segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Magistratura e parentela

A lei proíbe que juízes atuem em processos em que tenham figurado como parte, testemunha, membro do MP ou perito. Igualmente proíbe que atuem em processos nos quais seus filhos, irmãos ou cônjuge sejam parte ou advogado. A formação social brasileira se deu em torno das famílias. Não foi o Estado português quem iniciou a formação nacional, mas os ‘senhores de engenho’ com suas famílias. A lavoura de café se estabeleceu em torno do ‘coronel’, apoiado por sua parentela que incluía agregados, compadres e afilhados. Séculos antes que a lei definisse parentesco por afinidade ou adoção social, a realidade brasileira conhecia formas extensivas de família e de parentalidade. As grandes empresas brasileiras são familiares. A maior empresa de comunicação do Brasil, concessionária de serviço público, é unifamiliar, assim como outras.
A concepção republicana de serviço público e a acessibilidade aos cargos públicos, pelo mérito, sofrem com estas características de nossa formação. Mesmo os cargos eletivos costumam decorrer da filiação, e não são poucos os filhos de parlamentares eleitos nos mesmos pleitos disputados pelos pais ou nos quais estes tenham desistido de concorrer.
Em notável obra na qual descreve ocorrências no Judiciário fluminense, do qual foi presidente, o desembargador Paulo Dourado de Gusmão narrou conduta de magistrado que mandara o filho para São Paulo ao terminar o curso de Direito. Ao pai não parecia lícito ter um filho advogando no mesmo Estado onde exercia a magistratura. O poder tradicional e familiar de um pai no início do século 20, que ordenava comportamento a um filho adulto, não mais subsiste. Nem o Direito o admite. Mas há de subsistir o princípio republicano que veda a pais e filhos atuar simultaneamente como advogado e juiz na mesma causa. O Estatuto da Magistratura pretende estender a proibição para os demais membros dos escritórios de advocacia nos quais os parentes do magistrado sejam sócios ou empregados. Nada mais republicano! Afinal, de nada adianta a lei proibir o juiz de atuar em processo no qual parente seja advogado e autorizar nos que atuem seu colega de escritório.
Mas a concepção republicana que proíbe a advocacia perante magistrados que sejam parentes não pode impedir o exercício profissional, tal como no exemplo do desembargador Gusmão. A entrada pela porta do Fórum do magistrado em momento concomitante ou diverso de seu parente ou cônjuge não é expressão de que rumam para o mesmo gabinete. Afinal, conchavos e ‘pedidos’ chamados de ‘embargos auriculares’ não são realizados às claras. Não é da aparição pública que decorre a suspeição, mas do que não se publiciza.
 
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 02/08/2015, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-08-01/joao-batista-damasceno-magistratura-e-parentela.html
 

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