O
Caso Mariana Ferrer mobilizou a sociedade e outros casos foram reportados,
assim como foram analisadas e discutidas as condutas dos agentes do Sistema de
Justiça. A cada dia mais, ouço relatos de estupros e assédio sexual de amigas,
alunas, filhas de amigos e de outras mulheres cuja dignidade sexual foi
violada. As vítimas já não se sufocam no silêncio e denunciam. Talvez pela
idade, pelo respeito que expresso pelas vítimas e seus familiares, pela
confiança em mim depositada ou por outro motivo que desconheço, sou procurado
para ouvir. Ouvir, em tais situações, é humanismo. Em nenhum caso vi as
instituições funcionando adequadamente.
Temos
deficiência no trato da questão. O comportamento formal e legal se exige da
pessoa vitimada é incompatível com o seu estado emocional. Ao lado das medidas
legais é preciso estabelecer serviço de apoio humanizado às mulheres vitimadas.
Mesmo nos casos em que atuei, como juiz, tenho sérios questionamentos se fiz o
que era mais adequado, ainda que tenha a consciência tranquila de que não teria
como fazer diferente. Mais que nunca tenho compreendido não se poder esperar da
pessoa vitimada por violência sexual comportamento padrão, nem exigir que a
comunicação seja imediata. Cada pessoa vitimada se comporta de uma maneira,
assim como cada uma tem um tempo para elaborar o que lhe sucedeu.
A
constituição da família tradicional brasileira, na colonização, sob o regime de
economia patriarcal, teve como característica a formação de uma sociedade
agrária e escravocrata em que tudo era permitido ao senhor. ‘Senhor’ era título
de potestade, a que muitos aspiravam, sem limites de qualquer ordem no âmbito
de seus domínios. A fazenda, local onde tudo se fazia, tudo podia ser feito,
inclusive o ‘apossamento’ das mulheres negras e índias, sem qualquer limitação
ordenada pela ‘civilidade’. E, sob a ideologia de que o senhor rural tudo
podia, nem a vítima deslegitimava a violência a que era submetida. Em não
poucas famílias brasileiras ainda há quem se vanglorie da origem indígena sob o
fundamento de ter alguma ascendente “pega a laço”. O ‘apossamento sexual’ era
forma de subjugação do corpo de quem era tratada como objeto.
A
violência sexual contra mulheres sempre foi tratada com irrelevância pelas
instituições brasileiras. Na Colônia, em alguns casos, chegava-se a multa. Mas
irrisória. Diversamente, a blasfêmia contra os santos ou a ‘feitiçaria amorosa’
era punida com degredo. O comportamento do colonizador era de sadismo e a
prática sexual forçada, se não resultasse lesão corporal, não era considerada
violência sexual. O estupro consistia numa transgressão deliberada para
explicitar poder, demonstrar quem estava acima das normas e quem podia
‘profanar’ corpo alheio. Os Bandeirantes, ‘cablocos’ nascidos do estupro das
índias, igualmente aprenderam a fazer apreensões de pessoas, escravizá-las e se
‘apossar’ das mulheres de outras tribos. O sadismo do conquistador
transmitiu-se socialmente aos seus descendentes e se estendeu às demais
mulheres, sob a forma de repressão sexual e social do pai ou do marido.
O estupro foi uma forma de desonrar os vencidos e suas mulheres, esteve presente em todas as guerras dos povos ocidentais, remanesce atualmente com os soldados estadunidenses no Oriente Médio e por agentes do Estado em incursões militares nas favelas e periferias, bem como nos presídios. Também está presente em ocorrências com jovens brancas de classe média, usuárias de drogas e chamadas de “ratinhas de favela”, ou outras em incursões para conhecimento de realidades distintas das suas, praticadas, por vezes, por quem também é cotidianamente vítima de outras violências. Além da prática sexual com violência ou ameaça, e com pessoa vulnerável incapaz de consentir, também é atentado à dignidade sexual o assédio de pessoa privilegiada em relação de poder.
A
prática do estupro, não raro, envolve pessoa das relações sociais da pessoa
abusada. O assédio sexual sempre decorre de abuso em relação de poder. Estupro
não é sexo e não implica desejo e gozo, mas dominação sobre o corpo de outrem.
A cultura do estupro e do assédio sexual é uma cultura de subjugação. A cultura
do estupro é parte do passado que insiste em permanecer presente em nossa
‘conservadora modernidade’. A abominável cultura do estupro pode permear todas
as classes sociais, graus de instrução, níveis econômicos e etnias. Se a
educação não for libertadora o desejo dos que foram oprimidos será tornarem-se
opressores.
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