terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Prisão e espetáculo

                                                                  Decapitação de São João Batista, Caravaggio.

A regra reconhecida pelo Estado Democrático de Direito é a liberdade. Excepcionalmente se admite prisão. Isto precisa ser cotidianamente lembrado ao ‘jornalismo mundo cão’, à parcela da sociedade civil sedenta de sangue e vingança e, sobretudo, aos juízes que decretam as prisões-espetáculo.

Nenhuma prisão é feita pela polícia. Toda prisão é determinada e/ou mantida pelo poder judiciário. A polícia apenas executa a ordem expedida. Portanto, toda prisão ilegal é de responsabilidade dos juízes.

No Brasil somente estão autorizadas as seguintes prisões:

1)     Prisão em flagrante, com fundamento no art. 301 do CPP que diz: Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Tal prisão apenas subsiste até a apresentação do preso à delegacia e à audiência de custódia. Não sendo decretada a prisão preventiva a pessoa retoma seu status de liberdade.

 2)     Prisão em decorrência de sentença penal condenatória transitada em julgado. Dispõe a Constituição em seu art. 5º que: LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. Prisão para impedir que o condenado em segunda instância participe de processo eleitoral é ilegal.

3)     Prisão provisória para investigação (temporária) ou para garantia do processo (preventiva).

Dispõe o Código de Processo Penal em seus artigos 311 e 312 que: Art.

“Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial”.

“Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”.

Portanto, as prisões exemplares fundadas na moralidade, decretadas para promoção do espetáculo midiático e as decretadas como expressão de vingança contra quem seja considerado inimigo são ilegalidades que violam frontalmente o Estado de Direito.

O espetáculo é incompatível com a institucionalidade da ordem jurídica que se pretende democrática.

Se o que pretendemos é o linchamento, sem processo e sem respeito a institucionalidade própria do Estado de Direito, entreguemos o poder de punir aos sentimentos transitórios das multidões.

Em tempo no qual os cristãos comemoram o nascimento do seu Deus, seria adequado que cada qual, que crê em tal divindade, pensasse o que fez a turba sedenta de sangue e vingança contra quem nem mesmo o representante do Império Romano viu falta alguma.

Sou João Batista e quero manter minha cabeça colada ao corpo. Por isto, escrevo abstratamente sem qualquer alusão a fatos ou processos. Qualquer semelhança é mera coincidência.

sábado, 19 de dezembro de 2020

A Revolta da Vacina

No início do século 20, o Rio de Janeiro era foco de diversas doenças, tais como febre amarela, febre tifoide, impaludismo, varíola, peste bubônica e tuberculose. A febre amarela e a varíola eram as principais causas de mortes. As tripulações de navios com destino a Buenos Aires, que paravam para desembarque de passageiros, por medo, não desciam. O Rio de Janeiro já foi a Cidade Pestilenta. Somente mais tarde tornou-se Cidade Maravilhosa.

Em 1902 foi eleito o presidente Rodrigues Alves e nomeou Pereira Passos para prefeito, para reurbanizar e sanear a cidade, e o médico Oswaldo Cruz para diretor da Saúde Pública. Assim, iniciaram-se grandes obras, alargamento de ruas, avenidas e o combate às doenças. Tal como as grandes obras para os Jogos do PAN em 2007, Jogos Militares de 2011, Olimpíadas de 2012 e Copa da FIFA de 2014 a população pobre foi desrespeitada e seus casebres e cortiços demolidos, restando-lhe ocupar os morros e incrementar as favelas.

As demolições acentuaram a crise habitacional e encareceram os alugueis. O médico Oswaldo Cruz impôs vacinação obrigatória contra a varíola e os agentes de Saúde saíam acompanhados da polícia submetendo as pessoas à vacinação forçada. A campanha de saneamento e vacinação se realizou com extremo autoritarismo. As casas eram invadidas e vasculhadas.

Além de não ter havido qualquer campanha para esclarecer sobre a importância da vacina e da higiene, políticos, militares de oposição e religiosos fizeram campanha contra a vacina. Difundiam boatos, ironizavam os cientistas e duvidavam da eficácia do remédio. A boa fé e ignorância do povo foi largamente explorada.

No início do século 20, as pessoas se vestiam cobrindo todo o corpo. Daí que os religiosos propagaram era imoralidade expor os braços das mulheres para lhes aplicar a injeção. Os líderes religiosos costumam estar do lado errado da história. Foram eles que crucificaram Cristo. Pilatos, o governador Romano, apenas lavou as mãos diante da morte de quem deveria ter a vida preservada

Desde a Regência, em 1837, entre os reinados de D. Pedro I e D. Pedro II a vacina contra a varíola era obrigatória para crianças. No Segundo Reinado, de D. Pedro II, em 1846, foi instituída a obrigatoriedade para adultos. Mas esta obrigatoriedade não era cumprida, pois a produção da vacina em escala industrial no Rio de Janeiro somente começou no final do Império, em 1884.

Incentivados por líderes oportunistas e desconfiados com o governo por causa das remoções, a população saiu às ruas contra os agentes da Saúde Pública e a polícia entre os dias 10 e 16 de novembro de 1904. O Rio de Janeiro foi transformado numa praça de guerra com bondes derrubados e edifícios depredados. O movimento foi contido e a obrigatoriedade foi substituída por restrições a direitos para quem não se vacinasse. Somente quem comprovasse ser vacinado poderia celebrar contrato de trabalho, ser matriculado em escolas, casar e viajar.

Se a história acontece e se repete, na primeira vez é tragédia e na segunda é farsa. E a farsa não é produzida pelos opositores do governo contra os interesses da população, mas pelo próprio governo que deveria velar pelo interesse público. Mas, o STF proferiu esta semana importantes decisões. Declarou que estados e municípios podem importar vacina de países que já as aplicam, se a Anvisa, politizada, não liberar o registro no prazo, declarou válidas as restrições a quem não se vacinar e rejeitou recurso para desobrigar pais a vacinarem os filhos. As companhias aéreas já anunciam que não transportarão quem não tiver se vacinado. Outras empresas também poderão impor restrições.

Vacina é palavra derivada de vaca, de onde eram retirados líquidos imunizadores. Em 1904 as pessoas foram incentivadas a rejeitá-la porque foi difundido o boato de que quem se vacinava ficava com feições bovinas. É estranho ver no século 21 pessoas agindo com irracionalidade animal, em tempo de fácil apreensão de conhecimentos científicos, tal como gado a caminho do matadouro.


Publicado em 19/12/2020, no jornal O DIA. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2020/12/6049644-joao-batista-damasceno-a-revolta-da-vacina.html



sábado, 5 de dezembro de 2020

Sérgio Moro, uma pessoa amoral?

 

Viver eticamente implica fazer escolhas e conviver com o resultado. Isto exige uma postura lógica diante da vida com a compreensão de que tudo tem consequência. Muito do que suportamos pode decorrer, exclusivamente, da conduta de terceiros ou mesmo da natureza. Mas há o que depende de nossas escolhas. A debilidade intelectual é um fator que impede a compreensão da relação de causalidade entre uma conduta e seu efeito danoso. Mas, também é responsável pela irresponsabilidade a concepção mágica da vida, que atribui às divindades o que nos acontece.

Há quem conceba sermos fantoches nas mãos de divindades e que tudo decorre da ira ou da generosidade de seres divinos. O pensamento mágico tem como contraposição a racionalidade inaugurada no século XV e da qual decorreu o Renascimento das artes e a Revolução Industrial. Mas, tal modo de pensar não chegou ao nosso cotidiano.

Vivemos um momento de crise. O Brasil tem cerca de 15 milhões de desempregados. Os direitos dos trabalhadores estão sendo sucateados. A própria Justiça do Trabalho está sendo vilipendiada. O mundo do trabalho está sendo precarizado. A pretexto da luta contra a corrupção, grandes empresas brasileiras, que traziam divisas para o país, foram levadas à falência. As riquezas nacionais estão sendo entregues às corporações internacionais, em prejuízo do povo brasileiro cuja miserabilidade aumenta e já está explicitada nos indicadores sociais.

Neste cenário macabro, um dos protagonistas da destruição surge como beneficiário do caos que ajudou a provocar, sem que se estabeleçam relação entre suas condutas e as consequências. O ex-juiz Sergio Moro foi contratado pela empresa de consultoria estadunidense Alvarez & Marsal, na função de sócio-diretor para a área de Disputas e Investigações. Entre os principais clientes da empresa, está a Odebrecht, uma das construtoras mais afetadas pela Operação Lava Jato.

Moro era o juiz responsável por julgar as denuncias contra a companhia e prender seus diretores como condição para que uns depusessem contra outros. Sua contratação evidencia conflito de interesses. Mas, aparentemente, tal como no reino da amoralidade, o ex-juiz não vê problema em se levar uma empresa à falência e posteriormente se tornar sócio da administração da massa falida.

Lawfare é expressão que designa o uso do Direito como arma de guerra. No caso, não é exagero dizer que o ex-juiz Sergio Moro age como um soldado que tira proveito dos despojos de guerra. Numa guerra o vencedor se sente no direito de se apropriar dos bens do vencido. É o butim. Mas, a lógica da guerra é diversa da lógica da Justiça e um juiz não pode ter proveito da causa que julga. E por isso, a imparcialidade é um requisito para o exercício da magistratura. Juízes não podem ser amorais, a ponto de não conceberem limites para suas atuações. Mas, não sendo deuses, nem demônios, são capazes das mesmas condutas dos que condenam se inexistirem regras claras e eficazes órgãos de controle.

Se a Constituição, desde 2004, veda aos magistrados exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração, não é preciso norma legal para vedar que um juiz seja contratado por empresa cujas dificuldades decorram de seus julgamentos. A incompatibilidade, evidenciada pelo conflito de interesses, decorre da eticidade do próprio sistema jurídico. Mas, agora, quem tem o poder disciplinar é a OAB, onde o ex-juiz tem sua inscrição profissional como advogado.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 05/12/2020. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2020/12/6040569-joao-batista-damasceno-sergio-moro-uma-pessoal-amoral.html