domingo, 18 de maio de 2014

Os porões dos tribunais

“Quando da aprovação da ‘Comissão da Verdade’, militares reformados, dentre os quais o coronel do Exército — acusado de tortura durante a ditadura —Carlos Alberto Brilhante Ustra, lançaram manifesto intitulado ‘Alerta à nação’, dizendo que a ‘Comissão da Verdade’ era um “ato inconsequente de revanchismo explícito e de afronta à Lei da Anistia”. Subscreveram-no de soldados a generais e um único magistrado: um desembargador do Tribunal de Justiça.

“A separação de poderes foi concebida para evitar a junção de interesses que devem se controlar reciprocamente. As parcerias que se estabelecem entre órgãos que devem funcionar autonomamente podem implicar prejuízos para a ordem institucional. A notícia de que o oficial acusado de chefiar uma quadrilha no 6º Batalhão da PM ocupava cargo comissionado no âmbito do tribunal presidido por membro do Poder Judiciário que subscrevera o manifesto contra a ‘Comissão da Verdade’ é preocupante. Evidencia possibilidade da perda do distanciamento necessário ao Poder Judiciário para realização da justiça.”

A desorganização dos serviços públicos pelos coronéis na 1ª República visou a reforçar o mando pessoal e afastar as objeções da institucionalidade. A Revolução de 30 reorganizou o Estado e deu nova feição à realidade brasileira. Ainda nos restam traços daquele período de construção das instituições e da identidade nacional. Mas do Estado Novo herdamos também a polícia especial, reforçada pelo general Riograndino Kruel em 1958, que pode ser considerada a avó dos atuais grupos paramilitares chamados de milicianos.

Cada sistema político instaurado deixa suas marcas depois de revogado. É o passado que insiste em se fazer presente. A ditadura empresarial-militar teve um efeito deletério sobre os órgãos públicos, que foi o inchaço das repartições civis e empresas estatais com militares, em cargos e empregos, por deslavado nepotismo ou protecionismo, mas também visando à coleta de informações sobre demais agentes públicos e cidadãos.

A desmilitarização da estrutura do Estado foi penosa, e a ela reagiu a linha-dura do regime, que detonava bombas pela cidade para demonstrar sua imprescindibilidade, até o dia no qual uma explodiu no colo de um deles no Riocentro, em 1981. A reforma administrativa realizada no governo Collor extinguiu o Serviço Nacional de Informação, o SNI, promoveu disponibilidades e demissões de servidores; atingiu injustamente muitos funcionários públicos, mas foi a pá de cal no empreguismo e aparelhamento militarista das repartições civis e empresas estatais.

No Rio, atualmente vivencia-se o processo de militarização das instituições civis, com verdadeiros batalhões alocados em órgãos públicos, nem sempre em atividades típicas. Quando da aprovação da ‘Comissão da Verdade’, militares reformados, dentre os quais o coronel do Exército — acusado de tortura durante a ditadura —Carlos Alberto Brilhante Ustra, lançaram manifesto intitulado ‘Alerta à nação’, dizendo que a ‘Comissão da Verdade’ era um “ato inconsequente de revanchismo explícito e de afronta à Lei da Anistia”. Subscreveram-no de soldados a generais e um único magistrado: um desembargador do Tribunal de Justiça.
A separação de poderes foi concebida para evitar a junção de interesses que devem se controlar reciprocamente. As parcerias que se estabelecem entre órgãos que devem funcionar autonomamente podem implicar prejuízos para a ordem institucional. A notícia de que o oficial acusado de chefiar uma quadrilha no 6º Batalhão da PM ocupava cargo comissionado no âmbito do tribunal presidido por membro do Poder Judiciário que subscrevera o manifesto contra a ‘Comissão da Verdade’ é preocupante. Evidencia possibilidade da perda do distanciamento necessário ao Poder Judiciário para realização da justiça.




Publicado originariamente no jornal O DIA, de 18/05/2014, pag. 16. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-05-18/joao-batista-damasceno-os-poroes-dos-tribunais.html

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