afetadas pelos abortos ilegais e disse: "Ainda, cumpre assinalar que abortos inseguros e o risco aumentado da taxa de mortalidade revelam o impacto desproporcional da regra da criminalização da interrupção voluntária da gravidez não apenas em razão do sexo, do gênero, mas igualmente, e com mais densidade, nas razões de raça e condições socioeconômicas". As mulheres que têm dinheiro se internam em clínicas e hospitais de luxo, realizam o procedimento com seus médicos particulares e o sistema de justiça jamais toma ciência do que fazem. A criminalização do aborto é a criminalização da mulher pobre.

A questão do aborto suscita paixões e impede um debate racional e equilibrado. Nos Estados Unidos, já ocorreram assassinatos de médicos e mulheres por radicais que dizem defender a vida. Somente a partir do século XIX, a Igreja começou a defender a "animação imediata", ou seja, que uma alma entra no feto no momento da fecundação. Antes, se acreditava que fosse em outros momentos. A ciência não comprova esta ocorrência em momento algum.

O Direito Brasileiro autoriza o aborto em duas situações: estupro e risco de vida para a gestante. O estupro é presumido quando a vítima não tem condições de consentir com o ato sexual, seja criança ou doente psiquiátrica.

Num caso recente, que se tornou midiático, debatia-se sobre a necessidade de interrupção de gravidez de risco, decorrente de estupro, o que deveria ser decidido exclusivamente por quem tinha interesse. Mas a intolerância de um religioso chocou os que o assistiram na mídia, pois usando seu poder sacerdotal, tomou a iniciativa de dizer excomungados os médicos e as vítimas, por considerar o aborto mais grave que o estupro. Não se trata de preocupação com a vida. Não se tem notícia de sanção religiosa para homicidas, apesar de no Brasil ocorrerem 50.000 homicídios por ano. Executores de crimes contra a vida e contra a qualidade de vida de crianças relegadas à miséria, ao abandono e à mendicância não são punidos pelos religiosos. A política de extermínio mata jovens negros e pobres nas periferias e não causa comoção. Durante a pandemia, foi instituída política genocida para eliminar idosos e pessoas com comorbidades para aliviar o orçamento da previdência e do SUS e não houve excomunhões.

O que se faz é misoginia, para fazer mulheres reféns da culpa e lhes tirar o poder de escolha. Misoginia é comportamento avesso às mulheres e às questões que lhe dizem respeito. Esta questão restou ressaltada no voto da ministra, que apontou que criminalização do aborto foi determinada numa época em que as mulheres eram excluídas de definirem suas próprias vidas, quando a maternidade e os cuidados domésticos compunham o único projeto de vida permitido às mulheres, sendo qualquer escolha fora desse padrão inaceitável e o estigma social, certeiro. A ministra ainda ressaltou em seu voto que as mulheres foram silenciadas e não conseguiram participar da definição de algo que dizia respeito ao direito das próprias mulheres, que é o sistema reprodutivo. O Código Penal, de 1940, foi escrito por homens e as leis foram aplicadas por homens. Somente no governo Jango, em 1962, foram as mulheres equiparadas aos homens em direito, quando editado o Estatuto da Mulher Casada. Este foi um dos argumentos utilizados pelos conservadores para reforçar o golpe naquele presidente. A pauta dos costumes sempre foi manuseada para empolgar a massa e sufocar as liberdades.

No presente momento, voltam os discurseiros de costumes a falar em liberação de aborto. Não é esta a questão. Desconheço quem defenda o aborto indiscriminadamente, como quem faça cirurgias por prazer. Aborto dói, sangra, é crime e pecado, mas às vezes é necessário. Não se pode negar a um religioso o poder de orientar os que aceitam a sua fé, assim como não se pode admitir que queira estender seus dogmas para toda a sociedade, notadamente em contrariedade aos valores democráticos e republicanos. A ministra, interpretando a Constituição, votando pela descriminalização, vota no sentido de permitir procedimentos seguros à integridade física das mulheres e desvela o véu da discriminação. A ministra Rosa Weber deixará a Corte no dia 2 de outubro, quando se aposentará compulsoriamente ao completar 75 anos. Deixará sua marca na história do STF e do Direito Brasileiro.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 22/09/2023, pag. 11. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/09/6712548-aborto-preocupacao-com-a-vida-pecado-e-descriminalizacao.html


sábado, 9 de setembro de 2023

A lei é para todos

A Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) convidou notáveis juristas nacionais para debate sobre a investigação defensiva. O evento será realizado pelo Forum Permanente de Sociologia Jurídica da EMERJ e ocorrerá no próximo dia 20, com transmissão pela internet. O ponto de partida para a análise serão as ocorrências na Operação Lava Jato, notabilizada pela atuação dos agentes do Sistema de Justiça à margem da lei a pretexto de exigir de outros o cumprimento dela.

Na investigação acusatória regularmente processada, um delegado apura, sigilosamente, um fato criminoso, certificando-se de sua efetiva ocorrência e lista os possíveis autores da ilegalidade. Finda a apuração o delegado de polícia remete um relatório ao Ministério Público, que formula uma acusação perante a Justiça. Mas as pessoas que gerem este processamento não são deuses, nem demônios. São seres humanos capazes dos mesmos erros, se o sistema não estiver adequadamente sujeito a controle e responsabilização.
No nosso sistema, nem o promotor nem o juiz analisam os fatos. O que se analisam são as reconstituições históricas do evento. O fato é evento na realidade natural, que ocorre e se esvai. O que pode restar são registros e possibilidades de reconstituições. Daí que a fidedignidade destas reconstituições precisa ser honestamente observada para evitar que o processo se desenvolva de forma fantasiosa.

Em data recente, um diligente juiz fluminense anulou interceptações telefônicas, porque advogados dos acusados descobriram que os números dos telefones de onde teriam partido as conversas imputadas aos seus clientes não pertenciam a eles. Nos autos do processo, havia a transcrição das supostas conversas. O juiz mandou oficiar à companhia telefônica e descobriu que os números sequer estavam habilitados pela empresa de telefonia; os números inexistiam. Alguém, em sede policial, inventou as conversas, as transcreveu e as atribuiu a um número telefônico. O fato já havia ocorrido no 'Caso Amarildo', quando foi detectado que as transcrições não correspondiam ao que estava gravado. Numa operação policial chamada de 'Olho de Boi', igualmente foi aventada a possibilidade de que gravações tivessem sido editadas, o que implicou sério conflito institucional quando descoberto o problema. A perita da Polícia Civil que detectou a falha hoje atua na Defensoria Pública, propiciando melhor exercício do direito de defesa.

Se o relatório final do inquérito relata uma fantasia e esconde a verdade, o Ministério Público não tem outra forma de atuação senão com base no que conste em tal relatório. Se a acusação feita perante a Justiça igualmente não retrata a realidade, o juiz pronunciará uma sentença sobre o que lhe foi relatado e supostamente provado. Em ambas as situações, as atuações dos agentes do Estado estarão fundadas em fantasia e não na realidade.

Um caso emblemático vitimou o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, o CAU. No auge das ilegalidades operadas pelos agentes da Operação Lava Jato, em 14 de setembro de 2017, o reitor e outros professores foram conduzidos coercitivamente pela Polícia Federal (PF), preso e posteriormente impedido de se aproximar da Universidade pela qual dedicava sua vida. Ao reitor Cancellier foram formuladas absurdas ilicitudes hipotéticas, sem base na realidade. Ele foi vítima de medidas violentas, injustas e desnecessárias, dentre as quais ilegal condução coercitiva, prisão temporária e afastamento cautelar do cargo.

Na época da operação, não havia qualquer acusação formal contra o reitor. Tratava-se de apuração de possíveis fatos que sequer teriam ocorrido em sua gestão. As decisões foram desnecessárias e arbitrárias. Tudo ocorreu no contexto do lavajatismo, quando certas autoridades disputavam quem acenderia maior fogueira para queimar quem consideravam hereges. O professor Cancellier foi tratado de maneira abusiva, jogado numa cela da penitenciária e impedido de exercer a função pública, sua razão de viver. Não havia evidência de qualquer ilícito por ele cometido e não houve contraditório. Mesmo que se estivesse diante de eventuais anomalias institucionais que demandassem atuação do Sistema de Justiça, a dignidade da pessoa humana não poderia ser ignorada. Nem se poderia afastar o princípio da inocência até o trânsito em julgado. Diligências ou providências necessárias durante investigações ou processos judiciais precisam ser as menos gravosas aos que ainda não tenham sido condenados definitivamente. Impedido de sequer se aproximar do campus da Universidade, o reitor suicidou-se.

As imputações fantasiosas e as conduções coercitivas de pessoas que não tinham sido previamente intimadas ou que tivessem se recusado a comparecer foram parte das abusividades praticadas na Operação Lava Jato. O próprio presidente Lula foi vitimado por uma ilegal condução coercitiva, por grupo que tinha projeto de poder político à margem dos princípios que orientam o Estado de Direito e a democracia. Nesta semana, o ministro Dias Toffoli proferiu fundamentada decisão na qual analisa muitas das ilegalidades havidas naquele período, bem como possibilita a responsabilização dos agentes públicos que atuaram à margem da legalidade.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 09/09/2023. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/09/6704587-a-lei-e-para-todos.html