sábado, 19 de abril de 2025

Glauber Braga e greve de fome

O espelho no qual nos vemos nem sempre reflete o que somos. A formação social brasileira decorreu da usurpação das terras dos povos originários, a pilhagem das suas riquezas e a eliminação daqueles que se opunham à sanha predatória. Gilberto Freire, autor que os que não o leram tentam cancelar, nos indica que a religião foi um fator de unidade nacional. No momento da colonização do Brasil, na Europa ardiam as fogueiras onde eram colocadas mulheres consideradas bruxas e homens chamados de hereges. A eliminação dos indesejáveis foi exportada para o Novo Mundo. Utilizando-se das brigas religiosas na África, os colonizadores declararam os vencidos adquiridos como se mercadoria fossem e os trataram como corpos sem alma, não sujeitos à cristianização.

Desde o século VII, o processo de islamização da África vinha promovendo a transformação de seres humanos em mercadorias. Os animistas, escravizados pelos africanos convertidos ao islamismo, eram, desde aquele século, castrados no Egito e vendidos para o Oriente Médio. Não se tem na história registro de que pessoas tenham sido transformadas em mercadoria, embora a história do mundo do trabalho, até o surgimento do capitalismo, seja de trabalho forçado. O Sudão do Sul, mais novo país do mundo, criado em 2010, é parte desta história. Darfur, à leste do Sudão, foi a região de onde saíram as primeiras pessoas convertidas em mercadoria e até hoje seu povo vive sob a ameaça de genocídio.

A eliminação do outro, física ou moralmente, é componente da formação social brasileira. O feminicídio, o assassinato de homossexuais, a violência contra os pobres e pretos e a constante ameaça à vida dos povos indígenas no Brasil é expressão desta concepção. Mas nos consideramos um povo amavelmente cordial e receptivo, esquecendo os horrores da escravidão e outras formas de opressão e violência difundidas e naturalizadas entre nós.

Quem resiste à violência é tratado como incivilizado. Dos oprimidos deseja-se que tolerem com paciência a violência lhes dirigida. O poeta escreveu que dizem violentas as águas do rio que tudo arrasta, mas não dizem violentas as margens que o oprime. A violência que permeia o nosso dia a dia visa à apropriação de bens e à eliminação de quem contraria interesses espúrios. Não temos registro, no Brasil, de revoltas das oligarquias pelas liberdades. Todas as “revoluções brasileiras” foram motivadas pela recusa de pagamento de impostos. Apenas as revoltas populares lutaram por liberdade, mas foram esmagadas pelo poder. Palmares, Canudos, Revolta da Chibata e Contestado são exemplos de levantes populares esmagados pelas oligarquias econômicas, políticas e militares. Nossa história é uma história construída com sangue popular.

Quem anda caminho do cadafalso é o jovem deputado Glauber Braga. E quem o ameaça é a própria instituição para a qual foi eleito pelo voto popular, a Câmara dos Deputados. Seus colegas se dispõem jogar o desafeto ao mar, mesmo que isto implique a própria credibilidade da instituição parlamentar. Glauber Braga cometeu a imprudência de denunciar as emendas secretas ao orçamento da União, cuja prática - ofensiva à moralidade pública -, foi explicitada na CPI dos Anões. Por meio de emendas parlamentares, agora secretas, bilhões do orçamento podem ser desviados para as oligarquias locais e gastos com destinatários determinados, ao arrepio do interesse dos cidadãos. Por vezes verbas públicas podem ser direcionadas para enriquecimento de dirigentes de entidades ‘pilantrópicas’.

Os rumos que o processo de cassação segue, embora adiado, indica a eliminação do seu mandato e sua inelegibilidade. A acusação é de que teria violado o decoro parlamentar e chutado a bunda de um provocador que ofendia sua mãe, que se encontrava no leito de morte. Se inexistisse este fundamento poderia ser acusado de não ter se barbeado para comparecer ao Plenário. Os desejosos de sua cassação acolheriam como grave esta ou qualquer outra acusação.

A lógica dos julgamentos das minorias ou de indivíduos pela maioria contrariada e enfurecida é a mesma lógica do linchamento, pois não respeita os direitos fundamentais da pessoa humana, esculpidos na Constituição como garantia contra mesquinhos e momentâneos sentimentos persecutórios. Tanto Sócrates quanto Cristo foram julgados por coléricas maiorias circunstanciais. Isto haveria de nos ter ensinado alguma coisa.

A desproporcionalidade da pena com a qual se ameaça Glauber Braga haverá, se imposta, de ser revista pelo judiciário. Jamais houve cassação de parlamentar por atos de violência no âmbito do Congresso Nacional, nem mesmo quando se tratou de violência ilegítima. Nem o assassinato de um senador no plenário do Senado Federal, por outro senador, implicou na cassação do homicida. Um oleiro disse ao poderoso Imperador Frederico Guilherme da Prússia, que lhe ameaçava subtrair um bem: “Ainda há juízes em Berlim!”. Sem justiça as sociedades afundam na vilania. E hoje podemos dizer que ainda há juízes no STF.

Diferentemente do que os seus acusadores esperavam, o deputado Glauber Braga não se silenciou, tal como Cristo fez perante Pilatos, nem suplicou por clemência ante tortura a lhe ser infringida. Ao contrário, iniciou uma greve de fome e denunciou os horrores de um processo injusto, porque afastado dos princípios que regem uma sociedade democrática, republicana e norteada pelo Estado de Direito. O Deputado Glauber Braga defendeu a honra de sua mãe e quem tem mãe sabe honrá-la. Fez greve de fome contra a ilegalidade e, abraçado pela sociedade, a interrompeu. Esperamos que não haja motivo para sua retomada e que a Câmara dos Deputados e o Brasil tome novos rumos. Ninguém há de viver com a espada de Dâmocles sobre suas cabeças.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 19/08/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/04/7041465-joao-batista-damasceno-glauber-braga-e-greve-de-fome.html

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