sábado, 26 de março de 2022

100 anos do Partidão

 

O ano de 1922 foi emblemático na história do Brasil. Já escrevi neste espaço sobre ocorrências relevantes cujo centenário estamos comemorando, dentre elas, nascimento do ex-governador Leonel Brizola, nacionalista e popular, do antropólogo Darcy Ribeiro, da Semana de Arte Moderna, do Levante do Forte de Copacabana e da fundação do Partido Comunista (PCB). Comemoramos também o bicentenário da data oficial de Independência do Brasil

Alusivos à Semana de Arte Moderna Ruy Castro lançou dois livros, ‘Metrópole a Beira Mar’ e ‘As Vozes da Metrópole’. Além das obras, deu entrevistas desdenhando da Semana dos paulistas quando o Rio de Janeiro já era moderno e única cidade brasileira com mais de um milhão de habitantes. Mas tais obras de Ruy Castro contrastam com três boas referências à Semana de Arte Moderna no livro ‘O Anjo Pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues’, de 1992. Prefiro o antigo conceito do conterrâneo Ruy Castro. A Semana sistematizou a modernidade e é, também, uma referência de 1922.

Sobre Leonel Brizola já escrevi. Pretendo tratar de cada uma das ocorrências históricas. O tema de hoje é a fundação do partido que tentou organizar o mundo do trabalho para que a própria classe trabalhadora tomasse em suas mãos o seu destino. Ontem, dia 25, completou 100 anos da fundação do PCB. Em 1947, sob o fundamento de que não era um partido nacional, a Justiça Eleitoral cassou o seu registro e, em consequência, os mandatos dos deputados eleitos: Jorge Amado, Carlos Marighella, Gregório Lourenço Bezerra, Maurício Grabois, João Amazonas, Francisco Gomes, Agostinho Dias de Oliveira, Alcêdo de Moraes Coutinho, Abílio Fernandes, Claudino José da Silva, Henrique Cordeiro Oest, Gervásio Gomes de Azevedo, José Maria Crispim e Oswaldo Pacheco da Silva. Muitos deles são personagens históricos da luta contra a ditadura do Estado Novo (1937-1945) e da ditadura empresarial-militar (1964-1985). Igualmente o mandato do senador Luis Carlos Prestes.

A decisão estava no contexto da Guerra Fria e, simultaneamente, o Brasil, atendendo aos interesses dos EUA, rompeu relações diplomáticas com a União Soviética, reatadas no Governo João Goulart em 1961. Os membros do partido proscrito tentaram registrar um outro partido: o Partido Popular Progressista (PPP). Mas a Justiça Eleitoral lhes negou registro, porque eram comunistas.

De nada adiantou mudar o nome de Partido Comunista do Brasil (PCB) para Partido Comunista Brasileiro (PCB). Com qualquer nome estava fadado a ser considerado seção brasileira da Terceira Internacional Comunista e, como parte de uma organização internacional, proibido pela legislação. Na verdade, o Brasil é que era coadjuvante da Guerra Fria, com sua soberania reduzida e subordinado à política externa estadunidense.

O poeta Ferreira Gullar, em 1982, por ocasião dos 60 anos de fundação do PCB escreveu o seguinte poema: “PCB. Eles eram poucos e nem puderam cantar muito alto a Internacional naquela casa de Niterói em 1922. Mas cantaram. E fundaram o partido. Eles eram apenas nove: o jornalista Astrojildo, o contador Cordeiro, o gráfico Pimenta, o sapateiro José Elias, o vassoureiro Luís Peres, os alfaiates Cendon e Barbosa, o ferroviário Hermogênio e ainda o barbeiro Nequete, que citava Lênin a três por dois. Em todo o país, eles não eram mais de 70. Sabiam pouco de marxismo, mas tinham sede de justiça e estavam dispostos a lutar por ela. Faz 60 anos que isso aconteceu. O PCB não se tornou o maior partido do Ocidente nem mesmo do Brasil. Mas quem contar a história de nosso povo e seus heróis tem que falar dele. Ou estará mentindo”.

De 1922 a 2022 as relações sociais se alteraram. O avanço científico-tecnológico propiciou novos modos de produzir os bens destinados à satisfação das necessidades humanas e novas formas de relações de poder. A história propiciou vitórias e derrotas a projetos políticos e personagens. Mas aqueles que tinham sede de justiça e se dispuseram a sacrificar as suas vidas por ela foram vitoriosos simplesmente por terem tomado o partido dos injustiçados. Tomaram partido e lutaram e por isso são heróis.

Dante Alighieri, autor da obra ‘Divina Comédia’, que deu origem ao idioma italiano, a divide em três partes: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Mas na antessala do inferno ficam os que não podem ir para o céu ou para o inferno, recompensas de forma positiva ou negativa pelas tomadas de posições. A antessala do inferno, local de tortura, é a morada dos indecisos, dos covardes que passaram a vida ‘em cima do muro’, dos que não quiseram tomar decisões por serem oportunistas.

Se quem contar a história de nosso povo tem que falar da agremiação fundada há 100 anos ou estará mentindo, como disse o poeta, igualmente estará mentindo quem não falar daqueles que nela atuaram, com todos os dissabores que sofreram por se colocaram ao lado da luta pela dignidade da pessoa humana.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 26/03/2022, pag. 14.Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/03/6366190-joao-batista-damasceno-100-anos-do-partidao.html

sábado, 12 de março de 2022

Destamparam o bueiro da barbárie

 


As referências às Sete Maravilhas do Mundo Antigo nos dão dimensão do que foram capazes povos que viveram milhares de anos antes de nossa existência. Além das sete escolhidas outras poderiam ser incluídas, dentre as quais as construídas pelos nativos americanos e povos africanos. As pirâmides do Egito são um assombro. Igualmente o são a Muralha da China e as construções no Peru, notadamente Machu Picchu. O declínio das sociedades que produziram tais grandiosidades nos mostra que as sociedades têm seus apogeus, mas também declinam. Os valores que inspiram um povo numa determinada época podem não subsistir e serem capazes de inspirar as gerações subsequentes. Civilizações podem revisitar a barbárie.

O Código de Hamurabi, mais antigo texto de defesa dos direitos humanos que se tem notícia na história da humanidade, foi editado há cerca de 3.800 anos, 1.200 anos antes da construção dos Jardins Suspensos da Babilônia. Nada resta dos jardins de Nabucodonosor a não ser a geografia desértica na qual se situava e onde empresas dos EUA subtraem petróleo depois da brutal invasão do Iraque.

No Brasil, depois de um longo período considerando-nos país do futuro e com largos progressos, que se acentuaram com a Revolução de 1930 e Getúlio Vargas e com os avanços da Era JK, que promoveu 50 anos em 5, desistimos do pacto civilizatório. Da Era JK resta-nos a política de extermínio, inaugurada com o general Amaury Kruel, que instituiu o primeiro grupo de policiais autorizados a matar, quando chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, em 1957.

De lá para cá, notadamente a partir de 1964, instituiu-se o desrespeito aos direitos da pessoa humana, torturas, mortes e desaparecimentos de opositores. Além disto, multiplicaram-se os esquadrões da morte, grupos de extermínio, mãos brancas, justiceiros e por último as organizações paramilitares denominadas milícias.

As milícias não são grupos alheios ao Estado. Assim como nos recentes conflitos internacionais os Estados beligerantes têm utilizado mercenários e forças privadas uniformizadas como se fossem Exército regular, tais grupos atuam a partir de dentro da estrutura do Estado, sem o que já teriam sido enquadrados e cessadas suas atividades. O livro ‘A República das Milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro’ nos dá um panorama de tal realidade; o assassinato da juíza Patrícia Acioli por agentes do Estado, com arma e munição do Estado, porque julgava tais grupos e os condenava, é demonstrativo dela.

A barbárie impera e é comemorada. Depois de amanhã, dia 14, completarão quatro anos do assassinato da vereadora Marielle Franco, sem que se tenha esclarecido quem a mandou matar. Talvez jamais saberemos. A execução da jovem vereadora ocorreu no 27º dia da intervenção federal na área de Segurança do Rio de Janeiro que teve como interventor o atual ministro Braga Neto. Se o assassinato de Marielle tivesse sido considerado uma afronta à intervenção o crime teria sido integralmente esclarecido. Mas ao contrário, se tornou símbolo de deboche com quebra de placa na qual constava o nome da vítima. Os autores da barbárie emolduraram a placa e a ostentam até a presente data.

O ano de 2018 foi um ano emblemático da História do Brasil. Foi o ano no qual se consolidou um golpe contra as instituições democráticas e contra o Estado de Direito. A mídia e instituições custaram a compreender o que se tramou e se executou. Somente quando ameaçadas as instituições se desvincularam do projeto em andamento. O cerco ao prédio do STF, as manifestações em frente a quarteis e os ataques à magistratura demonstraram do que são capazes os que não têm apreço pelos valores civilizatórios consagrados na Constituição de 1988.

Não se pode afastar a hipótese de que o atentado à Marielle compusesse um projeto político, tal como foram as bombas que explodiam pelo Rio de Janeiro nos estertores da ditadura empresarial-militar, até o dia no qual uma delas explodiu no colo dos terroristas oficiais no Riocentro em 30 de abril de 1981.

No último dia 8, Dia Internacional da Mulher, que evoca data de luta das mulheres operárias por redução da jornada de trabalho e outros direitos, dentre os quais o direito de voto, a foto do pedaço de placa emoldurada, segurada pelos dois deputados que a quebraram, foi novamente postada nas redes sociais. Trata-se de um gesto desumano que tripudia sobre a dor da família que até hoje, decorridos quatro anos, não tem resposta sobre o motivo ensejador de tal assassinato. A indiferença à dor alheia expressa o declínio das sociedades rumo à barbárie. Mas ainda é possível reverter.

  

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 12/03/2022. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/03/6356041-joao-batista-damasceno-destamparam-o-bueiro-da-barbarie.html