Uma farsa foi montada. Um delegado
substituto chegou a indiciar mais de 60 pessoas, inclusive a mulher e filhos do
pedreiro, como membros de organização criminosa. Presa a família do pedreiro
ninguém mais perguntaria por seu paradeiro. Nem todos os indiciados foram
denunciados à justiça. Mas coube à juíza do caso remeter o processo ao
Procurador Geral de Justiça para que ampliasse o rol de acusados. Mídia e
instituições do sistema de justiça estavam irmanados com o projeto de
segurança. Coube a um delegado indignar-se com a injustiça e elaborar relatório
paralelo, trazendo à luz o que se urdia.
O documentário ‘Cadê o Amarildo?’ estreou ontem na
Globoplay, 10º aniversário da prisão, tortura seguida de morte na UPP da
Rocinha e sumiço com o corpo do pedreiro Amarildo, quando o Secretário de
Segurança era o Delegado da Policia Federal José Mariano Beltrame, no Governo
Sérgio Cabral. O ex-governador reapareceu. Mas fica a pergunta: Onde está
Mariano?
O Caso Amarildo coincidiu com a indignação da
sociedade brasileira com os recursos empregados na realização dos Grandes
Eventos, notadamente, Olimpíadas e Copa do Mundo. Como sempre ocorre com os
gastos militares a sociedade não fora informada que iguais valores eram gastos
com as Olimpíadas das Forças Armadas, enquanto faltavam para hospitais,
escolas, política de habitação, transporte, saneamento básico e outros
indispensáveis à vida com qualidade.
Além das obras para os Grandes Eventos, vultosos
recursos foram gastos na área de segurança para garantir os negócios dos
cartolas. Com a política de segurança gastava-se mais que com educação e saúde,
conjuntamente. A segurança dos negócios e os negócios da segurança são áreas
pouco ou quase nada objeto de curiosidades e denúncias. Talvez decorra do fato
de se tratar de área sensível, onde as controvérsias não se resolvem à luz do
dia. Os personagens que saíram das sombras, dos porões e dos esgotos e assombram
a democracia nos dão conta de quem são os que fazem negócios a pretexto de
garantir segurança pública.
Quem não conhece os reais objetivos das políticas
de segurança pode até se embevecer com os discursos, notadamente porque
legitimadas pela mídia transformada em mera porta-voz das autoridades. Matérias
sobre a área de segurança se limitam a reproduzir cegamente discursos de
autoridades. Assim foi implantada a Política de Extermínio no Rio de Janeiro a
partir de 2007.
Desde os Jogos Panamericanos de 2007 fora
instituída no Rio de Janeiro a Política de Extermínio de pretos e pobres para
que os eventos pudessem acontecer com segurança para os investidores. Naquele
ano foram realizadas duas chacinas à luz do dia: as Chacinas do Alemão e da Coréia.
Antes, as chacinas eram realizadas após o anoitecer ou nas madrugadas. Para
exemplificar, lembremos das chacinas da Candelária e de Vigário Geral.
As Chacinas do Alemão e da Coréia foram um ponto de
inflexão na política de segurança no Estado do Rio de Janeiro, caixa de
ressonância para o Brasil. Havia um encantamento com o projeto de eliminação
física de pessoas em conflito com a lei e setores diversos da sociedade
acreditavam que a criminalidade se elimina eliminando quem eventualmente
deveria, num Estado de Direito, ser processado e julgado. Um dos maiores
líderes políticos da esquerda, em julho de 2007, comentando aqueles crimes do
Estado, disse que “não se combate crime com rosas”. Juristas de uma comissão de
defesa dos direitos humanos, que acompanhavam as investigações das execuções,
foram destituídos pela direção da instituição que compunham.
Mas quem cria cachorro bravo deve ter cuidado
porque ele pode sair de controle e morder até o próprio dono. Naquele período
mais de vinte secretários de segurança dentre as vinte e sete unidades da
federação eram delegados federais, com largo trânsito no Ministério da Justiça.
O que se fez foi o embrião da Lava Jato e ascensão da direita odiosa. Em 14 de
julho de 2013, menos de um mês da manifestação que reuniu mais de um milhão de
pessoas no Centro do Rio de Janeiro, um morador da Rocinha foi conduzido
coercitivamente para a UPP, sem mandado judicial que o autorizasse e sem que se
tratasse de prisão em flagrante, e de lá não saiu vivo. Torturado para delatar
o que não sabia em determinado momento clamava: “Me matem, mas isto não! Não
façam isto comigo. Podem me matar. Mas isto não!”. A descrição é de um dos
policias que estava no alojamento ao lado do local onde Amarildo era torturado.
Não se sabe o que fizeram com ele a ponto dele pedir para ser morto ao invés de
submetido a tal crueldade.
O Estado agiu rápido. Logo convenceu a mídia de que
Amarildo fora morto por traficantes em razão do que contara aos policiais. Uma
farsa foi montada. Um delegado substituto chegou a indiciar mais de 60 pessoas,
inclusive a mulher e filhos do pedreiro, como membros de organização criminosa.
Presa a família do pedreiro ninguém mais perguntaria por seu paradeiro. Nem
todos os indiciados foram denunciados à justiça. Mas coube à juíza do caso
remeter o processo ao Procurador Geral de Justiça para que ampliasse o rol de
acusados. Mídia e instituições do sistema de justiça estavam irmanados com o
projeto de segurança. Coube a um delegado indignar-se com a injustiça e elaborar
relatório paralelo, trazendo à luz o que se urdia.
A partir do relatório policial que desmontava a
farsa oficial e das manifestações que indagavam o paradeiro do pedreiro, o
mundo passou a se perguntar “Onde Está Amarildo?” ou “Cadê o Amarildo?”. O documentário sobre o pedreiro assassinado pela Política de Segurança executada
pelo Secretário José Mariano Beltrame estreia com material inédito sobre o
caso que ganhou repercussão internacional, mas não aborda o papel da mídia que
legitimou a ocorrência até que a voz das ruas impôs o aparecimento da verdade.
Nem nos informa onde está Mariano.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em
15/07/2023, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/07/6671547-joao-batista-damasceno-onde-esta-mariano.html
Artigo perfeito, necessário, fundamental!
ResponderExcluirGrande Damasceno!!!
ResponderExcluirGrande Damasceno
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