segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Reinado, Momo e loucura

“...um louco que se diz rei é menos louco que um rei que se acredita rei acima das circunstâncias. Todos os papéis sociais que desempenhamos decorrem das circunstâncias nas quais estamos inseridos. Afinal, desde a decapitação de Luiz XVI o povo descobriu que o sangue da nobreza também é vermelho e que o poder lhe pertence, ainda que — numa democracia representativa — diga-se que em seu nome é exercido. Mas, mesmo ali, o povo continua titular do poder e pode exercitá-lo diretamente”.
 
Passou o Reinado de Momo. Os prefeitos das cidades que abdicaram de seus mandos e entregaram as chaves ao rei da folia sem qualquer cerimônia reassumiram suas funções. As cidades hoje não são muradas, já não são circundadas por fossos, não têm pontes levadiças que impeçam a entrada, nem portões que se fechem à noite. Mas a entrega da chave é um símbolo de um período que não tem governo nem nunca terá. Nenhuma ‘loucura carnavalesca’ é considerada excesso. Tudo é debitado à alegria, à irreverência e, portanto, justificado. Palhaços, blocos de piranhas com homens travestidos e outras fantasias caracterizam a fantasia de cada um. É tempo no qual a loucura é a normalidade. Cada um retira sua máscara cotidiana, se veste de si mesmo, e as hierarquias se diluem ou se subvertem. Mas, passada a festa, torna-se tempo de voltar aos papéis sociais que cada um escolheu ou que lhe foi incumbido exercer.
 
Os que se dizem reis voltam a se dizer tais, os governantes, governadores, e os profissionais reassumem os encargos dos seus ofícios. Mas ninguém é socialmente o que deseja ou pensa que é. Cada um é aquilo que o próprio meio social reconhece. Um engenheiro só será um bom profissional se outros lhe atribuírem tal qualidade, pouco importando o sentido que faça de si.
 
Pós-Momo, as hierarquias se restabelecem, e a ordem — ainda que iníqua, degradante e expressiva da desordem — é reconstituída, com certo grau de reconhecimento por aqueles que poderiam contestá-la. O sociólogo alemão Norbert Elias, analisando a corte francesa de Luiz XIV, reconstituiu as práticas sociais palacianas e as hierarquias do velho regime. As normas informais de comportamento denunciavam o status de cada um. Mesmo o rei, colocado no trono sob a visão de todos, tinha um comportamento exigido para continuar no posto soberano. A falta de reconhecimento pelos súditos podia ser um perigo. Afinal, quem se acreditou soberano suficiente para desconsiderar seus deveres de buscar reconhecimento acabou guilhotinado.
 
É Elias quem diz que um louco que se diz rei é menos louco que um rei que se acredita rei acima das circunstâncias. Todos os papéis sociais que desempenhamos decorrem das circunstâncias nas quais estamos inseridos. Afinal, desde a decapitação de Luiz XVI o povo descobriu que o sangue da nobreza também é vermelho e que o poder lhe pertence, ainda que — numa democracia representativa — diga-se que em seu nome é exercido. Mas, mesmo ali, o povo continua titular do poder e pode exercitá-lo diretamente.
 
Artigo publicado originariamente no jornal O DIA em 22/02/2015, pag. 20. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-02-21/joao-batista-damasceno-reinado-momo-e-loucura.html

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