sexta-feira, 27 de junho de 2025

Machado de Assis e a criminalização dos juízes

 

A caçada aos imigrantes nos EUA propiciou a prisão da juíza Hannah Dugan, no estado do Wisconsin, acusada de facilitar a fuga de um perseguido pelo serviço de imigração. Juízes estadunidenses criticam o trabalho da imigração, pois a detenção de imigrantes, quando nos tribunais, os leva a recusarem comparecimento em audiências como testemunhas e mesmo quando vítimas. Por todo o mundo os marcos civilizatórios sofrem ataques. A ofensiva aos juízes e a criminalização da jurisdição não fica de fora da sanha neofascista. Até setores autodenominados ‘progressistas’ caem no conto do punitivismo.

No Brasil o poder judiciário se fortaleceu ao longo da República, mesmo com algumas vacilações e falta de entusiasmo institucional. João Mangabeira afirmou que o STF foi “o poder que mais falhou” na República, por não haver cumprido seu papel político-constitucional, apesar da fustigação de Rui Barbosa. Na Primeira República, até mesmo o controle de constitucionalidade das leis era por ele recusado. A ilegalidade nas instituições tanto pode decorrer da exorbitância quanto da omissão. No Império inexistia controle de constitucionalidade das leis, porque a sanção imperial excluía qualquer vício do processo legislativo. O decreto que organizou a justiça federal, quando da Proclamação da República, assegurou ao STF o poder de interpretar as leis e verificar sua conformidade com a Constituição. Mas os ministros, oriundos do Império, não assumiam tal poder. Hoje, há na sociedade quem demonstre estranhamento ao ver o STF exercitando, plenamente, suas competências constitucionais.

No âmbito dos Estados, os juízes, quando não integrantes do quadro das oligarquias, estavam sujeitos à sedução ou à vingança. Dentre os meios utilizados para submeter a magistratura estavam a disponibilidade e a retenção de vencimentos, disse o ministro do STF Victor Nunes Leal, mineiro de Carangola. Mas apesar das ameaças, o juiz gaúcho Alcides Mendonça Lima, em 28 de março de 1896, declarou a inconstitucionalidade de uma lei estadual. Em razão do exercício de sua competência, o Ministério Público recebeu ordens do governador Júlio de Castilhos para processar o juiz. E o fez alegando que “ousou o denunciado afrontar o regime constitucional do Estado e arvorar-se em supremo e original poder moderador”.

O juiz foi condenado pelo tribunal gaúcho. Rui Barbosa emitiu parecer em sua defesa demostrando que um juiz estadual podia reconhecer a inconstitucionalidade de lei estadual que contrariasse a Constituição da República e que não podia ser punido pelo exercício da jurisdição. O STF reformou a decisão e o absolveu, mas atuou timidamente no caso, esquivando-se de apreciar a inconstitucionalidade da lei gaúcha em face da Constituição da República. Um dos votos explicitou a negativa de adentrar ao cerne da questão da validade da lei estadual gaúcha, sob o fundamento de que o recurso se restringia ao julgamento do juiz pela sua atividade.

Machado de Assis, também escreveu sobre o tema. Não se pode pretender que o “Bruxo do Cosme Velho” tivesse familiaridade com o conceito de supremacia da Constituição, oriunda do ‘poder constituinte’, sobre as leis, oriundas do ‘poder constituído’. Sem considerar que de decisão judicial se recorre e não se pode criminalizar a jurisdição, sob pena de esmorecimento do sistema de justiça, escreveu Machado de Assis em A Semana, no dia 05 de abril de 1896: “Faço igual reflexão relativamente ao juiz da comarca do Rio Grande, que, segundo telegramas desta semana, vai ser metido em processo. A causa sabe-se qual é. Não consentiu o juiz em que os jurados votem a descoberto, como dispõe a reforma judiciária do Estado; afirma ele que a Constituição Federal é contrária a semelhante cláusula. Não sou jurista, não posso dizer que sim nem que não. O que vagamente me parece, é que se o estatuto político do Estado difere em alguma parte do da União, é impertinência não cumprir o que os poderes do Estado mandam."

É indiscutível que Machado de Assis é o maior romancista da literatura brasileira. É denso e enigmático. Sua produção literária abrangeu praticamente todos os gêneros, incluindo poesia, romance, crônica, dramaturgia, conto, folhetim, jornalismo e crítica literária. Após sua morte não faltaram impiedosas acusações à sua memória. Os poucos que o criticaram foram esquecidos pelo tempo. Silvio Romero disse ter sido “capacho de todos os governos”. Hemetério José dos Santos disse que, logo que o casamento e a posição social o levaram para outro ambiente, ao lado de gente branca, desprezara a madrasta, por ser negra. E Pedro do Couto dizia que sua obra não tinha filosofia ou psicologia e só lhe restava o mérito de “escrever bem”.

A leviandade dos críticos não lhes permitiu entender a grandeza da obra de Machado de Assis. No último dia 21 comemoramos 186 de seu nascimento. Sua obra precisa ser lida e estudada e seus equívocos pessoais, como a defesa da condenação de um juiz pelo exercício de sua atividade, precisam ser relevados. Se Cristo, considerado filho de Deus, secou uma figueira porque não tinha fruto, sem considerar se era estação frutífera, por que condenar Machado de Assis por uma opinião em tema que não era da sua especialidade? Basta-nos a obra que nos legou. E já é muito. Se tivesse escrito em língua das potências europeias estaria melhor posicionado mundialmente que Shakespeare, Cervantes e muitos outros autores clássicos, e somente disputaria o podium com Dostoievski.

 

Fonte: Publicado originariamente no jornal O DIA, em 28/06/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/06/7082553-joao-batista-damasceno-machado-de-assis-e-a-criminalizacao-dos-juizes.html


sexta-feira, 13 de junho de 2025

Essa polícia é de matar!

Numa monarquia autocrática ou teocrática o poder se legitima como se emanasse do próprio trono ou de Deus. A ideia do poder emanando de Deus chegou a ser teorizada em obra do jurista francês Jean Bodin, de 1576, no nono ano da fundação da Cidade do Rio de Janeiro, após expulsão dos protestantes franceses.

Posteriormente a Bodin outros filósofos escreveram que o poder não emana de deus, mas se constitui por um pacto civilizatório entre os cidadãos. Assim, em 1789, os franceses fizeram uma revolução, cortaram a cabeça do rei e mostraram que seu sangue não era azul, mas vermelho como o de todos. E numa assembleia nacional constituíram um novo modelo de Estado, declarando que todo o poder emana do povo.

Nas monarquias absolutistas tinha-se a concepção de que o rei não erra e que aqueles que agem em seu nome têm a presunção de estarem realizando sua vontade. Daí a presunção de legitimidade de seus atos. Mas nas democracias, onde o poder emana do povo, os agentes públicos não podem pretender privilégios que os sobreponham aos cidadãos.

Embora seja signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, o Estado brasileiro mantém a tipificação do crime de desacato. Tal crime cerceia as liberdades públicas e foi instituído em favor dos agentes públicos contra a cidadania. No Rio de Janeiro o Tribunal de Justiça editou súmula (nº 70) reconhecendo que a palavra do policial é prova suficiente para a condenação. A revisão da súmula não afastou a presunção de veracidade. Portanto, se o policial diz que foi desacatado o cidadão está no sal. O Brasil já foi condenado algumas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela violação ao pacto por ele firmado e ratificado em defesa dos direitos humanos. Mas a condenação recai sobre o Estado e os governantes e agentes políticos que autorizam ou legitimam as violações nada sofrem.

O assassinato do office boy Herus Guimarães Mendes, de 23 anos (é preciso dizer que tem profissão para afastar a legitimação da execução), no Morro Santo Amaro, entre os bairros da Glória e Catete na Zona Sul do Rio de Janeiro, durante uma festa junina, é emblemático e mostra do que é capaz a política de extermínio instituída no Rio de Janeiro. Se na Zona Sul, durante uma festa junina, a polícia é capaz de ferir e matar moradores, imaginemos do que é capaz à noite nas ruas e becos não iluminados da Baixada Fluminense. A supremacia das armas e da truculência acanha e subjuga qualquer resquício de cidadania. E tudo sob o manto protetor da presunção de legitimidade dos atos de autoridade e de seus agentes. É o próprio estado policial em sua mais brutal aparição!

Diante do bestial assassinato de Herus, a PM afastou 10 policiais que participaram da operação e exonerou o coronel André Batista, comandante do Comando de Operações Especiais (COE), bem como o coronel Aristheu Lopes, comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope). Um sargento, possivelmente escalado para bucha, diz ter sido o único a efetuar disparos. A coisa ganha ares estranhos. Se era um tiroteio contra traficantes, por que somente um dos agentes teria disparado sua arma?

A violência policial é tema que me levou a iniciar escrever neste jornal em 2007. Em 16/02/2019, em artigo intitulado “A Boa Polícia” , tratei de uma incursão da PM no Morro do Fallet que causou 15 mortes. Um erro de publicação atribuiu as mortes ao Bope. Mas o então comandante do BPChq, tenente-coronel André Batista, reivindicou a operação. Ele já havia comandado o 9° BPM de Rocha Miranda. Trata-se de policial da elite da tropa, com currículo premiado. Foi o negociador do sequestro do ônibus 174, onde morreram a professora Geisa Gonçalves e o assaltante Sandro Barbosa. Além disto, é coautor do livro Elite da Tropa em parceria com o ex-capitão Rodrigo Pimentel, reformado da PM por surdez, e com o literato Luiz Eduardo Soares. O personagem André Matias no filme Tropa de Elite, teria sido inspirado em André Batista. Foi subsecretário do literato Luiz Eduardo Soares em Nova Iguaçu, na gestão do então prefeito Lindbergh Farias.

A polícia violenta, mas incorruptível, retratada no filme Tropa de Elite 1, decorre da concepção de uma “boa polícia” da qual falam o literato Luiz Eduardo Soares, da Uerj, e os formuladores do curso de Segurança Pública, da UFF. Em suas formulações, a “boa polícia” há de ser incorruptível, mas pode ser violenta, pois corrupção é uma opção; é um desvio pessoal. Mas a violência é um desígnio inevitável da atuação policial.

Terminei aquele artigo dizendo que nos resta apelar para o Tribunal Penal Internacional, para que a cadeia de comando da política de extermínio e aqueles que para ela concorrem, por não exercitarem o regular controle externo da atividade policial, sejam julgados por eventuais crimes contra a humanidade, assim considerados os massacres, a desumanização, os extermínios e as execuções. O texto me propiciou um irado telefonema do então governador e bloqueio nas redes sociais, o que me tira o sono até hoje.

Em 08/05/2021 voltei ao tema em artigo intitulado “Polícia fluminense matou mais 27”, analisando a incursão da Core no Jacarezinho, na mais letal operação policial da história do Rio de Janeiro, salientando dúvida, fundada em precedentes, sobre efetivo confronto e exercício de legítima defesa.

Punir alguns policiais e manter a política de extermínio é a receita para legitimar a continuidade das execuções dos indesejáveis. Mas às vezes os matadores erram na execução e até a mídia reclama.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 14/06/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/06/7074735-joao-batista-damasceno-essa-policia-e-de-matar.html


segunda-feira, 2 de junho de 2025

FILOSOFA NA PRAIA, COPACABANA E CHOQUE DE ORDEM


O prefeito Eduardo Paes editou um decreto no último dia 15 que causou mais reboliço na Praia de Copacabana que causariam correrias e gritos de que está havendo arrastão. Já presenciei uma cena dessas. Um segurança desconfiou de uns meninos que cruzavam por mim no calçadão e ao andar em direção a eles cada qual correu num sentido. Apareceram pessoas de todos os lados correndo atrás dos garotos sem saberem o porquê empreendiam a caçada. Outros meninos aproveitaram para fugir, antes que fossem confundidos com os que eram perseguidos. Banhistas igualmente se apressaram em sair da areia. Mães com suas bolsas, cangas, toalhas e filhos colocados debaixo do braço também corriam para deixar a praia, fugindo da violência imaginária. Continuei minha caminhada pois vira que nada tinha acontecido que justificasse aquela agitação. Fui até o fim do calçadão. Ao retornar pude ver que o alvoroço se ampliara. Havia carros de polícia com sirenes e giroflex ligados, guarda-vidas com seus quadriciclos rodando pela areia em alta velocidade tal como se estivessem num rally pelo deserto, guardas municipais empunhando seus cassetetes tais como D. Pedro I com sua espada proclamando a independência, crianças e adolescentes magrelos com os olhos arregalados detidos dentro das viaturas e uma multidão de curiosos no entorno contando suas versões. Todo mundo era um pouco cinegrafista, fotógrafo e repórter naquela cena. O furdunço começara do nada e ninguém sabia explicar o que tinha acontecido, mas não faltavam versões imaginárias. Eu que tinha visto o começo da história, testemunhei como um grande incêndio pode começar com uma simples fagulha.

Mas voltemos ao decreto do prefeito! Trata-se de um ato regulamentar que dispõe sobre a proibição de atividades que contrariem o ordenamento urbano e público na orla marítima da Cidade do Rio de Janeiro. Copacabana é a praia mais famosa do mundo e o bairro que, talvez, tenha a maior diversidade, inclusive de classes sociais. Pretender ordenar as múltiplas interações e relações estabelecidas em Copacabana deve ser mais dificultoso que a pretensão de impor moralidade em alguns estabelecimentos da Rua Prado Júnior, no mesmo bairro, com a ostentação de uma imagem de São Jorge. Mas se não é possível ordenar a vida social pelos meios normativos e repressivos é necessário que as instituições se imponham como referencial de ordem e redutoras das incertezas do futuro.

O decreto não tem novidade alguma. Tão somente trata da necessidade de preservar o ordenamento urbano, a segurança, o sossego público e a adequada utilização dos espaços públicos na orla da cidade, bem como visa a reforçar o combate a práticas que representem abusos, desordem ou usos indevidos da orla que interfiram na mobilidade, limpeza urbana, meio ambiente e qualidade de vida dos cidadãos. É só isto. E não poderia ser diferente. Um decreto apenas regulamenta direitos, deveres e interesses dispostos em lei. Não pode dispor de forma diferente da norma superior. A hierarquia das normas impede que uma norma inferior contrarie a superior. Uma lei é editada por dois poderes: o Legislativo e o Executivo. Um decreto é ato normativo que visa a explicitar um comando para o cumprimento daquela. O problema ficou no campo da interpretação. No decreto faltou explicitação de alguns temas e poderia oportunizar discricionaridades ou até mesmo arbitrariedades. E daí o pânico dos trabalhadores dos quiosques.

No dia 27 o prefeito editou novo decreto, com redação esclarecedora, revogando expressamente o anterior. Mas valeu o alerta. De vez em quando é preciso relembrar que a vida coletiva demanda restrição a interesses privados em proveito dos interesses coletivos ou sociais. Se cada qual quisesse conduzir seu carro no sentido que o nariz lhe aponta, nenhum de nós sairia do lugar. A imobilidade seria total.

Copacabana é um bairro ímpar. Mas por vezes é impossível andar no calçadão dada a quantidade de tapetes, toalhas e cangas espalhadas com mercadorias expostas, por trabalhadores ambulantes que não deambulam. Na ciclovia às vezes é pior. Mães com carrinhos de bebê reborn, cachorros conduzidos por seus tutores, ciclomotores, bicicletas elétricas e patinetes infernizam a vida de quem deseja pedalar. Quem mora na orla tem a necessidade de janelas antirruído, em razão dos carros tunados com alto-falantes amplificados nos domingos e feriados e outros sons que se socializam sem a demanda dos demais ouvintes. Na pista fechada para uso dos pedestres se locomovem os ciclistas. Alguns quiosques se pretendiam casas de espetáculo ou salões de festa, sem preocupação com o sossego da vizinhança. Só isto!

A cada quinze dias no quiosque da Maria Alice, o Espaço A, em frente ao número 974 da Avenida Atlântica, das 11h00 ao meio-dia, um tema é exposto por um filósofo, cientista social ou escritor e debatido entre os presentes. O decreto originário chegou a perturbar alguns que frequentam a atividade cultural. Mas a ela não se destinava. Assim, hoje, teremos conferência do professor Carlos Frederico Gurgel, sobre “A consolação da filosofia”, de Severino Boécio, escrita por volta do ano 524. Trata-se da mais importante obra filosófica do Ocidente até o início da Renascença.

Estive com o Secretário Municipal de Ordem Pública, Brenno Carnevale, rimo-nos do alvoroço imotivado e lembramos que o decreto do prefeito funcionou tal como o sino da igreja que toca não para os fiéis, que sabem a hora da missa, mas para lembrar, àqueles que andam faltando, que o templo ainda existe. O decreto apenas rememorou que as atividades em público se subordinam ao interesse público.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 31/05/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/05/7065666-joao-batista-damasceno-filosofa-na-praia-copacabana-e-choque-de-ordem.html


Monteiro Lobato, Bacharelismo e o povo brasileiro