sábado, 28 de março de 2020

Coronavírus e projeto genocida

Neste momento, lideranças religiosas que defendem tão veementemente a vida, quando se trata de aborto, se calam ante sugestão de morte de idosos em proveito da ordem econômica.
Derrotada e destruída na 1ª Guerra Mundial, a Alemanha perdeu suas fontes de renda e seus recursos naturais. O capital mundial vivia mais uma de suas crises. Como solução difundiu-se a ideia de que somente aqueles que tivessem utilidade tinham o direito de viver. No livro Minha Luta, de Hitler, está explícita a concepção genocida.
Neste momento em que um vírus se difunde mundialmente, a ideia de que a morte de dezenas de milhares de pessoas em prol da ordem econômica não faz diferença volta a nos assombrar. Para idosos e pessoas com doenças pré-existentes o contato com o vírus pode ser fatal. Por isso, autoridades sanitárias propõem o confinamento para evitar que os jovens sadios sejam vetores do micro-organismo. A situação é agravada pela precariedade dos hospitais públicos e do sistema de saúde, sucateados por sucessivas políticas neoliberais. A emenda constitucional 95, que congelou os gastos com saúde por 20 anos, é uma lástima. Mas, o presidente da República ocupou cadeia de rádio e TV conclamando a população a voltar às ruas, para evitar danos à economia.
A conduta do presidente não é ditada pela irracionalidade. Trata-se de opção racional entre a vida e a lucratividade da ordem econômica. Nosso sistema de produção vê a pessoa humana com duas finalidades: produzir e consumir. A eliminação, pelo vírus, dos que não produzem é saudada por quem não tem compromisso com a vida humana e veem na morte solução para o problema da previdência e dos gastos sociais. O projeto é genocida!
Mas, o impacto sobre o sistema produtivo, em razão do confinamento, pode ser minorado por uma politica de renda mínima. E isto implicaria apenas ínfima parcela do que é entregue mensalmente aos banqueiros, categoria a que pertence o ministro Paulo Guedes.
O nazismo foi retratado como período da banalização do mal. Antes do sacrifício de judeus, comunistas, ciganos, homossexuais e opositores os enfermos crônicos é que foram eliminados. Os indesejáveis, enquanto produtivos, eram encaminhados para campos de trabalho forçado. A eliminação final somente ocorreu quando já não mais se mostravam úteis.
A ideia que somente deveriam viver os fortes, inteligentes e competentes se contrapunha ao ideário de Sócrates e Cristo, que valorizaram os pequeninos e propagaram o conceito de defesa dos fracos e da prevalência da justiça ao invés da força. Mas parcela dos líderes religiosos na Alemanha apoiou o nazismo, esquecendo o ideário da divindade a que diziam servir. Neste momento, lideranças religiosas que defendem tão veementemente a vida, quando se trata de aborto, se calam ante sugestão de morte de idosos em proveito da ordem econômica.
A humanidade é uma comunidade em que cada vida e cada pessoa importam. Somos um todo. Não construímos as instituições para que os mais fortes sobrevivessem em detrimento do sacrifício dos mais fracos, mas para que as nossas relações sejam permeadas por valores que nos possibilitem auxiliar uns aos outros e que todos possamos desfrutar do resultado do trabalho social, para o qual cada um dá um tipo de contribuição.
Não podemos, em nome da ordem econômica e da apropriação privada, permitir que o coronavírus seja difundido, propiciando a eliminação daqueles que são tratados como inúteis para o mercado. A política genocida que já elimina pretos e pobres na periferia não pode ser estendida aos idosos e doentes. Que todos tenham vida e que a tenham em abundância!

quinta-feira, 26 de março de 2020

Um projeto genocida

Derrotada na 1ª Guerra Mundial, a Alemanha viveu dias tenebrosos nos anos que se seguiram. Perdeu suas fontes de renda, o carvão necessário para aquecer as casas e os fornos estavam sendo utilizados como compensação de guerra e a população jovem tinha morrido em batalha. A população era composta de mutilados e idosos. Vigia na Alemanha a ideia de que somente aqueles que tivessem finalidade na sociedade tinham o direito de viver. Esta concepção está expressa no livro Minha Luta que Hitler escreveu enquanto esteve preso de 1923 a 1925. O livro deixa explícito o projeto genocida.

Vivemos no mundo momento dramático. Um vírus que nossos organismos desconhecem assombra a população mundial, que pode causar insuficiência respiratória aguda. Nas pessoas sadias e com boa capacidade física, tal gripe realmente não deve causar grandes danos. Mas, mesmo sem os sintomas, estas podem infectar outras com maior debilidade física e levarem-nas ao óbito.

Estão na lista dos que podem morrer, se tiverem contato com o vírus, as pessoas com mais de 60 anos e as acometidas de doenças pré-existentes. Os jovens com saúde podem não desenvolver a crise respiratória, mas podem ser vetores do micro-organismo. Daí a recomendação das autoridades sanitárias de que a população busque o confinamento para evitar o contágio generalizado.

O agravamento da situação decorre do frágil sistema de saúde pública no Brasil, incapaz de atender a todos os que necessitem, se o mal se generalizar. Quem conhece a precariedade dos hospitais públicos, sucateados por sucessivas políticas neoliberais, tem consciência do que pode ser capaz uma infecção generalizada em pessoas debilitadas. A emenda constitucional 95, que congelou os gastos com saúde, é uma lástima.

O ministro da Saúde, Luiz Mandetta, em reunião com os presidentes do STF, da Câmara dos Deputados e do Senado, para a qual o presidente Jair Bolsonaro não foi convidado, traçou um quadro dramático para o Rio de Janeiro e Minas Gerais com a chegada do coronavírus, em razão da precariedade das habitações, ausência de saneamento, desnutrição, débil condição de transporte de massa e precariedade hospitalar. Mas, ainda assim, o presidente da República ocupou cadeia de rádio e TV para conclamar a população a voltar às ruas, por imperativo do lucro do capital a que serve.

Mas a conduta do presidente não é ditada pela irracionalidade. O presidente não sofre de suas faculdades mentais. Ao contrário, trata-se de opção, racionalmente elaborada, entre a vida e a lucratividade da ordem econômica. Nosso sistema de produção vê a pessoa humana com duas finalidades: produzir e consumir. Aqueles que, por suas condições de miserabilidade, não têm capacidade de dar lucro, consumindo os produtos e serviços que oferta, bem como aqueles que não têm capacidade de serem produtivos, são tratados como fardo para a ordem econômica e devem ser eliminados.

Neste contexto de eliminação daqueles que não são vassalos úteis da ordem produtiva ou que não tenham capacidade de consumo, um vírus que possa dizimar esta parcela da população é saudado por quem não tem compromisso com a vida humana. Para estes, o problema da Previdência Social se resolveria sem a necessidade de reforma que proporcione debate e exponha aqueles que votam contra o povo. Outros gastos igualmente seriam evitados ante a eliminação dos indesejáveis pela doença.

O projeto é genocida!

No início do século XX houve a difusão de uma corrente filosófica que dizia ter sido a civilização criada pelos fortes, inteligentes e competentes e que indivíduos como Sócrates e Cristo negaram essa concepção, valorizaram os pequeninos e propagaram um conceito que protegia os fracos e valorizava a justiça ao invés da força. Aquele conceito filosófico concebia que somente as pessoas com dons especiais tinham o direito de viver. Assim, a terra e os recursos nela existentes deveriam ser reservados aos ‘super-homens’.

A concepção que hoje propaga é pior que o liberalismo. Este visa assegurar os direitos de quem já os tenham, sem preocupação com quem nada tem. O pressuposto do liberalismo é que cada qual, por seus próprios, meios atinja seus objetivos, pouco importando quem possa ser atingido. Não há outra ética no nosso sistema de produção que não seja o lucro. O que os liberais não respondem é como aqueles que nada têm, que foram privados dos recursos naturais não decorrentes de trabalho, podem atingir seus objetivos. Como atingir seus ideários se foram privados dos meios? A estrutura fundiária no Brasil é emblemática. Ninguém tem condição de justificar a apropriação de latifúndios quando, na sua origem, o próprio ordenamento jurídico impedia que aqueles que nada tinham pudessem ser proprietários.

O impacto sobre o sistema produtivo, em razão do confinamento, pode ser minorado por politica de renda mínima. Se for garantido um programa de renda mínima para os desempregados, para os trabalhadores informais e para os trabalhadores formais que forem dispensados de suas atividades, com os racionamentos necessários, será possível manter a funcionalidade do sistema enquanto a crise perdurar. E isto implicaria apenas ínfima parcela do que é entregue mensalmente aos banqueiros, categoria a que pertence o ministro Paulo Guedes.

O nazismo na Alemanha foi um momento da história da humanidade no qual se testou o limite da perversidade. A filósofa Hanna Arendt o descreveu como a banalização do mal. Mas,não foram apenas os judeus que foram sacrificados. Foram igualmente eliminados os comunistas, os ciganos, os homossexuais e os opositores. Mas, antes de todos, foram eliminados aqueles que não produziam. Assim, os enfermos crônicos foram o ensaio do que se faria com outros segmentos da sociedade. Enquanto podiam produzir, todos os indesejáveis eram encaminhados para campos de trabalho forçado. A eliminação final somente ocorreu quando já não mais se mostravam úteis.

É preciso lembrar que parcela dos líderes religiosos na Alemanha apoiou o genocídio, mas não é de se estranhar. A divindade de certas pessoas que se dizem cristãs não morreu de doença. Foi torturada e crucificada pelo poder político e religioso. E não foi pelo Estado Romano. É preciso lembrar que Pilatos não condenou Cristo. Ao contrário, lavou as mãos e o entregou aos sacerdotes vendilhões dos templos, ávidos de lucros que haviam sido censurados.

Empresários gananciosos chegam a colocar na porta de seus estabelecimentos placas informando o número de pessoas que podem morrer em contraposição ao prejuízo econômico que podem suportar. Desconsideram que se trata de pais, mães, avós, avós, tios e tias, assim como outros parentes ou companheiros e companheiras que têm importância para muitos. São pessoas. A humanidade é uma comunidade em que cada vida e cada pessoa importa. Somos um todo.

As instituições não foram construídas para que os mais fortes sobrevivessem em detrimento do sacrifício dos mais fracos. Ao contrário, vivemos em comunidade para que as nossas relações sejam permeadas por valores que nos possibilitem auxiliar uns aos outros e que todos possamos desfrutar do resultado do trabalho social, para o qual cada um dá um tipo de contribuição.

Não podemos, em nome da ordem econômica e da apropriação privada, permitir que o coronavírus seja difundido, propiciando a eliminação daqueles que são tratados como inúteis para o mercado. A política genocida que já elimina pretos e pobres na periferia não pode ser estendida aos idosos e doentes. Que todos tenham vida e que a tenham em abundância!

sábado, 14 de março de 2020

Pum de palhaço não é cultura


A secretária da Cultura Regina Duarte, em seu discurso de posse, elencou um conjunto de comportamentos que seriam expressão do seu conceito de cultura. Dentre eles estaria “aquele pum, produzido com talco, espirrando do traseiro do palhaço e fazendo a risadaria feliz da criançada. Cultura é assim. É feita de palhaçada”, disse. O desastroso discurso expressa a concepção de outros que, igualmente, acreditam que governar é apenas fazer palhaçada, embora não sejam artistas circenses.

Cultura é um conjunto de valores que permeiam as relações sociais. São ideias, comportamentos, símbolos e práticas sociais reiteradas por gerações. Cultura é parte da herança social que dá a dimensão da humanidade. Só o ser humano é capaz de produzir cultura. As expressões culturais distinguem-se dos comportamentos naturais ou biológicos. A cultura é aprendida com a socialização, desenvolvida e transmitida. É um complexo de comportamentos e conhecimentos; são crenças, artes, normas de conduta e costumes. Cultura é a forma de viver, de interagir e de se organizar de um povo, transmitida de geração para geração a partir de vivência e tradição comuns. É a identidade do povo.

Nos anos 80, o ministro da cultura Aluísio Pimenta disse que broa de milho também é cultura. E foi ridicularizado por uma elite que confunde cultura com belas artes. O que ele quis dizer é que comer é um ato biológico, mas o que comer e como comer é cultural. Os hábitos alimentares dos asiáticos nos parecem estranhos, assim como os povos do Oriente Médio têm nojo quando falamos que comemos camarão e carne de porco. Mas, pum de palhaço na cara do povo não é cultura. É escárnio com a pessoa humana. É a busca da desqualificação, preparando o terreno para a supressão dos direitos. Numa sociedade hierarquizada, rir do outro é imaginar-se em patamar inatingível por similar menosprezo. E os programas televisivos do “mundo cão” e das “pegadinhas” são a pedagogia para a desqualificação. Enquanto o povo ri ou reza seus direitos vão sendo abolidos e o patrimônio público transferido para mãos particulares.

Não se pode confundir a arte circense, que é expressão da cultura, com o pum do palhaço. Nem palhaçada com cultura. Palhaçada, às vezes, é mero desrespeito ao outro, usada para a desqualificação e o aviltamento do ser humano. A palhaçada pode ser o vilipêndio das próprias instituições por quem ocupa os cargos, sem decoro. O uso do carro e da faixa presidencial por um ator para ofender jornalistas, sob o aplauso de uma claque que não percebe que seus direitos estão sendo aniquilados, é emblemático. O ataque não foi aos jornalistas presentes. Mas, à imprensa e à cultura da informação e da comunicação em tempo de fake News e pós-verdade.


Numa sociedade que desumaniza as pessoas, o primeiro processo é submetê-las ao escárnio. A história registra a existência dos “Circos dos Horrores”, onde pessoas com deficiência física ou mental eram expostas para o entretenimento. O avanço da medicina e a difusão da cultura dos direitos humanos promoveu alteração no sentimento da sociedade. Pessoas com doenças ou mutações genéticas passaram a ser vistas como iguais, e não bichos a serem expostos. O primado da dignidade humana e a constituição de uma cultura de direitos humanos acarretaram o fim dos “Circos dos Horrores, espetáculo degradante para a humanidade. O pum, com talco, na cara do povo pode produzir a ‘risadaria’ infantilizada de quem ainda não percebeu que será atingido. Mas, não é cultura. A avacalhação retira a dignidade de quem a pratica e de quem a aceita, por proximidade ao poder. E, somente um servil bem remunerado é capaz de servir, indignamente, de escada para o protagonismo de um ser vil.


Fonte: Publicado originariamente no jornal O DIA, em 14/03/2020, pag. 10. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2020/03/5880851-joao-batista-damasceno--pum-de-palhaco-nao-e-cultura.html

domingo, 1 de março de 2020

Os palhaços e os donos do circo

Todas as notas de um jurado que sambou o samba de uma das escolas que ele avaliava foram invalidadas. Para a Liga das Escolas de Samba o principal requisito exigido de um julgador é a imparcialidade. No Brasil estávamos nos acostumando com práticas corruptivas no funcionamento institucional a ponto de não percebermos vicioso o ajuste de magistrado com membros do MP sobre testemunhas a arrolar, avisos sobre prazos e organização de operações policiais.
A violação abusiva de comunicação telefônica e divulgação por quem tinha o dever de manter sigilo profissional, se a interceptação tivesse sido legal, foi exemplo emblemático de que a lei não é para todos, porque não houve responsabilização.
O desrespeito à Constituição e ao ordenamento jurídico por quem tinha o dever de lhe ser fiel e a ausência de consequência pelas violações aos direitos fundamentais abriu a porteira para que os senhores da truculência se sentissem autorizados ao pleno desrespeito ao Estado de Direito e à democracia. A Liga das Escolas de Samba deu uma lição que deveria valer em todo o ano e em todas as instituições: vale o que está escrito. A Constituição também deveria valer pelo que nela contém.
Ulisses Guimarães, na promulgação da Constituição em 05 de outubro de 1988, disse que: “A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar sim! Divergir, sim! Descumprir, nunca! Afrontá-la, jamais! Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: Rasgar a Constituição, trancar as portas do parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério! Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra. Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina”. Ulisses guiou o povo para a liberdade e, tal como Moisés, seu corpo não foi encontrado.
Durante a ditadura empresarial-militar o presidente nacional da OAB foi chamado de interlocutor da sociedade civil com o governo. Tal interlocução atestava o divórcio entre a sociedade civil e o Estado que deveria ser a expressão dela. Neste cenário sombrio, enquanto o palhaço convoca golpe os donos do circo contabilizam os lucros, tal como fizeram em tempos passados nos quais financiaram grupos de repressão.
Neste carnaval, não tivemos apenas uma lição sobre imparcialidade. Tivemos também enredos exaltando a fraternidade e a cultura enquanto agentes do Estado exaltam a truculência, a ignorância e a ditadura. A campeã no Rio com o enredo "Viradouro de alma lavada" tratou do grupo das Ganhadeiras de Itapuã, quinta geração de mulheres que lavavam roupa na Lagoa do Abaeté e faziam outros serviços em Salvador em busca da compra de sua alforria.
A Unidos da Tijuca homenageou Evando Santos, o pedreiro que montou o Centro Cultural e Biblioteca Comunitária Tobias Barreto, no Largo do Bicão, e, com doações, ajudou a criar bibliotecas comunitárias pelo Brasil. Num dos carros alegóricos estava Francisco Olivar Vavá, um livreiro de rua que fica na saída do Metrô da Carioca, e aos sábados na Praça 15, ajudando na difusão da cultura do livro.
O carnaval serviu para documentar o divórcio entre a sociedade e as instituições, a distância entre a beleza da cultura popular e a ignorância truculenta que nos governa, bem como o conflito inconciliável entre o mundo do trabalho e o mundo do capital.

Publicado originariamente no jornal O DIA, na edição de 29/02/2020, pag. 8. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2020/02/5875053-joao-batista-damasceno--os-palhacos-e-os-donos-do-circo.html