domingo, 7 de setembro de 2025

Gratificação da política de extermínio


 

Dispõe a Constituição que é assegurado aos funcionários públicos revisão geral anual das suas remunerações, sempre na mesma data e sem distinção de índices. Mas no Rio de Janeiro tal direito encontra óbice na alegação do regime de recuperação fiscal. Inegável a crise no Estado do Rio., sem igual desde que se tornou capital do Brasil, em 1763. As indústrias migraram do estado, não se tornou polo de tecnologia e conhecimento, a cidade do Rio deixou de ser capital e, embora seja a mais bela cidade do mundo, sequer é o primeiro destino turístico. Na Polícia Civil não há verba para implementação das gratificações por mestrado e doutorado, nem assistência à saúde dos servidores policiais.

O cenário é triste. Mas não faltam recursos para certos tipos de gratificações e certas promoções, dentre elas as gratificações para quem atua na Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil do Rio de Janeiro (CORE) e para quem é beneficiado com reconhecimento de bravura. Quem atua na CORE recebe gratificação pela lotação e se lhe reconhecerem bravura ganha promoções e gratificação de 20% sobre o vencimento. Mas há quem receba acréscimo de 40%. Promoção, gratificação por lotação e gratificação permanente por bravura! É uma farra. De novembro do ano passado a julho deste ano, a polícia civil promoveu 563 policiais por bravura. A cada dia foram promovidos por bravura dois policiais, implicando aumento salarial dos agraciados e ocupação das vagas destinadas a promoções por merecimento e antiguidade.

Em tempos passados a política de segurança do Estado do Rio de Janeiro instituiu a ‘gratificação faroeste’. Tratava-se de uma recompensa em dinheiro para o policial que se envolvesse em confronto armado. O resultado não poderia ser pior. Aumentou-se a letalidade e não foram poucas as fraudes. Policiais chegaram a simular confronto para o recebimento do ‘jabá fúnebre’.

A ideia de promoção ou recompensa por bravura é algo estranho a uma política de segurança que vise a proteger vidas e estabelecer relações cordiais entre os agentes do sistema de segurança e a sociedade. A recompensa por bravura surgiu nas instituições militares em tempos de guerra e somente a recebia o combatente que tivesse sido reconhecido por feito excepcional. Pelo ato ordinário, durante uma guerra, nenhum soldado recebe recompensa por bravura, pois combater o adversário é sua missão.

A CORE, que não processa inquéritos dada sua natureza operacional, tem mais que o dobro dos policiais lotados na Delegacia de Homicídios (DH), que investiga todos os homicídios ocorridos na Cidade do Rio de Janeiro.

A gratificação e a promoção por bravura implicam violação aos direitos daqueles que realizam trabalhos ordinários, imprescindíveis para as investigações. A gratificação por bravura é irmã siamesa da ‘gratificação faroeste’ que causou muitos danos à sociedade civil fluminense. E, neste momento está vulgarizada. A ‘gratificação faroeste’ exigia enfrentamento, real ou simulado, normalmente com relato de ação letal. Nas promoções por bravura há relato de inclusões indevidas de apaniguados nos Registros de Ocorrências. Até fato ordinário ocorrido em sede policial tem sido registrado como bravura, pavimentado a folha funcional do agraciado a fim de garantir-lhe promoção e gratificação. Há registro de policial que recebeu seis reconhecimentos de bravura num mesmo dia. Nem o personagem Rambo foi capaz de tal proeza.

Realizou-se na Assembleia Legislativa (ALERJ), no dia 28/08, audiência pública, com a participação do Sindicato dos Delegados de Polícia (Sindelpol-RJ). Mas a cúpula da direção do estado não compareceu para o debate e publicização republicana de suas condutas. Enquanto se desenvolvia a audiência na ALERJ, reuniram-se na Cidade da Polícia com parlamentar cujo histórico registra honraria a miliciano. O objetivo da reunião na Cidade da Polícia foi a comunicação de aumento do valor da gratificação de quem está na CORE fora da atividade de investigação. Além da desorganização do serviço público, tal prática pode vir a implicar na formação de grupos ou quadros eleitorais oriundos de tal tipo de beneficiamento, aumentando a violência no período eleitoral, com risco para a própria democracia.

A promoção e a gratificação por bravura prestigiam quem atua com letalidade, em detrimento de quem investiga com inteligência e legalidade exercitando a atividade fim. O prestígio à operacionalidade na Polícia Civil enfraquece sua função investigativa, atividade que lhe é própria, favorece a ação repressiva e propicia o aumento de letalidade. Enquanto isto os crimes ocorridos não são investigados e aumenta-se a sensação de impunidade.

A CORE atua fora das atribuições institucionais da Polícia Civil. A Polícia Militar tem a função de evitar ostensivamente a ocorrência dos crimes. A Polícia Civil tem a função de apurar as ocorrências criminosas e seus possíveis autores. Por isso a Polícia Civil não usa farda e sua atuação há de ser com a discrição indispensável às investigações.

Se a remuneração por lotação em órgão operacional, mesmo sem operacionalidade, e se as gratificações e promoções por bravura estiverem vinculadas à eleição vindoura de 2026, quem as promove poderá ser responsabilizado por abuso de poder político, caso esteja incidindo em favorecimento com fins eleitorais. A gratificação por lotação na CORE, a farra das bravuras e as promoções delas decorrentes hão de merecer atenção dos órgãos de controle, notadamente do Ministério Público Eleitoral. É questão de preservação da democracia e justiça com os demais trabalhadores policiais preteridos.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 08/09/2025, pag. 12.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Adeus ao amigo Sílvio Tendler!

 


As fotos registram dois dos muitos encontros que tive com meu amigo Sílvio Tendler. Todos recheados de ironia, sarcasmo e seriedade. Mas nenhum com sisudez.

O pássaro no meu ombro, na foto à esquerda, é Renè. O nome francês é porque o Silvio não sabia o sexo do animal. Daí que poderia manter o nome quando descobrissem ou ele declarasse ser do sexo masculino, feminino, interssex ou neutro. Sem embarcar no identitarismo, Sílvio ria da situação. Passei longos momentos conversando com Sílvio, com a participação do Renè. Renè participava das conversas e repetia o som que emitíamos ao fim de cada frase. Renè assobiava A Internacional (quando queria). Na maioria das vezes emitia uns sons que não sabíamos o que significava, mas o incluíamos na conversa. E era muito divertido. A foto é de 02 de março de 2024. Numa das internações hospitalares do Sílvio, Renè – sentindo sua falta – saiu pela janela para procurá-lo e nunca mais voltou.

A outra foto registra a exibição e debate do documentário do Sílvio “Os Advogados Contra A Ditadura”. Nela estão o Silvio, a inigualável Eny Moreira, Modesto da Silveira e eu. Sem os três eu me sinto órfão mais uma vez.

Com o Sílvio eu me divertia fazendo coisas sérias. Numa delas foi numa reunião do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), onde ambos éramos Conselheiros Titulares, e uma corja indecente queria punir um idoso que – durante a pandemia – se descuidara e trocara de roupa diante da câmera. O ancião supunha ter desligado a câmera, quando o havia feito tão somente do microfone. Os moralistas, sem ética, queriam compor uma comissão para investigação da conduta do velhinho. Opus-me que os próprios acusadores formassem a Comissão Torquemada para investigação da nudez inadvertida. Retiraram um deles da Comissão Savonarola e incluíram o Sílvio. O Sílvio era o único opositor da formação da comissão e da punição do descuidado ancião.

Ao fim da reunião, satisfeito com a inclusão do Sílvio na Comissão de Investigação por Ato Atentatório à Moralidade dos e das Vestais da ABI, sugeri que a apresentação do Relatório da Comissão de Investigação fosse precedida da apresentação do filme “Toda Nudez Será Castigada”. O Sílvio se escancarou de rir e um escroto, que hoje ocupa cargo de Conselheiro da Presidência da República, nos recriminou, dizendo que aquela comissão era coisa séria.

Nas reuniões que fizeram, para apurar a nudez, o Silvio preparou um parecer que começava relatando o julgamento d`As Bruxas de Salém e outras atrocidades registradas na história, bem como relembrou a história de cada um dos algozes do ancião. Todos se calaram, a comissão encerrou seus trabalhos, não fez qualquer relatório e o assunto jamais voltou a ser comentado nas reuniões da ABI. Em consequência o velhinho que se descuidara e trocara de roupa com exibição online deixou de viver sob a espada de Dâmocles que o sujeitava a situação vexatória. Tratou-se de uma comissão criada, instalada e esquecida, sem ato de encerramento dos seus trabalhos. Era coisa de gente moralista, com a ética própria dos moralistas, ou seja, de gente desocupada que não tinha outra coisa a fazer senão promover o mal-estar a terceiros. Os escrotos são maus e desejam a infelicidade alheia. Este é o sentido do termo.

Não faltaram trapalhadas. Na exibição do filme, também do Sílvio, “Ousar Viver! Histórias da Maria”, no antigo Estação Botafogo, em 11 de março passado, às 18h00, o Sílvio me mandou áudio da porta do cinema: “Estou te esperando! Estou te esperando! Já estou aqui no cinema”. Fui prá lá. Estava nas proximidades e cheguei em minutos. A exibição começaria às 20h00.

Foram muitos os encontros, conversas e provocações com o Sílvio. Todas com muito humor. Nossos últimos desencontros e mensagens foram no início de julho. Num ele reclamou que eu não estava num restaurante que ele esperava me encontrar. Noutro, ele me chamou para ir à sua casa. Mas eu acabara de chegar em casa cansado e fiquei de ir outro dia. Entrei em férias, viajei em julho, retomei às atividades no Tribunal e na universidade em agosto, quando ele já estava internado, e não fui ao seu encontro.

Sílvio não era tímido quando queria reclamar a visita dos amigos. Numa das suas internações eu lhe mandei mensagem perguntando como estava. Ele não disse do seu estado. Disse onde estava e o número do quarto. Fui imediatamente vê-lo. Ao entrar no quarto ele caiu na gargalhada e disse: “Você entendeu que o que eu queria era visita". Rimos juntos.

Rirei toda vez que lembrar das conversas que tivemos. Algumas impublicáveis!