“Ninguém defende ou é a favor do
aborto, porque dói, sangra e traz outras consequências. Mas, se não há pessoa
adulta no Brasil que não conheça quem já tenha feito aborto, é preciso ser
consequente ante o sofrimento das vítimas da criminalização.
“A questão vem sendo tratada sob
inspiração religiosa, e não como questão da saúde da mulher. Políticos tacanhos
ou oportunistas em busca de votos tratam do tema, sem reflexão sobre ele, como
se estivessem num programa de auditório. Ainda que no âmbito das religiões o
aborto continue a ser tratado como pecado, há de ser descriminalizado a fim de
possibilitar assistência à mulher e lhes garantir vida com abundância. Vida não
é apenas o oposto da morte, mas a realização plena do indivíduo”.
Jandira dos Santos desapareceu
após sair para interromper gravidez indesejada. Seu ex-marido a levou a um
ponto de encontro com pessoa desconhecida e ficou esperando seu retorno, o que
não aconteceu. Jandira morreu no procedimento, e tentaram desaparecer com seu
corpo. Amputaram-lhe as mãos, os pés e a arcada dentária e a carbonizaram para
dificultar pronto reconhecimento. Suspeita-se que o dono da clínica clandestina
seja um miliciano. Por trás de toda clínica clandestina de aborto têm um agente
do Estado que vende a proteção até que outro entre na rota. Jandira era uma
mulher pobre e só por isso recorreu a uma clínica clandestina. Deixou uma filha
de 12 anos. Outra mulher pobre, Elizângela Barbosa, foi abandonada na rua
semana passada em Niterói, após complicação num aborto, e também morreu.
Milhares de mulheres pobres morrem
todo ano em decorrência em abortos malsucedidos. Outras milhares, também
pobres, estão sendo processadas criminalmente, submetidas ao mesmo julgamento
que componentes de grupos de extermínio. O tribunal do júri, no Brasil, julga
os crimes dolosos contra a vida, ou seja, homicídio, infanticídio, instigação
ao suicídio e aborto.
As mulheres da classe dominante
não correm risco de processo. Não fazem aborto em clínica clandestina, mas em
hospitais particulares onde se internam sob outro pretexto. Quando têm
complicação são atendidas por serviço de qualidade lhes posto à disposição.
Diferentemente, as mulheres pobres quando têm complicação e sobrevivem são
obrigadas a buscar o serviço público de saúde, onde são mal atendidas; seus
casos são relatados à polícia e ao MP, que inicia o processo. Em casos mais
graves há a possibilidade de desaparecimento com o corpo da vítima, como
ocorreu com Jandira, ou o abandono em via pública, como ocorreu com Elizângela.
Ninguém defende ou é a favor do
aborto, porque dói, sangra e traz outras consequências. Mas, se não há pessoa
adulta no Brasil que não conheça quem já tenha feito aborto, é preciso ser
consequente ante o sofrimento das vítimas da criminalização.
A questão vem sendo tratada sob
inspiração religiosa, e não como questão da saúde da mulher. Políticos tacanhos
ou oportunistas em busca de votos tratam do tema, sem reflexão sobre ele, como
se estivessem num programa de auditório. Ainda que no âmbito das religiões o
aborto continue a ser tratado como pecado, há de ser descriminalizado a fim de
possibilitar assistência à mulher e lhes garantir vida com abundância. Vida não
é apenas o oposto da morte, mas a realização plena do indivíduo.
A criminalização gesta a
clandestinidade, a precariedade do atendimento e o risco à vida. O desejo
sádico e punitivo de alguns, com violação à vida privada, se contrapõe ao
direito à saúde das mulheres.
Publicado originariamente no jornal O DIA, de 27/09/2014, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-09-27/joao-batista-damasceno-descriminalizacao-do-aborto.html
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