segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Lendas de um juiz


“Ninguém que tenha exposição pública está isento dos mitos que se constituem sobre si. Mas os criados em torno do eterno juiz da Infância e Juventude Siro Darlan são emblemáticos. Não sem razão. Na época na qual a única política de proteção à população de rua eram o recolhimento e a internação, ele instituiu programa de assistência. E, com cartolina e uma máquina fotográfica instantânea, emitia ‘identidades’ para moradores de rua, que passavam a ostentar o único documento que lhes indicava nome, filiação, impressão digital e a imagem. Há muito a ser feito no Brasil pelos excluídos, e as práticas do desembargador Siro Darlan são um ponto no horizonte a nos guiar para a solidariedade e a justiça”.

 

Uma adolescente sugeriu à mãe que tatuassem um coração em cada uma, demonstrando amor recíproco. Coisa rara, na idade em que costumam querer se distanciar dos pais. Calorosa, a mãe acolheu o pedido e foram ao tatuador, onde ouviram que “portaria do juiz Siro Darlan” proibia tatuagem em criança ou adolescente, mesmo com autorização dos pais. Outros tatuadores repetiram a estória. Um deles narrou processo que sofrera por tal prática. A mãe indagou-me sobre a existência da norma e lhe disse que há quase uma década tal juiz fora promovido a desembargador e que não teria poderes constitucionais para tal restrição. Mas telefonei para ele, e a resposta foi a mesma: não editara tal portaria e não poderia fazê-lo.

 

O desembargador Siro Darlan aproveitou para me contar sobre quando chegou a um cinema e um grupo de adolescentes revoltados reclamava por não poder entrar, ainda que o filme estivesse classificado para as suas idades. O gerente colocara na porta aviso de que menores de 18 anos não poderiam ingressar no cinema desacompanhados dos pais, “por ordem do juiz Siro Darlan”. Custou a convencer o gerente do cinema de que era o próprio, que jamais editara tal proibição, que há alguns anos era desembargador e que não teria poderes para instituir tal restrição.

 

São muitas as ocorrências folclóricas sobre o desembargador. Uma estudante narrou que sofria ao ouvir seu nome, pois a mãe, diante de qualquer rebeldia, dizia que iria levá-la ao juiz. Outra mulher, vendo-me acompanhado do desembargador numa reunião com movimentos sociais, se aproximou com uma criança no colo e disse-me ser “menina do Siro”. Explicou que fora moradora de rua e, acolhida pelo então juiz da Infância e Juventude, teve oportunidade de fazer-se, estabelecer laços sociais e constituir família.

 

Ninguém que tenha exposição pública está isento dos mitos que se constituem sobre si. Mas os criados em torno do eterno juiz da Infância e Juventude Siro Darlan são emblemáticos. Não sem razão. Na época na qual a única política de proteção à população de rua eram o recolhimento e a internação, ele instituiu programa de assistência. E, com cartolina e uma máquina fotográfica instantânea, emitia ‘identidades’ para moradores de rua, que passavam a ostentar o único documento que lhes indicava nome, filiação, impressão digital e a imagem. Há muito a ser feito no Brasil pelos excluídos, e as práticas do desembargador Siro Darlan são um ponto no horizonte a nos guiar para a solidariedade e a justiça.

 

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 18/01/2015, pag. E6. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2015-01-18/joao-batista-damasceno-lendas-de-um-juiz.html

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