sábado, 1 de novembro de 2025

O presidente Lula e a invenção do traficante

 

A declaração do presidente Lula, na Indonésia, de que “Toda vez que a gente fala em combater as drogas, possivelmente, fosse mais fácil a gente combater os nossos viciados internamente” e que “os usuários são responsáveis pelos traficantes, que são vítimas dos usuários também”, precisa ser contextualizada. Ele a fez ao ser questionado sobre afirmativa do presidente estadunidense Donald Trump, de que não é necessária declaração de guerra para matar traficantes de drogas. O governo Trump tem afundado barcos em águas do Caribe, próximo à Venezuela, dizendo estar mirando em traficantes de drogas. Embarcações afundadas podem ser de pescadores. A agressão que se pratica contra a Venezuela visa a criar um clima que favoreça uma intervenção armada e instituição de um governo subordinado aos interesses estadunidenses. A invasão do Panamá e sequestro do presidente Manuel Noruega, por ocasião da retomada do Canal do Panamá, é exemplificativa. A escalada de agressividade à Venezuela inclui autorização à Agência Central de Inteligência (CIA) para sabotagens, terrorismo ou eliminação física em território venezuelano.

A declaração do presidente Lula foi endereçada ao presidente Trump. Se drogas são enviadas aos EUA, há um problema com os cidadãos daquele país que os tem levado ao consumo. Qualquer livro de introdução à economia ensina que a oferta é pressionada pela demanda. Existindo consumidor que procura, haverá fornecedor que oferte. Não adianta oferta sem procura. Além do que, das mais de duzentas substâncias catalogadas e proibidas que alteram o metabolismo apenas três têm sido objeto da preocupação dos EUA: Maconha, coca e papoula. É questão de geopolítica. Sem se ocupar com os problemas no mercado interno, os EUA criminalizam a maconha para justificar pressão sobre o México, a cocaína para atuar da mesma maneira em relação à América do Sul e a papoula por seus interesses na Ásia. Nenhuma outra droga é objeto de preocupação do governo estadunidense. As drogas sintéticas produzidas em laboratórios nos EUA e Europa e que fazem o caminho inverso das drogas naturais, não são objeto de preocupação do presidente Trump. Tampouco ocorrem grandes apreensões em território estadunidense, o que enseja a suspeita de que os próprios órgãos governamentais traficam para aquele país, a exemplo do que a CIA e o Departamento de Estado fizeram no Caso Irã-Contras.

Tráfico, tráfego, trânsito, contrabando e descaminho são termos empregados sem preocupação com os significados. Enquanto trânsito é o mero deslocamento de um lugar para outro, o tráfego é o deslocamento com transporte lícito de coisa ou pessoa. Descaminho é a entrada ou saída de mercadoria do território nacional sem o pagamento de imposto. O muambeiro que traz mercadorias lícitas não é contrabandista. Seu crime é sonegação fiscal; pratica descaminho. No entanto, se a mercadoria for proibida o crime será de contrabando. Por isso, contrabando e tráfico internacional são sinônimos. Mas a política de guerra às drogas difundiu no imaginário social que tráfico é de pessoas, de órgãos ou de drogas. Para diferenciar dos demais criminosos que contrabandeiam mercadorias proibidas, pintaram a figura do traficante de drogas com as piores tintas.
O presidente Lula tem razão. Raramente dou razão a ele, notadamente porque seu discurso – em regra – não é compatível com sua prática. Brizola dizia que era como uma galinha que cacareja para a esquerda e põe o ovo para a direita e Darcy Ribeiro dizia que era a esquerda que a direita gosta. O registro do seu partido, com referência a classe social, contrariava a Lei dos Partidos Políticos vigente desde 1979.

No governo do general-presidente Geisel foi instituída a Operação Radar, visando à eliminação e desaparecimento de dirigentes e simpatizantes do PCB, razão dos assassinatos de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, dentre muitos outros. A diferença de tratamento aos dois partidos somente é compreensível à luz da contradição entre o mundo do trabalho e o mundo do capital. As reivindicações de melhores salários e condições de trabalho, ainda que com emprego de greve ou ocupação de empresas, são toleradas pelo capital porque sugerem a conciliação de classes quando atendidas. Aqueles que foram eliminados fisicamente, antes da abertura política, tinham proposta mais radical, porque iam na raiz do sistema.
A criação da figura do traficante, expressão do mal dentre os demais contrabandistas, foi internalizada na lei brasileira em 1971, no governo do general-presidente Médici. Antes, o Código Penal, em seu artigo 281, não distinguia usuário e traficante e ambos eram igualmente criminosos. Em relação à entrada ou saída de drogas do território nacional, a lei se limitava a dizer que era crime importar ou exportar sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Em 1971, enquanto estimulava golpes militares na América do Sul, o presidente estadunidense Richard Nixon anunciou que as drogas eram o inimigo número um dos Estados Unidos. Com isso, criminalizou a população negra estadunidense, consumidora ou não, e estendeu seus tentáculos sobre a América do Sul. A partir desta declaração foi concebida a política conhecida como “guerra as drogas”. Sabujo dos interesses estadunidenses a ditadura empresarial-militar editou, em 28 de outubro de 1971, a lei 5724 que em seu artigo primeiro dizia que “é dever de toda pessoa física ou jurídica colaborar no combate ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica”.

Não há guerra às drogas. Há guerra a pessoas tratadas como indesejáveis e a países que não se subordinam aos interesses dos EUA.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 01/11/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/11/7155374-joao-batista-damasceno-o-presidente-lula-e-a-invencao-do-traficante.html