Trafegando pela Avenida Pasteur,
em Botafogo, à minha frente um ciclista pedalava pela pista de rodagem. A
partir do entroncamento com a Rua Repórter Nestor Moreira tal avenida não mais
dispõe de ciclovia. O Código de Trânsito Brasileiro reconhece a precedência do
ciclista sobre os automóveis, se inexistir ciclovia. Conduzi o carro em baixa
velocidade, possibilitando ao ciclista continuar transitando, com prioridade, à
minha frente. Uma ultrapassagem somente seria permitida se pudesse fazê-lo com
um metro e meio de distância, o que a largura da via não permitia. Ao chegar ao
semáforo existente em frente à Policlínica de Botafogo, pensei que o ciclista
fosse parar, pois o sinal estava fechado para veículos de qualquer espécie. Mas
sem se importar com a norma de trânsito, o ciclista avançou o sinal ameaçando
de atropelamento um casal de idosos que se amparava reciprocamente para
atravessar a rua na faixa de pedestres.
Nossa realidade está permeada por
exigências de comportamentos alheios sem condutas similares às que exigimos de
terceiros. É o problema do moralismo. O moralismo é a ética de quem não tem
ética. O ciclista transgressor, certamente, exige respeito e cuidado, mas não
atuou com a mesma reciprocidade com os idosos que saíam do hospital. Isto ocorreu
no domingo passado, dia 17.
Na sexta-feira, dia 15, meu
assessor Danny Rogers Coelho Teles fora atropelado por uma bicicleta e morreu.
Ele fora meu aluno na faculdade de Direito. Ao fazer seleção para assessor no
Tribunal de Justiça ele, que se tornara serventuário da justiça por concurso
público, se candidatara à função. Fora bom aluno. Era da turma do fundão da
sala, que juntamente com outros eram os mais bagunceiros e participativos das
aulas. Num semestre dei aula pela manhã. No semestre seguinte pedi
transferência para a noite. Mas deles não me livrei. Eles se inscreveram à
noite e continuaram os cursos comigo. E assim estabelecemos uma relação de
ensinagem, processo pedagógico no qual quem aprende também ensina e quem ensina
aprende. O clima era de seriedade, compromisso com os objetivos dos cursos e
muita camaradagem.
Ao ser informado do atropelamento
por uma bicicleta e do óbito do meu assessor, duvidei da notícia. Afinal, uma
bicicleta não é capaz de causar dano tão acentuado. Mas era verdade. Meu
assessor, voltando de encontro com amigos atravessava a Avenida Vieira Souto,
em Ipanema, na proximidade da Rua Maria Quitéria e, terminando a travessia, foi
atropelado por um ciclista profissional que, em alta velocidade, treinava
naquela madrugada. O ciclista igualmente sofreu fraturas, mas sem gravidade.
Ambos foram socorridos para o Hospital Miguel Couto. Meu assessor não saiu de
lá vivo. O ciclista foi imediatamente transferido para um hospital, desses
existentes na Zona Sul do Rio de Janeiro destinados ao atendimento de quem
tenha dinheiro que atribua o direito à saúde.
A dinâmica do acidente ainda
precisa ser investigada e esclarecida. É certa a materialidade. É certo que uma
pessoa morreu em decorrência de um acidente envolvendo um ciclista. Mas antes
de questionar sobre o comportamento dos dois envolvidos no evento, é preciso
apreciar o comportamento do poder público que autoriza o uso das vias públicas
para treinamento por desportistas de alto rendimento.
Sem iluminação, sem motor que
faça barulho, com pequeno volume e alta velocidade, uma bicicleta de corrida é
imperceptível à noite. Trata-se de inegável irresponsabilidade
política e administrativa a decisão do poder público de autorizar tal prática
desportiva em via pública. O ciclismo é o esporte, dentre todos
os outros, que mais promove fraturas, proporcionalmente ao número de acidentes.
Já não bastam as motos, os ciclomotores, os patinetes e as bicicletas elétricas
por calçadas, ciclovias e entre os carros? As ruas serão transformadas em
velódromo à noite, colocando em risco a vida e a integridade
física das pessoas? Na ausência de autódromo na cidade, igualmente
serão permitidos os treinos de Fórmula 1 pelas ruas do Rio de Janeiro? Onde
estão os legados dos grandes eventos que consumiram centenas de bilhões em
recursos do erário para alegria dos cartolas que não nos deixaram ao menos um
velódromo?
Dispõe a lei que quem de qualquer
forma concorre para um crime incide nas penas a ele cominadas. A
responsabilidade civil e a administrativa são regidas pelo mesmo princípio. E
mais: A dimensão ética que há de permear as relações sociais e as relações dos
cidadãos com o poder público não permite a isenção da responsabilidade das
autoridades que contribuíram para o desfecho trágico. Além da responsabilidade
civil da Administração pública também estamos diante da responsabilidade dos
seus agentes.
É absurdo que uma cidade como o
Rio de Janeiro não tenha um velódromo onde os ciclistas profissionais possam
treinar. É impensável que desportistas profissionais usem as vias públicas em
seus treinos colocando em risco os cidadãos. A cidade do Rio de Janeiro foi
cenário de vários eventos que prometiam legados. Além da Copa do Mundo de Futebol
de 2014, tivemos os Jogos Panamericanos de 2007, os Jogos Mundiais Militares de
2011 e as Olimpiadas de 2016. Onde está o velódromo que poderia ter poupado a
vida de um pai de uma menina de dois anos? Não há via nas quais possam ocorrer
treinamentos desportivos sem colocar em risco a vida dos cidadãos cariocas e
fluminenses? Cabe ao poder público e aos seus agentes a resposta, a
responsabilidade e tomada de providências.
Retrato triste e feio das cenas a que assistimos diariamente.
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