Ao fim da Idade Média o
expansionismo português se estendeu ao mundo. O capitalismo comercial
estabeleceu definitivamente a globalização. O Estado Português construiu
fortificações em toda a costa brasileira, nas costas oriental e ocidental da
África, na Índia, na China, nas Filipinas e outros lugares do Oceano Pacífico.
Ao tempo da ocupação do Brasil, Portugal tinha uma população de dois milhões de
habitantes. Quase metade rumou em direção às novas terras conquistadas em busca
de riquezas. Mas um problema se apresentou: quem trabalharia? Não seriam os
fidalgos portugueses que se disporiam a lavrar a terra, escavar para tirar
ouro, plantar cana para fazer açúcar ou a fazer os carregamentos dos fardos
para encher os navios com as riquezas pilhadas dos povos dominados.
A história das sociedades é a
história das lutas daqueles que são forçados a realizar os trabalhos com
aqueles que se apropriam e gozam do resultado do trabalho. Assim foi a
colonização do Brasil. Havendo demanda por mão de obra num reino tão vasto como
o Português depois das navegações, a aristocracia portuguesa lançou mão da
escravização da população africana. Com esse propósito estimulou rivalidades,
promoveu guerras entre povos e instituiu um largo comércio de pessoas pelo
mundo.
Toda a atividade empresarial
portuguesa no período das Grandes Navegações se fez com algum tipo de
associação com a Inglaterra. O próprio surgimento do Estado Português coincide
temporalmente com a conquista da Grã-Bretanha pelos normandos em 1066, dando
origem à atual aristocracia e elite britânica. Portugal e Inglaterra constituem
a mais antiga aliança entre nações que o mundo conhece. Até o padroeiro é o
mesmo: São Jorge. Se a América demandava escravização de pessoas para trabalho
forçado a Inglaterra cuidou de prover, tanto para suas colônias na América do
Norte quanto para a América Central, do Sul e Antilhas. As cidades da costa
oeste da Grã-Bretanha cresceram com seus portos exportadores de gente.
A voracidade da exploração exterminou a população indígena e
escravizou pessoas da África para trabalhos nas minas e engenhos de
açúcar. O capitalismo e a escravidão africana uniram-se num laço indissociável
e propiciaram a acumulação de capital em grande escala. Assim, se fez mundial e
transmudou-se de comercial para industrial. O ouro das Minas Gerais, cuja
pilhagem foi obstada por Borba Gato, Felipe dos Santos e por Tiradentes, acabou
nos cofres ingleses e aceleraram o processo de industrialização daquele país.
Mas o sistema traz as suas próprias contradições. O
desenvolvimento do capitalismo industrial demandou mercados e a Inglaterra,
senhora do comércio internacional de pessoas escravizadas, passou a advogar a
‘libertação dos escravos’ a fim de constituir uma sociedade de consumo. A mesma
Inglaterra que se constituíra e acumulara capital com a mão de obra escravizada
demandava a mão de obra livre e assalariada propícia ao consumo das
quinquilharias que produzia. O trabalho livre tornou-se mais lucrativo, pois a
importação e manutenção da mão de obra escravizada demandava alto investimento
de capital, constituía mercado consumidor e o trabalhador livre não demandava
despesas com a manutenção de sua sobrevivência.
O trabalhador livre estava livre de tudo. Livre inclusive da
possibilidade de ser proprietários dos meios para a produção. A Lei de Terras
no Brasil, de 1850, impedia a ocupação de terra produtiva por quem não pudesse comprá-la.
Foi uma forma de impor que algumas pessoas trabalhassem para quem as pudesse adquirir.
Em discurso no parlamento alguns deputados imperiais chegaram a questionar a
possibilidade de distribuição de terras aos pobres e perguntavam: se todos
tivessem terra quem trabalharia nas suas? A propriedade dos trabalhadores
livres se constituía – unicamente - na força de trabalho, passível de ser
vendida aos empregadores nos meios de produção que detinham. Empregador é quem
emprega força de trabalho alheia em seus meios de produção. O trabalho é o que
produz.
A ameaça dos trabalhadores organizados de tomar os meios de
produção domesticou o capital e foi razão da regulamentação das relações de
trabalho, fornecimento de bens e serviços indispensáveis à vida com dignidade e
instituição do estado do bem-estar social. Mas o neoliberalismo pretende o retorno
do mundo do trabalho ao período anterior ao das leis trabalhistas. A reforma
trabalhista que possibilita a terceirização, isentando de responsabilidade o
tomador do serviço e empregador da mão de obra, expressa o retorno à exploração
desmedida do mundo do trabalho. A prática das vinícolas gaúchas em cujas
propriedades foram encontrados ‘boias-frias’ em situação análoga a de escravos
expressa o rumo que a relação capital-trabalho está tomando. Se o mundo do
trabalho não reagir sua precarização poderá se acentuar. Houve reação da
sociedade e os produtos das vinícolas chegaram a ser rejeitados em certas
empresas comerciais. A venda de suco no Armazém do Campo, que fica na Rua Mem
de Sá, na Lapa, no Rio de Janeiro, produzido em cooperativas de trabalhadores
do MST, portanto livres da precarização, chegou a aumentar 200%. A humanidade por vezes tende retornar à
barbárie. A história recente do Brasil nos comprova esta possibilidade. Mas
também reinventa sua história rumo ao horizonte.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 11/03/2023,
pag. 14.
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