Em 1862 o governo inglês promoveu um conjunto de exigências
impróprias ao governo imperial brasileiro, dentre elas uma indenização pelo
saque da carga de um navio britânico que encalhara no Rio Grande do Sul, a
demissão dos militares que haviam prendido uns oficiais ingleses que, bêbados,
haviam se metido em arruaça no Rio de Janeiro e um humilhante e formal pedido
de desculpas. Apesar de soltos logo depois de identificados, o embaixador
inglês William Christie, arrogantemente, exigia que os militares brasileiros
que efetuaram a prisão fossem demitidos. Não aceitadas as imposições,
embarcações inglesas invadiram as águas nacionais, adentraram na Baía de
Guanabara e apreenderam cinco navios brasileiros como indenização pelo que
requeriam.
A crise com a Inglaterra levou à derrubada do governo que era
presidido por Duque de Caxias, cuja atuação não contemplava o interesse
nacional. Mas o incidente contribuiu para o fortalecimento do sentimento
nacionalista e o Brasil passou a buscar maior autonomia em relação à
Inglaterra. Até Teófilo Otoni, crítico do Imperador D. Pedro II, apoiou o
monarca ante a necessidade de prevalência dos interesses nacionais.
O nacionalismo crescente e a vitória na Guerra do Paraguai, que terminou em 01
de março de 1870, influiu no ânimo dos militares que acabaram se sobrepondo ao
Estado, culminando com o golpe da Proclamação República em 1889. Desde então
várias foram as intervenções militares no funcionamento dos poderes do Estado.
O judiciário contribuiu para que tal acontecesse, acolhendo o que se chamava
“Objeção do Caso Político”. Tratava-se do afastamento da apreciação de um caso
pelo judiciário, se a questão envolvesse interesses políticos. Rui Barbosa
insistia que mesmo em casos com interesses políticos, cabe ao judiciário a
arbitragem com fundamento na lei, no que tivesse sido alegado e no que tivesse
sido provado. Mas Rui perdia sempre.
Os militares usurparam poder e se julgaram árbitros de
conflitos políticos em toda a República. A Marinha, formada sob orientação de
oficiais ingleses, sempre manteve pretensão aristocrática e antipopular. A
Aeronáutica, pelo momento de sua criação em 1941, luta na Segunda Guerra
Mundial e orientação dos EUA, tinha expressiva parte dos seus quadros ligados
ao elitismo asséptico da UDN. A Força Aérea Brasileira teve seus quadros
formados a partir da aviação do Exército. Este parecia uma Arca de Noé, com bicho
de todo tipo e era plural até 1964.
O golpe empresarial-militar de 01 de abril de 1964, tramado
por militares e empresários entreguistas brasileiros, com o apoio dos EUA,
buscou suprimir das Forças Armadas os militares democratas, nacionalistas,
liberais, socialistas ou com qualquer concepção que pudesse ser considerada
popular ou à esquerda do espectro político. Restou a gentalha, também conhecida
como “Linha Dura”, responsável pelo que se fez nos porões dos quartéis. Até os
quadros oriundos ou influenciados pelo tenentismo foram perseguidos. Restaram
os entreguistas, interesseiros, lambedores de botas ianques e grileiros de
terras nas regiões submetidas aos seus comandos.
O golpe de 1964 foi tramado por brasileiros que colocaram
seus interesses acima dos interesses nacionais e para satisfação dos EUA. A
abertura dos arquivos dos EUA revelou a atuação do presidente Lyndon Johnson, a
possibilidade de divisão do Brasil a exemplo do que fora feito com outros
países (Coreia, Vietnã, Iemen etc) e o envio da Quarta Frota para apoiar os
golpistas, nominada de Operação Brother Sam. O documentário ‘O Dia que Durou 21
anos’ expõe os documentos já publicizados nos EUA.
Neste momento, a decisão do governo Trump de impor sanções comerciais ao Brasil
visando a pressionar o funcionamento do STF é mais um embate desses que já
vivenciamos na construção da nossa soberania. Felizmente sempre tivemos
brasileiros de matizes ideológicas diversas que tinham visão institucional e
não se renderam às chantagens estrangeiras. Aqueles nacionalistas inadmitiram
pressão sobre o funcionamento de nossas instituições que hão de ser harmônicas
e independentes. Os poderes são harmônicos quando cada um se limita às suas
funções e serão independentes se não precisarem, para funcionar, de autorização
dos demais. Nem dos demais, nem de potências estrangeiras.
O nazifascismo é tosco e desumano. Sua indigência intelectual
não lhe permite compreender padrões de civilidade. Por isso não compreende o
conceito de soberania nacional, autodeterminação dos povos, independência de
poderes e limites civilizatórios. O filme estadunidense ‘Amistad’, de 1997, de
Steven Spielberg, baseado em eventos reais, retrata a luta de um grupo de
africanos escravizados em território estadunidense, desde a revolta a bordo do
navio ‘La Amistad’, em 1839, até o julgamento por um tribunal e sua libertação.
A rainha da Espanha não compreendia a falta de poder do presidente dos EUA em
liberar o navio apreendido e sua carga humana. Não adiantava a explicação de
que a questão estava subordinada a um tribunal, que não haveria de sofrer
ingerência para contemplação dos interesses de Sua Majestade.
Além da pressão ao STF para satisfazer entreguistas, o que
contraria os EUA é a formação dos BRICs, a viabilidade de comércio intermediado
pelas próprias moedas e a possibilidade de criação de uma moeda comum que não
seja o dólar americano. Como escreveu o Estadão em seu editorial de
quinta-feira (10), “que o Brasil não se vergue diante dos arreganhos de Trump.
E que aqueles que são verdadeiramente brasileiros não se permitam ser sabujos
de um presidente americano”, porque isso é “coisa de mafiosos’.
Fonte: Publicado no jornal O DIA
em 12/07/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/07/7091156-joao-batista-damasceno-entreguistas-traidores-da-patria.html