A declaração do
presidente Lula, na Indonésia, de que “Toda vez que a gente fala em combater as
drogas, possivelmente, fosse mais fácil a gente combater os nossos viciados
internamente” e que “os usuários são responsáveis pelos traficantes, que são
vítimas dos usuários também”, precisa ser contextualizada. Ele a fez ao ser
questionado sobre afirmativa do presidente estadunidense Donald Trump, de que
não é necessária declaração de guerra para matar traficantes de drogas. O
governo Trump tem afundado barcos em águas do Caribe, próximo à Venezuela,
dizendo estar mirando em traficantes de drogas. Embarcações afundadas podem ser
de pescadores. A agressão que se pratica contra a Venezuela visa a criar um
clima que favoreça uma intervenção armada e instituição de um governo
subordinado aos interesses estadunidenses. A invasão do Panamá e sequestro do
presidente Manuel Noruega, por ocasião da retomada do Canal do Panamá, é
exemplificativa. A escalada de agressividade à Venezuela inclui autorização à
Agência Central de Inteligência (CIA) para sabotagens, terrorismo ou eliminação
física em território venezuelano.
A declaração do
presidente Lula foi endereçada ao presidente Trump. Se drogas são enviadas aos
EUA, há um problema com os cidadãos daquele país que os tem levado ao consumo.
Qualquer livro de introdução à economia ensina que a oferta é pressionada pela
demanda. Existindo consumidor que procura, haverá fornecedor que oferte. Não
adianta oferta sem procura. Além do que, das mais de duzentas substâncias
catalogadas e proibidas que alteram o metabolismo apenas três têm sido objeto
da preocupação dos EUA: Maconha, coca e papoula. É questão de geopolítica. Sem
se ocupar com os problemas no mercado interno, os EUA criminalizam a maconha
para justificar pressão sobre o México, a cocaína para atuar da mesma maneira
em relação à América do Sul e a papoula por seus interesses na Ásia. Nenhuma
outra droga é objeto de preocupação do governo estadunidense. As drogas
sintéticas produzidas em laboratórios nos EUA e Europa e que fazem o caminho
inverso das drogas naturais, não são objeto de preocupação do presidente Trump.
Tampouco ocorrem grandes apreensões em território estadunidense, o que enseja a
suspeita de que os próprios órgãos governamentais traficam para aquele país, a
exemplo do que a CIA e o Departamento de Estado fizeram no Caso Irã-Contras.
Tráfico, tráfego,
trânsito, contrabando e descaminho são termos empregados sem preocupação com os
significados. Enquanto trânsito é o mero deslocamento de um lugar para outro, o
tráfego é o deslocamento com transporte lícito de coisa ou pessoa. Descaminho é
a entrada ou saída de mercadoria do território nacional sem o pagamento de
imposto. O muambeiro que traz mercadorias lícitas não é contrabandista. Seu
crime é sonegação fiscal; pratica descaminho. No entanto, se a mercadoria for
proibida o crime será de contrabando. Por isso, contrabando e tráfico
internacional são sinônimos. Mas a política de guerra às drogas difundiu no
imaginário social que tráfico é de pessoas, de órgãos ou de drogas. Para
diferenciar dos demais criminosos que contrabandeiam mercadorias proibidas,
pintaram a figura do traficante de drogas com as piores tintas.
O presidente Lula tem razão. Raramente dou razão a ele, notadamente porque seu
discurso – em regra – não é compatível com sua prática. Brizola dizia que era
como uma galinha que cacareja para a esquerda e põe o ovo para a direita e
Darcy Ribeiro dizia que era a esquerda que a direita gosta. O registro do seu
partido, com referência a classe social, contrariava a Lei dos Partidos
Políticos vigente desde 1979.
No governo do
general-presidente Geisel foi instituída a Operação Radar, visando à eliminação
e desaparecimento de dirigentes e simpatizantes do PCB, razão dos assassinatos
de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, dentre muitos outros. A diferença de
tratamento aos dois partidos somente é compreensível à luz da contradição entre
o mundo do trabalho e o mundo do capital. As reivindicações de melhores
salários e condições de trabalho, ainda que com emprego de greve ou ocupação de
empresas, são toleradas pelo capital porque sugerem a conciliação de classes
quando atendidas. Aqueles que foram eliminados fisicamente, antes da abertura
política, tinham proposta mais radical, porque iam na raiz do sistema.
A criação da figura do traficante, expressão do mal dentre os demais
contrabandistas, foi internalizada na lei brasileira em 1971, no governo do
general-presidente Médici. Antes, o Código Penal, em seu artigo 281, não
distinguia usuário e traficante e ambos eram igualmente criminosos. Em relação
à entrada ou saída de drogas do território nacional, a lei se limitava a dizer
que era crime importar ou exportar sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar.
Em 1971, enquanto
estimulava golpes militares na América do Sul, o presidente estadunidense
Richard Nixon anunciou que as drogas eram o inimigo número um dos Estados
Unidos. Com isso, criminalizou a população negra estadunidense, consumidora ou
não, e estendeu seus tentáculos sobre a América do Sul. A partir desta
declaração foi concebida a política conhecida como “guerra as drogas”. Sabujo
dos interesses estadunidenses a ditadura empresarial-militar editou, em 28 de
outubro de 1971, a lei 5724 que em seu artigo primeiro dizia que “é dever de
toda pessoa física ou jurídica colaborar no combate ao tráfico e uso de
substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica”.
Não há guerra às drogas.
Há guerra a pessoas tratadas como indesejáveis e a países que não se subordinam
aos interesses dos EUA.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 01/11/2025,
pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/11/7155374-joao-batista-damasceno-o-presidente-lula-e-a-invencao-do-traficante.html
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