A Constituição de 1988 dispõe que a República
Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios
e do Distrito Federal, constituindo-se num Estado Democrático de Direito que
tem por fundamentos, dentre outros, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo
político. Estes fundamentos da República estão em discussão em momento no qual
o Congresso Nacional incluirá o nome do Marinheiro João Cândido Felisberto no
Livro dos Heróis da Pátria. João Cândido liderou a Revolta da Chibata em 22 de
novembro de 1910, reivindicando o fim dos açoites na marujada, mesmo após 22
anos da abolição da escravatura e 21 da Proclamação da República.
O mote para a revolta foram as 250 chibatadas no
Marinheiro Marcelino. O Almirante José Carlos de Carvalho, única autoridade
admitida subir a bordo, assim relatou: "Mandaram vir a minha presença, Sr.
Presidente, uma praça que tinha sido castigada ante-hontem. Examinei essa praça
e trouxe-a commigo para terra para ser recolhida ao Hospital da Marinha.
Presidente, as costas desse companheiro assemelham-se a uma tainha lanhada para
ser salgada".
Proclamada a República em 15/11/1889, fora, no dia
seguinte, editado o Decreto 03, extinguindo os castigos corporais na Marinha. O
decreto não foi acolhido pela oficialidade. Em 12/04/1890, o Marechal Deodoro
da Fonseca editou o Decreto 328, criando a "Companhia Correcional".
Restabeleceu-se o retorno da chibatada aos marinheiros. Ainda em 1890, em 28 de
junho, o presidente editou decreto de cunho racista proibindo a entrada de
imigrantes africanos e asiáticos no Brasil.
Não se pode tratar João Cândido à luz da
indisciplina e da quebra da hierarquia, quando fez prevalecer a sensatez em
prol dos direitos humanos. No mesmo período, a oficialidade vivia em polvorosas
revoltas e muitos dos oficiais que quebraram a hierarquia hoje são considerados
heróis pela Marinha Brasileira. Em 23/11/1891, tivemos a Revolta da Armada,
pró-monárquica. Em 13/12/1891 tivemos o Levante Deodorista na belonave 1º de
Março. Em 05/09/1893, o couraçado Aquidabã iniciou a Revolta da Armada, também
de índole monarquista.
Eu poderia citar dezenas de sublevações militares
ao longo da República, comandadas por oficiais, que implicaram quebra da
hierarquia e da disciplina. Da Primeira República basta lembrarmos do Movimento
Tenentista de 1922 e da Revolução de 1932. Da metade do século XX para cá
tivemos a tentativa de proibição da posse de Juscelino Kubistchek, os levantes
durante seu mandado, a oposição à posse de João Goulart em 1960, o golpe de 01
de abril de 1964, a tentativa de deposição do general-presidente Ernesto Geisel
pelo seu ministro do Exército Silvio Frota até o Caso Riocentro, além de muitos
outros atos, como transformação de quartéis em centros de tortura,
assassinatos, desaparecimentos etc.
O assassinato de Euclides da Cunha em agosto de
1909 inflamara os ânimos da campanha eleitoral de 1910. De um lado estava Rui
Barbosa com sua campanha civilista e de outro o Marechal Hermes da Fonseca,
sobrinho do Marechal Deodoro da Fonseca. Rui Barbosa falava de direitos civis,
por isso sua campanha era civilista. A ela se contrapunha o discurso do uso da
força, encampada por militares e pelas milícias da subsistente Guarda Nacional.
As paixões eleitorais interpretavam as campanhas civilista e militarista como
se fossem de civis contra militares.
Hermes da Fonseca tomou posse em 15 de novembro. Em
22 de novembro, enquanto recebia delegações estrangeiras num jantar na Tijuca,
cerca de 2.400 marinheiros se rebelaram, chefiados por João Cândido. Não
queriam mais ser açoitados. Para o pasmo da oficialidade racista, o Almirante
Negro manobrava a frota com precisão e elegância. Foi o que escreveu o jurista
Evaristo de Moraes em seu livro 'Reminiscências de um Rábula Criminalista':
"Quando, no começo do governo do Marechal
Hermes, explodiu a revolta chefiada por João Cândido, admirei, como todas as
pessoas libertas de preconceitos, a habilidade técnica do improvisado
'almirante', fazendo evoluir os navios, a sua capacidade disciplinadora,
evitando a alcoolização dos companheiros, e a generosidade de que deu sobeja
prova, não atirando cruelmente contra a capital da República".
O Encouraçado Minas Gerais, comandado por João
Cândido, era o maior navio de guerra do mundo. Ao chegar ao Rio de Janeiro, no
início de abril de 1910, trazendo o corpo do embaixador brasileiro nos EUA,
Joaquim Nabuco, não foi do nobre falecido que a imprensa falou. O embaixador
Gilberto Amado se entusiasmou com a chegada do navio, mais que com o corpo do
seu colega falecido. E a música adaptada em homenagem ao encouraçado é o hino
do Estado de Minas Gerais, o único Estado da federação que não tem hino oficial.
"Óh Minas Gerais! Óh Minas Gerais! Quem te conhece não esquece jamais! Óh
Minas Gerais!".
Tentou-se liquidar com João Cândido e sua memória.
Em 05/12/2006, o jornal O DIA revelou que a fotografia estampada na capa do
livro 'João Cândido, O Almirante Negro', publicado pelo Museu da Imagem e do
Som, em 1999, era de outro marinheiro; de André Avelino. O erro era mantido em
outras obras. João Cândido, descendente de pessoas que tinham sido
escravizadas, é a parte do Brasil real que insiste em viver sem açoites. E
viverá!
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 05/05/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/05/6839385-almirante-negro-joao-candido-e-a-luta-pela-dignidade-da-pessoa-humana.html
Parabéns João Cândido, amei ler. Muito bom texto
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