O espelho no qual nos vemos nem
sempre reflete o que somos. A formação social brasileira decorreu da usurpação
das terras dos povos originários, a pilhagem das suas riquezas e a eliminação
daqueles que se opunham à sanha predatória. Gilberto Freire, autor que os que
não o leram tentam cancelar, nos indica que a religião foi um fator de unidade
nacional. No momento da colonização do Brasil, na Europa ardiam as fogueiras
onde eram colocadas mulheres consideradas bruxas e homens chamados de hereges.
A eliminação dos indesejáveis foi exportada para o Novo Mundo. Utilizando-se
das brigas religiosas na África, os colonizadores declararam os vencidos
adquiridos como se mercadoria fossem e os trataram como corpos sem alma, não
sujeitos à cristianização.
Desde o século VII, o processo de
islamização da África vinha promovendo a transformação de seres humanos em
mercadorias. Os animistas, escravizados pelos africanos convertidos ao
islamismo, eram, desde aquele século, castrados no Egito e vendidos para o
Oriente Médio. Não se tem na história registro de que pessoas tenham sido
transformadas em mercadoria, embora a história do mundo do trabalho, até o
surgimento do capitalismo, seja de trabalho forçado. O Sudão do Sul, mais novo
país do mundo, criado em 2010, é parte desta história. Darfur, à leste do
Sudão, foi a região de onde saíram as primeiras pessoas convertidas em
mercadoria e até hoje seu povo vive sob a ameaça de genocídio.
A eliminação do outro, física ou
moralmente, é componente da formação social brasileira. O feminicídio, o
assassinato de homossexuais, a violência contra os pobres e pretos e a
constante ameaça à vida dos povos indígenas no Brasil é expressão desta concepção.
Mas nos consideramos um povo amavelmente cordial e receptivo, esquecendo os
horrores da escravidão e outras formas de opressão e violência difundidas e
naturalizadas entre nós.
Quem resiste à violência é
tratado como incivilizado. Dos oprimidos deseja-se que tolerem com paciência a
violência lhes dirigida. O poeta escreveu que dizem violentas as águas do rio
que tudo arrasta, mas não dizem violentas as margens que o oprime. A violência
que permeia o nosso dia a dia visa à apropriação de bens e à eliminação de quem
contraria interesses espúrios. Não temos registro, no Brasil, de revoltas das
oligarquias pelas liberdades. Todas as “revoluções brasileiras” foram motivadas
pela recusa de pagamento de impostos. Apenas as revoltas populares lutaram por
liberdade, mas foram esmagadas pelo poder. Palmares, Canudos, Revolta da
Chibata e Contestado são exemplos de levantes populares esmagados pelas
oligarquias econômicas, políticas e militares. Nossa história é uma história
construída com sangue popular.
Quem anda caminho do cadafalso é
o jovem deputado Glauber Braga. E quem o ameaça é a própria instituição para a
qual foi eleito pelo voto popular, a Câmara dos Deputados. Seus colegas se
dispõem jogar o desafeto ao mar, mesmo que isto implique a própria credibilidade
da instituição parlamentar. Glauber Braga cometeu a imprudência de denunciar as
emendas secretas ao orçamento da União, cuja prática - ofensiva à moralidade
pública -, foi explicitada na CPI dos Anões. Por meio de emendas parlamentares,
agora secretas, bilhões do orçamento podem ser desviados para as oligarquias
locais e gastos com destinatários determinados, ao arrepio do interesse dos
cidadãos. Por vezes verbas públicas podem ser direcionadas para enriquecimento
de dirigentes de entidades ‘pilantrópicas’.
Os rumos que o processo de
cassação segue, embora adiado, indica a eliminação do seu mandato e sua
inelegibilidade. A acusação é de que teria violado o decoro parlamentar e
chutado a bunda de um provocador que ofendia sua mãe, que se encontrava no
leito de morte. Se inexistisse este fundamento poderia ser acusado de não ter
se barbeado para comparecer ao Plenário. Os desejosos de sua cassação
acolheriam como grave esta ou qualquer outra acusação.
A lógica dos julgamentos das
minorias ou de indivíduos pela maioria contrariada e enfurecida é a mesma
lógica do linchamento, pois não respeita os direitos fundamentais da pessoa
humana, esculpidos na Constituição como garantia contra mesquinhos e momentâneos
sentimentos persecutórios. Tanto Sócrates quanto Cristo foram julgados por
coléricas maiorias circunstanciais. Isto haveria de nos ter ensinado alguma
coisa.
A desproporcionalidade da pena
com a qual se ameaça Glauber Braga haverá, se imposta, de ser revista pelo
judiciário. Jamais houve cassação de parlamentar por atos de violência no
âmbito do Congresso Nacional, nem mesmo quando se tratou de violência ilegítima.
Nem o assassinato de um senador no plenário do Senado Federal, por outro
senador, implicou na cassação do homicida. Um oleiro disse ao poderoso
Imperador Frederico Guilherme da Prússia, que lhe ameaçava subtrair um bem:
“Ainda há juízes em Berlim!”. Sem justiça as sociedades afundam na vilania. E
hoje podemos dizer que ainda há juízes no STF.
Diferentemente do que os seus
acusadores esperavam, o deputado Glauber Braga não se silenciou, tal como
Cristo fez perante Pilatos, nem suplicou por clemência ante tortura a lhe ser
infringida. Ao contrário, iniciou uma greve de fome e denunciou os horrores de
um processo injusto, porque afastado dos princípios que regem uma sociedade
democrática, republicana e norteada pelo Estado de Direito. O Deputado Glauber
Braga defendeu a honra de sua mãe e quem tem mãe sabe honrá-la. Fez greve de
fome contra a ilegalidade e, abraçado pela sociedade, a interrompeu. Esperamos
que não haja motivo para sua retomada e que a Câmara dos Deputados e o Brasil
tome novos rumos. Ninguém há de viver com a espada de Dâmocles sobre suas
cabeças.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 19/08/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/04/7041465-joao-batista-damasceno-glauber-braga-e-greve-de-fome.html