Uma advogada foi assassinada juntamente com seu cliente na semana
passada na cidade Santo Antônio, na região agreste do estado do Rio Grande do
Norte. Minutos antes de ser morta, a advogada publicara uma foto de dentro da
delegacia, momento no qual libertava seu cliente. Tratava-se de uma jovem
advogada de 26 anos e a pessoa que soltara era o primeiro cliente que conseguia
tirar da cadeia. Advogada e cliente foram mortos a tiros a cerca de 600 metros
da delegacia de onde tinham saído.
O cliente, assassinado junto com a advogada, era investigado pela
Polícia Civil. Na foto publicada pela advogada, numa imagem escurecida e
mostrando apenas os pés de duas pessoas – provavelmente dela e do cliente –,
escreveu: "Delegacia de Polícia Civil", "A sociedade e a sua
mania de condenar um indivíduo apenas com base no 'disse me disse'".
O cliente da advogada assassinada era investigado como um dos suspeitos
de um crime ocorrido dois dias antes, quando – durante uma vaquejada – duas
pessoas numa motocicleta atiraram num vaqueiro e fugiram. Os autores do
assassinato do vaqueiro não foram identificados, mas havia suspeita de que
pudesse ser o cliente da advogada assassinada.
O homem em favor de quem atuava a advogada fora levado para a delegacia,
conduzido coercitivamente sem qualquer amparo legal. Embora não houvesse
flagrante ou mandado de prisão expedido por autoridade judicial competente, o
investigado fora detido pela Polícia Militar em uma cidade vizinha e conduzido
até a delegacia de Santo Antônio, distando cerca de 30 km de onde fora preso.
Sem a indevida condução coercitiva não se teriam os dois homicídios.
Inexistindo mandado de prisão e não sendo caso de flagrante, a jovem
advogada exigiu que o delegado o soltasse. E este o fez. Casos similares
ocorrem pelo Brasil com certa regularidade. Os defensores das liberdades vivem
as agruras de suas profissões no Brasil. Cerca de 50 advogados são assassinados
por ano no Brasil. Advocacia e jornalismo são atividades de alto risco no
Brasil. Tendo sido juiz por 18 anos na Baixada Fluminense tomei ciência do
assassinato de muitos advogados. Embora muitas das vezes as investigações não
relacionem o crime ao exercício profissional, depreendem-se, não raro, precisas
vinculações.
No final dos anos 90, um advogado domiciliado em Nilópolis propusera em
todas as comarcas do estado ações populares para que a Justiça compatibilizasse
o número de vereadores nas Câmaras Municipais com proporcionalidade às
respectivas populações. Os vereadores, em quase todos os municípios
fluminenses, haviam estabelecido o número de cadeiras no máximo permitido. Ele
pretendia que cada município tivesse número de vereadores, entre o mínimo e
máximo permitido na Constituição, com proporcionalidade às respectivas
populações. Eu julguei uma ação destas. O advogado foi assassinado.
Em Nova Iguaçu, no início do século, um grupo de jovens foi conduzido
coercitivamente, sem flagrante e sem mandado, para uma delegacia. Tal como a
advogada assassinada no Rio Grande do Norte, um advogado compareceu à delegacia
e exigiu a libertação dos rapazes, o que foi feito. Ao chegar em casa, no
bairro de Vilar dos Teles, o advogado foi assassinado.
Os algozes das liberdades não compreendem o trabalho dos profissionais
do sistema de Justiça. Um jovem advogado defendeu um homem acusado de homicídio.
No tribunal do júri, demonstrou a inocência do seu cliente, que foi absolvido.
O irmão da vítima, inconformado com a absolvição de quem ele supunha ser o
assassino, executou o advogado.
Na peça Júlio César, de Shakespeare, um dos personagens de um grupo que
tramava um golpe exclamou: "A primeira coisa que faremos será matar todos
os advogados". Advogados sempre foram obstáculo às tiranias e às violações
aos direitos. Napoleão Bonaparte proibiu que os advogados interpretassem o seu
Código Civil. Hitler classificava os advogados como pessoas desprezíveis.
Durante a ditadura empresarial-militar, muitos advogados foram presos,
torturados e alguns desaparecidos, tão somente porque defendiam os perseguidos
do regime. Em 1980, quando da transição da ditadura para a democracia, a
própria OAB/RJ foi alvo de bomba. Não raro os atentados à vida dos advogados
envolvem agentes do Estado, tal como a carta-bomba endereçada ao presidente da
OAB/RJ, Eduardo Seabra Fagundes, que matou sua secretária Lydia Monteiro.
No nosso modelo de democracia, fundada no Estado de Direito, com
direitos e garantias individuais e fundamentais e no qual se assegura o
contraditório e ampla defesa, a atividade do advogado é imprescindível. Dispõe
a Constituição que o advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo
inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites
da lei. Assim como o assassinato da Juíza Patrícia Acioli foi um atentado à
Justiça, o assassinato de quem defende as liberdades se revela idêntico
atentado ao devido processo legal. A proteção legal à atividade advocatícia há
de ser objeto de todos os que pugnam pelas liberdades públicas. Afinal, sem
advogado não há Justiça e sem Justiça não há democracia.
Publicado originariamente no dia 10/02/2024, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/02/6790529-assassinato-de-advogada-atentado-ao-estado-democratico-de-direito.html
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