sábado, 22 de março de 2025

HOMICÍDIOS CAMUFLADOS

Num prédio na Avenida Pasteur, em Botafogo, há mais de 30 anos, um porteiro foi além de suas funções e passou a aferir as despesas realizadas pelo síndico. Detectada malversação contou para os moradores o que sabia. Foi pior que atiçar um formigueiro. Os moradores ficaram em polvorosa. O síndico, um militar reformado, era um homem sisudo, que mantinha fixada, desde o Governo Médici, no lado interno do vidro frontal do apartamento, uma bandeira do Brasil, com os dizeres: “Brasil! Ame-o ou deixe-o”. Soberbo e defensor intransigente de valores como Deus, pátria e família sentiu-se humilhado e acuado. O porteiro se tornou prestigiado e pensava ter adquirido estabilidade vitalícia no emprego.

Destituído do cargo de síndico, cultivou o ressentimento contra os vizinhos, mas sobretudo contra o porteiro. O ex-síndico se transformara num capacho e o porteiro numa soberba ambulante. Inverteu-se a hierarquia social. Sem aviso prévio, em certo dia, o ex-síndico descarregou o revólver no porteiro. O homicida era locatário de um pequeno apartamento em Copacabana, para onde fugiu.

Mas descoberto foi levado à delegacia – sem mandado ou prévia intimação – e alguns policiais ficaram no apartamento para investigar existência de outras ilicitudes. Não tendo sido preso em flagrante, prestou depoimento e voltou ao apartamento de Copacabana, onde disse ter constatado a subtração de relógios de luxo e outras joias. Para a imprensa não falou do homicídio que praticara, mas não poupou palavras para denunciar o furto de suas joias. Tampouco quis responder se o apartamento de Copacabana era uma “garçoniere” mantida por tão ferrenho defensor de valores tradicionais. Qualificava a subtração das joias como roubo, porque fora retirado do apartamento e levado para a delegacia sob a mira de armas.

O homicídio deixou de ser o tema abordado pelos jornalistas. Deste já se falara tudo ou quase tudo. O tema das matérias passou a ser o roubo das joias praticado pelos policiais que ficaram no apartamento enquanto outros levaram o homicida para depoimento. O delegado tomou o depoimento do homicida sobre o roubo das joias e instaurou um inquérito policial. Decorridos dois dias, sem que haja testemunha do fato, o homicida foi atropelado por um ônibus e morreu. A morte extingue a punibilidade e portanto o inquérito do homicídio foi arquivado. Outro não foi o destino do inquérito do suposto roubo das joias. Tendo se comprometido a voltar à delegacia com documentos que comprovavam a aquisição das joias, a suposta vítima do crime de roubo não teve tempo suficiente para provar o que dissera e seus familiares nada sabiam da existência delas, assim como também não sabiam da existência da “garçoniere”. Casos encerrados!

Restou a dúvida sobre o “acidente” que vitimou o ex-síndico. Não poucos atropelamentos durante a ditadura empresarial-militar disfarçaram homicídios. Igualmente mortes súbitas de quem não ostentava doenças pré-existentes que as pudesse justificar. A morte dos três líderes da Frente Ampla de oposição ao regime empresarial-militar num lapso de 9 (nove) meses deixa dúvidas sobre as causas das mortes. O ex-presidente Juscelino Kubitschek morreu num suposto acidente automobilístico no dia 22 de agosto de 1976. O ex-presidente João Goulart faleceu de suposto infarto em 06 de dezembro de 1976. Os militares não permitiram a abertura do caixão para que Jango fosse velado pelos familiares, nem a necrópsia. Carlos Lacerda morreu em 21 de maio de 1977 igualmente de suposto infarto. Em 20 de janeiro de 1977 tomara posse nos EUA o presidente democrata Jimmy Carter. Este presidente estadunidense pôs fim à colaboração dos EUA com os governos militares cujas ditaduras instituíram a Operação Condor e se esforçou para conter abusos aos direitos humanos. Esta mudança poupou a vida de Brizola que seria deportado do Uruguai para ser morto no Brasil, mas foi, por ordem de Jimmy Carter, resgatado pela CIA no dia 20 de setembro de 1977.

Levado para Buenos Aires onde passou a noite em um local seguro da CIA, Brizola foi embarcado em um voo - sem escalas - para Nova Iorque, onde chegou em 22 de setembro, recebeu visto de permanência por seis meses e depois rumou para Portugal onde permaneceu até retornar ao Brasil em 1979. O salvamento da vida de Brizola naquele momento tinha a oposição do subsecretário de Estado para os Assuntos do Hemisfério Ocidental, Terence Todman. Mas a CIA obedeceu a quem tinha que obedecer: ao presidente Jimmy Carter.

Assim como se sabe que o acidente que vitimou “Zuzu Angel” foi um atentado, a queda de Anísio Teixeira no fosso do elevador num prédio na Praia de Botafogo, onde morava Aurélio Buarque de Hollanda, há 44 anos, no dia 11 de março de 1971, pode igualmente ter decorrido de sua forte preocupação com o que se fazia com a educação nacional às vésperas da edição da Lei de Diretrizes e Bases para o ensino de 1971.

Há muitos acidentes, mortes súbitas e desaparecimentos de opositores do regime empresarial-militar a serem apurados para constituição da memória de nossa história. Mas não basta verdade e memória. É preciso também justiça. A formação da maioria no STF sobre o não abrangimento dos desaparecimentos de pessoas pela Lei da Anistia é um começo. A destituição das patentes dos sicários das liberdades e a subsequente anulação das pensões para suas filhas “solteiras” ´pode ser a continuidade. O Estado pode anistiar os cidadãos, mas não pode se perdoar ou perdoar seus agentes quando comete crimes.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 22/03/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/03/7025113-joao-batista-damasceno-homicidios-camuflados.html


domingo, 9 de março de 2025

Os pobres e o cumprimento dos alvarás de soltura

Quando será posto em liberdade um preso após ser reconhecida a ilegalidade de sua prisão e decretada judicialmente sua soltura? Eis o dilema das famílias! Familiares, por vezes, aguardam dias na porta de uma instalação prisional a soltura de quem sai sem meios até para custear o transporte de volta para casa. Dispõe a Constituição, como direito fundamental, que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; que às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação; que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa; que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos; que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; que o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal; que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente; que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada; que o preso será informado de seus direitos, dentre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado, bem como que o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial. Além destes direitos há outro importante: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória”. Para assegurar tais direitos a Constituição impõe aos magistrados: “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”. Trata-se de uma garantia da cidadania e um dever de os magistrados relaxar a prisão ilegal.

No Estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária/SEAP, tem até “Guardião”, um aparelho para intercepção de conversações telefônicas. Mas negligencia meios para imediato cumprimento das decisões judiciais. Vivemos tempos estranhos. Ao longo das últimas semanas li e assisti a manifestações de autoridades e agentes do sistema de segurança propondo a desobediência às determinações judiciais, notadamente das decisões contidas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental/ADPF 635, onde o Supremo Tribunal Federal (STF) analisará a adoção de um plano para redução de mortes nas operações policiais. Na ação, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) afirma que a política de segurança pública em nosso Estado, “em vez de buscar prevenir mortes e conflitos armados, incentiva a letalidade da atuação dos órgãos policiais”.

O aparato repressivo é profundamente eficiente. O orçamento da área de segurança é, por vezes, superior ao orçamento das áreas de saúde e educação juntas. Ainda que tais despesas obedecessem aos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade e moralidade, falta publicidade (transparência) e eficiência. Administrar é gerir a escassez. Portanto, a opção pela despesa e a execução orçamentária precisa levar em consideração o benefício a se obter com o gasto correspondente.

O sistema é eficiente para criminalizar, mas não para desfazer ou reparar injustiças. Quando estudante ouvia uma frase latina que dizia: “in dubio pro reo”, ou seja, na dúvida, decide-se a favor do réu. Tal princípio haveria de orientar a área tributária (em dúvida pró-contribuinte) e a própria relação cidadão-Estado (em dúvida pró-cidadão). Afinal, numa república democrática todo o poder emana do povo. O Estado é constituído pelos cidadãos. Diversamente, nos estados autocráticos, próprios das ditaduras ou como já foram os Estados justificados pela Teoria do Poder Divino dos Reis, a cidadania decorria da benesse do Estado aos súditos.

As relações sociais são permeadas por conflitos de interesses. Inexiste direito ou liberdade na natureza, onde os conflitos são resolvidos pela lei do mais forte. As leis e os princípios decorrem da cultura e da civilidade. Portanto, a existência de conflito entre quem decide e quem deveria dar cumprimento à decisão é imprópria. Quando ocorre entre poderes do Estado é expressão de desarmonia ou violação da independência entre eles. Quando ocorre entre quem tem o dever de decidir e quem deveria cumprir a decisão é desobediência, motim, insubordinação, rebelião, sublevação, insurgência ou outra qualquer anomalia institucional demonstrativa da incivilidade. Quando o juiz decide pela liberdade de um preso não pode a SEAP, seu “policial classificador”, nem o Oficial de Justiça, postergar por dias o cumprimento da ordem judicial. Nós os juízes, eu inclusive, decidimos, mas nem sempre temos como acompanhar o efetivo cumprimento de nossas decisões.

Nem sempre o que decidimos é imediatamente cumprido. Estando no 32º ano de efetivo serviço jurisdicional na magistratura fluminense, já o vivenciei por milhares de vezes. Em se tratando de polícia, seja ela civil, militar ou penal (penitenciária), seu controle externo compete ao Ministério Público. Já vi estampado em jornais o pronto cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão por mim expedidos. Igualmente, pela mídia, já tomei ciência de imediato cumprimento de alvarás de soltura, de presos com elevado poder aquisitivo. Falta-me ciência, pela mídia, do tempo transcorrido entre a decisão de soltura de um pobre e sua efetivação. Passarei a exercer este controle. Não adianta ordenar. É preciso aferir se o que foi ordenado foi cumprido.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 08/02/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/03/7016131-joao-batista-damasceno-os-pobres-e-o-cumprimento-dos-alvaras-de-soltura.html