Ao longo da história as sociedades se organizaram com fundamentos em valores e princípios que lhes possibilitaram existir. Suas instituições tinham a função de referência de ordem e redutoras das incertezas do futuro. Chegamos ao século XX com a consciência de que a riqueza socialmente produzida precisava ser repartida e todos tinham o direito à participação na organização e destino da sociedade. O século XX foi a Era de Ouro do mundo do trabalho. Mas assistimos à derrocada de tal modelo e a vida se precariza.
As novas tecnologias dispensam massivos contingentes de mão
de obra. A desregulamentação precariza as relações de trabalho e difunde-se a
ideia de que cabe a cada um, por seus próprios meios, atingir seus objetivos.
Tudo é desregulamentado, menos a propriedade. Tudo se transformou em
mercadoria. Até a água teve sua natureza alterada. Desde 1997, no Brasil, água
é bem econômico. Não mais é bem natural a todos acessível e sua captação não
mais é livre.
O “Vale-Tudo” nos ringues foi renomeado de MMA. Mas ainda não
há nome para designar o vale tudo nas relações sociais. Não é fascismo, evento
que ocorreu na metade do século XX, nem é fenômeno que possa ser designado pela
adjetivação do nome de indivíduo que simboliza a boçalidade. A selvageria que
estamos revisitando está expressa na conduta de certos indivíduos, mas com eles
não pode ser confundida. São bárbaros, mas não inventaram a barbárie. São
incultos, mas não inventaram a ignorância. São negacionistas, mas não
inventaram a irracionalidade.
Na semana passada a luta armada entre Popó e Wanderlei Silva,
no Spaten Fight Night, foi exemplificativa do tempo no qual vivemos. O esporte,
que é meio de exercício civilizado da violência própria da natureza animal do
ser humano, foi igualmente afetado pelo desvalor que triunfa. Dois veteranos
dos ringues, um no boxe, outro no MMA, nos deu a dimensão do fenômeno no qual
estamos imersos. O boxe já foi proibido no Brasil, dada a sua lesividade e já
teve negada sua natureza esportiva. O espetáculo, entre os gladiadores
aposentados, patrocinado por uma cervejaria, não foi um evento esportivo.
Tratou-se apenas de entretenimento para vender ingresso e gerar repercussão,
tal como fazem-se nas rinhas de galo, lutas de cães ou arremesso de anão. Foi o
espetáculo da barbárie contemporânea.
No ringue, um dos gladiadores ignorou as regras, cabeceou
ilegalmente o oponente e acabou desclassificado. O vencedor foi aclamado por
mera formalidade. Quem pagou para ver aquilo ou quem ficou acordado para
assistir mereceu o que teve. Mas a bizarrice não acabou. As equipes dos
gladiadores entraram em campo e ofertaram um aprimoramento da incivilidade:
socos, chutes, empurra-empurra, nocaute depois do confronto, nariz quebrado,
sangue e muito mais.
A rusticidade, com toda sua crueza, nos leva a refletir sobre
as relações sociais no tempo presente, notadamente as relações que envolvem a
política, a governabilidade e a administração do que é público. O evento era a
própria desregulamentação da vida social demandada pelo anarcocapitalismo onde,
tal como no Estado de Natureza, inexiste regra de bem viver e vale a lei do
mais forte. O evento em si foi falso, não tinha qualquer importância, o primado
foi o da violência injustificada e todos perderam, tanto os gladiadores, seus
auxiliares e quem assistiu. Somente quem arrecadou na bilheteria pode se dizer
ganhador.
O ministro Luis Roberto Barroso, do STF, acreditou termos
vencido a incivilidade e a nomeou com adjetivo que é pouco para a definição.
Precisamos de um nome. A lógica da luta tem o mesmo código do fenômeno que
perpassa as atuais relações sociais: ignorância, violência, encenação, fake
news e desprezo pelos valores civilizatórios. Já não é a sociedade do
espetáculo. É o espetáculo do que é grotesco, ridículo, extravagante, da
fanfarronice e da presepada sem base sólida que lhe dê sustentação, a não ser a
polarização volátil em proveito de quem lucra.
O que se viu é corrosivo da civilidade. Não há vencedor
nessas condutas, seja no ringue ou na arena política. Quem participa, assiste
ou torce é um perdedor. Perdemos todos, pois tais condutas são as pás com as
quais se cavam a sepultura do que a humanidade construiu ao longo da sua
existência. O fenômeno no qual estamos mergulhados é corrosivo da civilidade e
destrutivo da humanidade.
Os dois personagens e seus asseclas são a expressão do
fenômeno que nos apavora. Aquele ringue era o extrato do pensamento social que
permeia as relações atuais no Brasil. Se era boxe não tinha lugar para cabeçada
nem chute. Mas como exigir respeito às regras se no vale tudo da vida social a
norma é o golpe violador da regra, o desejo de anistia ou a redução da
penalidade? Em carne e osso (embora fraturado) o estilo visto no ringue é o
vigente na atualidade. Este é o esporte que o fenômeno ainda inominado difunde.
É o Vale-Tudo, onde o mais forte tritura o mais fraco. É o
espetáculo da destruição sem pretensão de reconstruir algo que possa ficar no
lugar. É a técnica do gafanhoto que a tudo devora e destrói. O mais estiloso é
o que aplica o golpe mais baixo, tem a ignorância como metodologia e a terra
arrasada como projeto a ser concluído. É possível dizer ao Wanderlei Silva:
“Perdeu Mané! Mas relaxe! Com a difusão de tais modos incivilizados, perdemos
todos. E perderemos muito mais se continuarmos por onde estamos indo.
Perdoemo-nos! Anistiemo-nos! A anistia apaga tudo, para recomeçarmos do mesmo
modo”.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 04/10/2025,
pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/10/7139644-joao-batista-damasceno-popo-wanderlei-silva-neoliberalismo-e-barbarie.html
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