Desde quando em 1997, no Governo FHC, foi editada a
lei 9433, o tratamento jurídico dado às águas brasileiras sofreu uma
grande mudança, pois deixaram de ser consideradas bem natural e passaram a
ser bem econômico. Antes de tal mudança, os usuários dos serviços públicos
de água pagavam pelo serviço de transporte de água, por meio
de encanamentos ou outros meios, da fonte até as residências ou unidades consumidoras.
A partir de 1997, cobra-se pelo transporte e também pela água, uma vez que
passou a ser considerada mercadoria. A atividade se tornou mais lucrativa
e passou a ser objeto do interesse do capital demandante da privatização do
serviço. A privatização do serviço de saneamento básico se tornou um tema
discutido e polêmico.
A falta de investimento público e cuidado com a saúde
dos brasileiros nas últimas décadas levou a um cenário no qual cerca de 35
milhões de brasileiros, ou 17% da população, não tenham água tratada em
suas casas. Este foi o resultado de um levantamento feito pelo Sistema
Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), que, além disto, mostrou
que apenas 46% do esgoto no país passa por tratamento. A falta de água
tratada e o lançamento do esgoto sem tratamento no meio ambiente é um
grave problema para a saúde pública.
Após o golpe empresarial-militar de 1964, as empresas
instituídas pelo poder público prestadoras do serviço de água e
esgotamento sanitário foram estruturadas pelo PLANASA (Plano Nacional de
Saneamento) com a
concepção de que deveriam ser autossuficientes financeiramente. Com
tal concepção, o serviço de água e esgotamento sanitário passou a
ser financiado pela tarifa cobrada do consumidor, rompendo-se a ideia do
serviço de saneamento como um investimento público necessário
para melhorar a saúde pública. Algumas operadoras dos serviços públicos
de saneamento no Brasil são muito lucrativas e cobiçadas por investidores nacionais
e estrangeiros. O avanço da concepção de prestação do serviço mediante
pagamento desconsiderou que o preço cobrado pela água tratada pode levar
os mais pobres e os bairros da periferia a conviverem com a inexistência
do serviço, com o retardamento na prestação ou mesmo com a precariedade
quando prestado. Se o serviço é prestado sob a ótica do lucro, quem não pode
pagar por ele não o terá adequadamente.
Mas, enquanto prestado pelo poder público, mesmo sob a
ótica financista, o serviço expandiu para quem podia pagar. Recente estudo
da ONU demonstra que o Brasil foi um dos países que mais rapidamente
avançou na sua prestação. Um dos problemas é o fato de que o serviço não
contemplou as localidades que, sob o ponto de vista financeiro, eram
considerados "mau negócio".
O alarde que hoje se faz para a privatização dos
serviços de água e esgotamento sanitário toma por base as localidades onde
o serviço não é adequadamente prestado. O discurso que se faz em algumas
unidades da federação é de que a privatização trará novos investimentos e
implicará na universalização dos serviços, ou seja, prestação a todos
indistintamente. Igual fundamento foi utilizado para a privatização dos
serviços de telefonia fixa e energia elétrica, o que tem gerado grandes
dissabores para os usuários e abarrotado os órgãos do poder judiciário com
ações dos consumidores. Mas onde o serviço não é prestado pelo poder
público não o será pelas empresas privadas, porque não é lucrativo.
Além da precariedade na prestação, a cobrança já está
causando problemas em algumas unidades da federação onde o serviço foi
privatizado. A existência de tubulação, sem que nela houvesse água,
implicou a suspensão da cobrança pelas empresas quando sob controle
estatal. Mas uma vez privatizadas, as novas empresas se dispõem a cobrar,
ainda quando não tenham regularizado o serviço de abastecimento. E mais:
desconsiderando que a tarifa que se exige pela prestação do serviço tem
natureza de preço, somente podendo ser exigido quando o produto é
entregue, há empresas com a pretensão de cobrança de valores retroativos
há anos, sob o fundamento de que, embora o consumidor não tivesse
utilizado, o serviço estava disponibilizado.
Preço ou tarifa é diferente de taxa. Preço é o que se
paga pela efetiva aquisição de produto ou serviço. Somente pode ser
exigido de quem contratar e utilizar. As taxas têm natureza de tributo.
Somente as taxas podem ser cobradas quando o serviço é disponibilizado e o
contribuinte não faça utilização. As taxas são cobradas pela utilização
efetiva ou potencial, quando utilizado pelo contribuinte ou quando
meramente posto à sua disposição. Nos estados onde as empresas
privatizadas estão exigindo que consumidores assumam débitos passados por
serviços não utilizados, sob o pretexto de que o serviço estava tão
somente disponibilizado, ações de repetição do indébito podem ser
propostas na Justiça, ou seja, os consumidores poderão cobrar da empresa o
que foi indevidamente pago. Os consumidores podem estar sendo enganados
quando lhes dizem ser lícita a cobrança retroativa por serviço
disponibilizado e não utilizado. Todo fornecedor tem o dever de prestar informação
adequada ao consumidor e se o engana incide em responsabilização civil.
Publicado originariamente no jornal O DIA, pag. 12, em 16/12/2023. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/12/6759303-agua-e-esgotamento-sanitario-privatizacao-e-cobranca-pela-disponibilidade.html
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