Anteontem, dia 05, a
Constituição da República completou 35 anos. Trata-se da mais democrática e
avançada Constituição de todas as que o Brasil já teve. As anteriores foram a
de 1824, outorgada com D. Pedro I; a de 1891, após o golpe militar que
proclamou a República; a de 1934, após a Revolução de 30; a de 1937, após o
golpe que instituiu o Estado Novo; a de 1946, após a destituição de Getúlio
Vargas pelos militares e a de 1967, editada sob a pressão das baionetas e com
prazo certo para promulgação, após o golpe empresarial-militar de 1964. A de
1969, embora com o nome de emenda constitucional, foi uma nova Constituição
editada após a edição do AI-5, quando os ministros militares deram um golpe
militar dentro do golpe empresarial-militar em andamento. Finalmente, após
longo processo para a redemocratização, tivemos eleições para uma Assembleia
Nacional Constituinte, em 1986.
A estrutura da Constituição
da República brasileira de 1988 é a da Constituição portuguesa de 1976,
decorrente da Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974. Tal como os
portugueses que saíam da ditadura salazarista, mantida por Marcelo Caetano após
a morte de Salazar, também saímos da ditadura empresarial-militar e fizemos uma
Constituição tentando realizar justiça social e evitar os crimes cometidos
contra a sociedade, contra a democracia e contra cidadania pelos que assaltaram
o poder em 1964.
De todas as Constituições
brasileiras é a única que eleva a dignidade da pessoa humana a fundamento da
República, tal como a Constituição portuguesa, que, da mesma forma, consagra
tal valor em seu artigo primeiro. O artigo segundo da Constituição portuguesa
expressa que a República Portuguesa é um Estado de direito democrático.
Os militares que assaltaram o
poder em 1964 tinham a concepção de que a democracia pode ser autoritária e que
para ser democrática basta que tenha assentimento popular. Buscando tal assentimento
os meios de comunicação foram censurados e a opinião pública manipulada, as
liberdades foram suprimidas e os nacionalistas foram presos, torturados,
mandados para o exílio, banidos, mortos ou desaparecidos. Mas mesmo assim a
sociedade reagiu e, em 1974, impôs à ditadura uma grande derrota.
A Assembleia Nacional Constituinte editou uma Constituição com os olhos voltados para o horror de quem vivenciou as instituições sob a sola dos coturnos. A sociedade civil e os Constituintes buscaram se preservar dos horrores praticados nos quartéis, transformados em centros de tortura. O método do qual resultou a morte sob tortura e desaparecimento do corpo do pedreiro Amarildo, na sede da UPP da Rocinha, é parte do entulho deixado por aquele período.
Com a Constituição de 1988, o Judiciário foi constituído como efetivo poder do
Estado, com efetivas garantias para realização dos valores nela consagrados.
Uma outra instituição que em toda a sua existência não tinha poderes efetivos,
diante dos demais poderes, foi o Ministério Público. Criado por Campos Sales,
instituidor do arranjo institucional denominado Pacto Coronelista, o Ministério
Público foi concebido pelo primeiro ministro da Justiça republicano como
instituição persecutória para o enquadramento das oligarquias opositoras. A
ideia, em 1988, foi que fosse o órgão controlador de eventuais desvios dos
demais poderes.
Desde sua instituição, o
Ministério Público nunca fora autônomo. As ações diretas de
inconstitucionalidades somente poderiam ser propostas por seus chefes
institucionais, que eram nomeados ou demitidos, livremente, pelo presidente da
República ou governadores de Estado. Assim, muitas leis inconstitucionais
jamais tiveram suas incompatibilidades com a Constituição declaradas.
Na Primeira República, o
Judiciário sequer assumiu os poucos poderes que tinha; não assumiu seu papel de
dizer o Direito e realizar justiça. Estava vinculado às oligarquias. João
Mangabeira, em 1949, por ocasião do centenário do nascimento de Rui Barbosa,
disse que o Judiciário foi o poder que mais falou na República, por não ter
realizado o seu papel.
Victor Nunes Leal, em sua tese, da qual resultou o livro 'Coronelismo, Enxada e Voto', igualmente não foi elogioso ao Judiciário. Nomeado para o STF em 1960, em seus poucos anos como ministro, contribuiu decididamente para a afirmação do Estado de Direito. E por sua concepção altiva é que foi cassado quando editado o AI-5, com o qual os gorilas fardados estenderam sobre o país o manto da obscuridade.
Hoje, o Judiciário é um garantidor da cidadania e tem legitimidade democrática para sua atuação. Não é necessária interpretação imprópria, como alguns fazem do art. 142 da Constituição, para vislumbrar os poderes constitucionais do Judiciário. Eles estão expressos. A ausência de voto popular não lhe retira a legitimidade democrática. Isto porque realiza a vontade expressa pelos representados, titulares do poder. O Poder Constituinte editou as políticas a serem implementadas e aos representantes do povo cabe elaborar as leis para fundamentar a realização do Direito e da Justiça.
O Judiciário tem a incumbência de implementar a ordem jurídica democrática,
garantir os direitos e liberdades individuais e impulsionar a implementação dos
programas constitucionais visando à justiça social. Crítica se pode fazer ao
Judiciário se exorbita de seu papel de realizador do Direito e da Justiça
determinados pela ordem jurídica. Falha apenas quando deixa de realizar seu
papel institucional
Publicado originariamente no
jornal O DIA, em 07/10/1998, pag. 11. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/10/6720070-os-35-anos-da-constituicao.html
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