sábado, 27 de fevereiro de 2021

A DEMOCRACIA NÃO É NATURAL

 

Todo ser vivo se alimenta. Isto é natural; decorre da própria natureza. Os humanos se alimentam de coisas diferentes dependendo do tempo e do lugar onde vivam. Isto é cultural. Judeus e islâmicos jamais se alimentam de carne de porco ou camarão. Camarão é a barata do mar. Mas, no ocidente, a maioria de nós os come apetitosamente. Os povos africanos e orientais têm hábitos alimentares que nos embrulham o estômago e não comem algumas das nossas iguarias. Suas culturas são diferentes das nossas. Uma amiga coreana, na Inglaterra, me relatou a delícia que é cabeça de cachorro cozida e dizia sentir saudades da comida de sua terra. Comer é natural. O que comer e como comer é cultural.

Cultura é um conjunto de valores que permeiam as relações sociais e caracteriza um povo num determinado tempo. São ideias, comportamentos, símbolos e práticas sociais reiteradas por gerações. Cultura é parte da herança social que dá a dimensão da humanidade. Só o ser humano é capaz de produzir cultura. As expressões culturais distinguem-se dos comportamentos naturais ou biológicos. A cultura é aprendida com a socialização, desenvolvida e transmitida. É um complexo de comportamentos e conhecimentos; são crenças, artes, normas de conduta e costumes. Cultura é a forma de viver, de interagir e de se organizar de um povo, transmitida de geração para geração a partir de vivência e tradição comuns. É a identidade do povo.

A democracia não é natural. Trata-se de um valor social que compõe a cultura de determinados povos. Nem todos os povos primam pelos valores democráticos. Nem todas as pessoas a desejam. Nem todo poder é exercido pelo povo ou em seu nome. O exercício do poder pode ser justificado pela tradição, pela crença nos dons espirituais do líder ou no consenso sobre o que é melhor para o grupo. O poder tradicional é inquestionável. O respeito ao passado eterno nos faz reverenciar a quem devemos. O poder mítico igualmente é inquestionável, pois questionar o líder corresponde a confrontar a origem divina de seus dons. Somente o poder constituído pela vontade da sociedade organizada pode ser questionado pelos cidadãos. Mas, isto numa democracia. As ditaduras usam a força contra os que as questionam.

Quem segue um líder carismático na qualidade de rebanho não preza pela democracia. Mas, por ser rebanho. A democracia se caracteriza pela razão da maioria. E nem sempre a maioria é justa. O julgamento de Cristo fundou-se na razão da maioria, mas foi injusto porque não respeitou o direito do indivíduo sujeito ao julgamento. Aliás, não houve propriamente um julgamento. Mas, um linchamento. Desde antes da apresentação a Pilatos o justo já estava determinado ao sacrifício. E não bastou que o governador lavasse as mãos. Os sacerdotes, sedentos pelo dinheiro que o templo rendia, promoveram a tortura e a crucificação do inocente.

A cultura democrática é algo que se constrói e que se lega a gerações posteriores. E, somente pode ser construída com valores democráticos. Democracia é uma prática reiterada que vira costume e valor social. A existência da democracia pressupõe um acordo prévio de que todos aceitem que a sociedade seja democrática e que as deliberações sejam fundadas na razão da maioria, com respeito às minorias. Os mecanismos de acomodação social pela repressão são incapazes de contribuir para a democracia. Mas, as democracias vivem um dilema: que fazer com os que não queiram a democracia? Que fazer com os que atentem contra a democracia? É democrático punir quem não deseja participar do pacto pela democracia?

Numa sociedade democrática, aqueles que atentam objetivamente contra a democracia devem ser responsabilizados. Mas, a responsabilização deve se limitar aos atentados à ordem democrática. As discussões sobre os rumos da sociedade fazem parte do ajuste inicial, pois sem liberdade não se pode construir a cultura democrática. Os excessos de linguagem podem ser controlados por meios diversos que não sejam o repressivo.


Publicado originariamente no jornal O DIA em 27/02/2021. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/02/6093487-joao-batista-damasceno-a-democracia-nao-e-natural.html

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Tirem fardas, capas e togas para subir nas tribunas!

 


As confissões que começam a ser publicadas em livro informando que o impeachment da ex-presidente Dilma e a prisão do ex-presidente Lula tiveram articulação com os quartéis é faceta da história que precisa ser passada a limpo. Isto decorre da inacabada transição negociada ao fim da ditadura empresarial-militar. De tal articulação decorreu o conluio revelado pelo jornal The Intercept entre membros do Ministério Público, magistrados e empresas de comunicação. E isto deveria nos preocupar a todos.

Em julgamento a pedido de procuradores da República, que pretendiam impedir acesso a mensagens trocadas entre eles e o ex-juiz Sérgio Moro, a ministra Carmen Lúcia ressaltou que as mensagens captadas ilegalmente por hackers e apreendidas pela justiça é da ciência de juízes, Ministério Público e polícia e que somente a defesa não tivera acesso. O ministro Gilmar Mendes citou artigo publicado no New York Times dizendo que a Operação Lava Jato “se vendia como a maior operação anticorrupção do mudo, porém se revelou o maio escândalo judicial da história”. Não sei se foi o maior escândalo judicial. Mas, é o melhor documentado.

Tudo o que fizeram é escandaloso. Pretenderam, pela via judiciária, incriminar e excluir grupo politico de participação do jogo democrático. O Estado brasileiro se comporta como se a liberdade fosse um “benefício concedido” a quem merece o agraciamento. Mas, a regra é a liberdade e somente em casos explicitados em lei pode ser excepcionada. Os cidadãos podem tudo o que a lei não proíbe. O Estado somente pode o que a lei manda. Este é um princípio republicano que ainda não foi ‘naturalizado’ entre nós. Não praticamos o princípio de que o poder emana do povo, cujo exercício pode ser direto ou por meio de seus representantes, de acordo com a vontade e interesses daquele.

Defender a vida e julgamentos justos é dever de todos os que têm compromisso com a civilidade. Precisamos tomar como parâmetro a atuação de Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, que em 1936, deu resposta aos fascistas que sob o aplauso do general Milan-Astray, gritavam "Viva a morte!" enquanto ele defendia a vida, a Ciência, a Cultura, a razão e o Direito.

Unamuno dirigiu-se aos propagadores do ódio e lhes disse: “Acabo de ouvir o necrófilo e insensato grito de "Viva a morte!" (...). O general Milan-Astray é um inválido. Não é necessário dizer isso com um acento pejorativo pois é, de fato, um inválido de guerra. Cervantes também o foi. Mas extremos não servem como norma. (...) De um mutilado que careça da grandeza espiritual de Cervantes (...) é de se esperar que encontre um terrível alívio vendo multiplicarem-se os mutilados ao seu redor”.

E diante do general inválido (há sempre um general inválido tramando contra a democracia) arrematou: “Vencereis porque tendes sobrada força bruta. Mas não convencereis porque para convencer há que persuadir. E para persuadir lhes falta algo que não tendes: razão e direito”. Dias depois o ditador Francisco Franco demitiu Unamuno do cargo de reitor da Universidade de Salamanca. Em outubro de 2011, Unamuno foi reconduzido postumamente ao cargo do qual fora destituído pelos fascistas.

As reparações históricas são necessárias para evitar se repitam como farsa. Mas, igualmente as responsabilizações. O deputado Paulo Ramos propôs na Câmara de Deputados o projeto de lei instituindo o dever de reparação por demanda opressiva. O PL 90/2021 precisa ser aperfeiçoado para incluir os casos de assédio judicial individualizado e as condutas indevidas de agentes públicos, para importunar os cidadãos ou outros agentes públicos, em decorrência do cumprimento de seus deveres.

A transição que se fez para a democracia não pode conviver com os esqueletos insepultos da repressão que jazem nos esgotos e porões sombrios dos órgãos que serviram à repressão. Tampouco com a intromissão fardada nas instituições democráticas. Os que quiserem ocupar a tribuna da democracia que tirem suas fardas, capas ou togas e aguardem quarentena. Que não usem as instituições para promoção pessoal e defesa de interesses escusos. É uma deslealdade com a cidadania a ocupação dos cargos e postos para fazer política. É uma vilania, ante a desigualdade com os demais cidadãos.

Fonte: Publicado no jornal O DIA em 13/02/2021. https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/02/6084524-joao-batista-damasceno-tirem-fardas-capas-e-togas-para-subir-nas-tribunas.html

sábado, 30 de janeiro de 2021

Leite condensado com cloroquina, sem vacina

  

Diante da inércia não é razoável perguntar se há governo, mas a quem ele serve. As clínicas privadas jamais admitirão o gozo com o projeto em curso. É um projeto genocida com qual se lucra em sigilo. A quem o governo serve?

A semana foi tomada pelos comentários sobre as despesas com aquisição de leite condensando e chiclete pelo governo federal. Nenhum veículo de comunicação atribuiu qualquer responsabilidade pessoal ao presidente da República. Mas, não faltou manifestação do presidente em tom incompatível com a dignidade do cargo. Se foram gastos mais de R$ 2 milhões de reais na compra de chiclete isto deve ser esclarecido. Ao custo de R$ 0,10 por unidade, teriam sido adquiridos mais de vinte milhões de chicletes. Em leite condensado foram gastos cerca de R$ 15 milhões.

Publicado o assunto polêmico, o Portal da Transparência foi retirado do ar. Uma República se fundamenta no princípio da publicidade a fim de que os cidadãos possam fazer escolhas e influir nas decisões sobre o que é público.

O montante pago pelo leite condensado é cinco vezes mais que tudo que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) recebeu, em 2020, para fazer o monitoramento por satélite de toda a Amazônia, Pantanal e demais regiões do país. Nos últimos dois anos, o Inpe, o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) tiveram seus orçamentos reduzidos, o que comprometeu a capacidade de o governo realizar ações estruturais de proteção, fiscalização e combate do desmatamento nas florestas nacionais. A Amazônia registrou, no ano passado, volume recorde de queimadas. O Brasil vive em permanente expansão das fronteiras agrícolas e as terras públicas vivem sendo griladas.

E espantoso o desmonte que tem sido promovido dos órgãos públicos. O SUS, sistema imprescindível à vida dos brasileiros, está sendo sucateado. E isto somente atende aos que comercializam saúde. Mas, saúde não é mercadoria. É direito. Já morreram mais de 220 mil brasileiros de Covid-19 e ainda não temos um plano nacional de vacinação.

Simultaneamente o governo federal anuncia a possibilidade de autorização da importação pelas clínicas privadas. Um projeto de vacinação privado poderá dar lucro aos importadores e clínicas privadas. Mas, poderá causar dano à combalida economia, pois empresários teriam que custear a vacinação de seus empregados para retomada do trabalho. Além disto, deixaria no desemparo a maioria da população brasileira, inclusive os milhões de desempregados. Somente quem pudesse pagar poderia se imunizar. É desumano.

Em plena pandemia, Índia e África do Sul, propuseram na Organização Mundial do Comércio (OMS) a quebra das patentes da vacina. Assim, qualquer país poderia fabricar a vacina, sem licenciamento da indústria farmacêutica ou obrigação de pagar royalties. Mas, o governo do presidente Jair Bolsonaro, aliou-se aos Estados Unidos e aos interesses da indústria farmacêutica e apresentou oposição aberta à quebra das patentes, apresentada pela Índia. O Brasil abandonou a defesa histórica da quebra das patentes farmacêuticas que muito já beneficiou o povo brasileiro.

Como se a vida humana não importasse, o governo federal não dá resposta ao Instituto Butantan sobre a compra da CoronaVac. O instituto diz poder vender para países vizinhos, se o Ministério da Saúde não apresentar interesse. O Butantan remeteu ofício na semana passada questionando a pasta e não teve retorno. No dia D e na hora H, talvez o ministro responda. Mas, poderá ser tarde. Não há cronograma para aquisição aplicação pelo SUS, mesmo diante da gravidade da situação. “Todos os países que o Butantan tem acordo aqui da América Latina estão nos cobrando um cronograma. Se houver a confirmação do Ministério da Saúde, teremos um planejamento para produzir mais 40 milhões para os países vizinhos. Se não tiver, vamos dirigir essas 54 milhões de doses aos países vizinhos”, disse o diretor do Butantan, Dimas Covas, em entrevista, dia 27.

Diante da inércia não é razoável perguntar se há governo, mas a quem ele serve. As clínicas privadas jamais admitirão o gozo com o projeto em curso. É um projeto genocida com qual se lucra em sigilo. A quem o governo serve?


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 30/01/2021. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/01/6074616-joao-batista-damasceno-leite-condensado-com-cloroquina-sem-vacina.html

sábado, 16 de janeiro de 2021

Polícias, poder central e mandonismo local


Tanto em Direito como em Ciência Política o Estado é definido como o detentor do monopólio da violência legítima no âmbito de um território. Tal conceito expressa a tradicional ideia de que o Estado é a nação politicamente organizada. Se a nação é um conjunto de pessoas identificadas por valores comuns, o estabelecimento de laços de sociabilidade para a convivência pode resultar na instituição do poder público, denominado Estado. Diz-se assim que os elementos de um Estado são povo, território e governo. Há quem incluía como elemento identificador de uma nação ou Estado a finalidade da coexistência e as aspirações comuns.

O Estado não se assenta exclusivamente na força. Se pretendesse se instituir apenas com a repressão propiciaria as resistências, as insurreições e sua própria derrocada. O Estado contemporâneo se institui com três instrumentos: a edição de leis com as quais justifica sua atuação, a cobrança de impostos e a instituição de uma força pública. Lei, bolsa e cacete são os fundamentos de qualquer Estado.

A lei é o que legitima e dá o fundamento ideológico com o qual se exercitam as violências contra as liberdades e os patrimônios. Não foi sem razão que, na Inglaterra em 1215, os barões que deram o golpe em Ricardo Coração de Leão, obtiveram do usurpador João Sem Terra a edição da Carta Magna que lhes assegurou garantias quanto às suas liberdades e seus bens. Não há crime nem tributo sem lei que antes os definam.

Mas no Brasil, desde a ocupação pelos portugueses, se buscou a dominação pela força ou pelo convencimento religioso. “Entre a cruz e a espada” era a alternativa dos dominados. A partir de 1822 o Imperador D. Pedro I se apoiava no Exército, a pretexto de consolidar a Independência. Mas, com o golpe de 7 de abril de 1831 a Regência buscou enfraquecer o Exército e o ministro da Justiça, Regente Feijó, recenseou as milícias e lhes deu postos de oficialidade. Assim, surgiu a Guarda Nacional, comandada em cada localidade por um coronel que tinha sob suas ordens os “cabras” ou “jagunços” que sustentaram o Império e a escravidão até 1888.

Em 1889 foi proclamada a República, num golpe de Estado desferido pelo Exército, fortalecido na Guerra do Paraguai. Campos Sales, ministro da Justiça, concluiu que o Exército poderia dar o golpe de Estado e proclamar a República, mas a governabilidade e controle social demandariam capilaridade que somente os fazendeiros e seus jagunços poderiam garantir. Assim, criou as bases para o Coronelismo, regime que vigeu até a Revolução de 1930. Igualmente foi Campos Sales quem institucionalizou o Ministério Público e por isso é seu patrono.

Com a instituição da federação cada estado ganhou autonomia para organizar autonomamente os seus serviços. É o que dispõe a Constituição da República. Cada estado pode instituir sua polícia civil com atribuição de investigar os crimes já praticados e as polícias militares, ostensivas e com atribuição preventiva. No presente momento tramitam no Congresso Nacional projetos de Lei Orgânica das polícias Civis e Militares, que pretendem subtrair a competência dos governadores na liberdade para nomear e destituir os chefes das respectivas polícias, além de criar um Conselho Nacional vinculado à União. Os projetos são inconstitucionais.

Compete aos estados organizar os seus serviços. Lei que disponha de forma diversa viola o princípio federativo. Nem mesmo emenda constitucional poderia retirar tais poderes dos Estados Federados. As emendas constitucionais 103 e 104 editadas em 2019 possibilitam que a União estabeleça normas gerais de organização das polícias militares e corpos de bombeiros militares. Mas, aos estados compete organizar os seus serviços e mesmo a emenda constitucional que dispuser de forma diversa será inconstitucional. A centralização que se pretende pode resultar num perigoso pacto entre o poder central e o mandonismo local, em prejuízo das liberdades públicas.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 16/01/2021. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/01/6064666-joao-batista-damasceno-policias-poder-central-e-mandonismo-local.html

sábado, 2 de janeiro de 2021

Haverá Brasil no futuro?

No início do século 20, o escritor austríaco Stefan Zweig foi um dos intelectuais judeus que, sem entenderem no que o nacionalismo alemão poderia resultar, se encantou com seu ideário. Mas, após a 1ª Guerra Mundial abdicou de tal posicionamento e se tornou um pacifista. As políticas antissemitas que se disseminaram na Alemanha e Áustria a partir da ascensão de Hitler, em 1933, logo afetaram Zweig e em 1934 ele deixou o seu país, indo para a Inglaterra, depois para New York e em 1940 para o Brasil.

No Brasil, Zweig foi recebido com euforia pela comunidade intelectual e pelas autoridades políticas. Mas, não se tratava de boas vindas a um refugiado ou a satisfação pela convivência com um dos maiores escritores da época. O oportunismo que permeia a classe dominante no Brasil via na sua presença apenas a possibilidade de prestígio e oportunidades de um intercâmbio com instituições estrangeiras, visando aos seus interesses. Tal como Lula, Zweig foi seduzido pela amabilidade que a Casa Grande apresenta aos que lhe interessam. Zweig acreditou na democracia racial brasileira e não compreendeu o processo cínico de exploração, exclusão social e racismo que permeiam as nossas relações.

Em sua primeira viagem ao Brasil, Zweig escreveu o livro ‘Brasil, país do futuro’. Encantado, mudou com sua mulher, Lotte, para cá e se estabeleceram em Petrópolis. Zweig trazia em sua bagagem um ideário liberal e antinazista. Getúlio Vargas o recepcionou pessoalmente, mas havia uma contradição. Seu governo se mantinha graças às políticas autoritárias e muitos de seus ministros e assessores militares eram simpatizantes do nazifascismo. A classe dominante no Brasil recepciona com cordialidade e chama para a mesa na Casa Grande, mas quando não mais interessa defenestra o convidado, pois se torna incômodo. Tolos são os que acreditam na sua receptividade.

Diante do avanço do nazismo na Europa, com o crescimento da intolerância e do autoritarismo em sua época, sem esperanças no futuro da humanidade e tomando ciência do que realmente se pensa e se faz no Brasil, em 1942, deprimido, Zweig escreveu uma carta de despedida e suicidou-se juntamente com a mulher. A avaliação de Zweig foi falha. Três anos depois de sua morte, os 'Aliados', tendo à frente a URSS, venceram o nazifascismo e a humanidade ganhou rumos diversos do que ele supunha.

Vivemos momento no qual não se vislumbra qualquer projeto de nação. Nada está sendo construído para legado às gerações futuras e mesmo a geração presente está sendo sacrificada em seus direitos. A ignorância e o discurso anticientífico são dominantes nas esferas de poder. Já contamos quase 200 mil mortos pela covid-19 e sequer temos um projeto de vacinação, quando 40 países já estão vacinando suas populações. Até o Líbano, país destruído e à beira da falência, já iniciou a vacinação.

As mortes na pandemia não sensibilizam quem deveria promover políticas públicas de Saúde. O presidente insiste que é uma gripezinha e diante das mortes diz não ser coveiro. Um general de intendência, colocado no Ministério da Saúde por sua suposta capacidade logística, processo de planejamento e execução eficiente de armazenamento e transporte de bens desde o ponto de origem até o ponto de consumo, não promoveu sequer compra de seringas para futura aplicação da vacina.

Gastam-se fortunas na ineficaz cloroquina e deixam os testes perderem a validade ou prorrogam o prazo de eficácia por decreto. Mas, não podemos ser tomados pela desesperança que levou Zweig à morte. O povo brasileiro tem a capacidade de se reinventar e haveremos de construir um Brasil, no futuro.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 02/01/2021. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/01/6055533-joao-batista-damasceno-havera-brasil-no-futuro.html


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Prisão e espetáculo

                                                                  Decapitação de São João Batista, Caravaggio.

A regra reconhecida pelo Estado Democrático de Direito é a liberdade. Excepcionalmente se admite prisão. Isto precisa ser cotidianamente lembrado ao ‘jornalismo mundo cão’, à parcela da sociedade civil sedenta de sangue e vingança e, sobretudo, aos juízes que decretam as prisões-espetáculo.

Nenhuma prisão é feita pela polícia. Toda prisão é determinada e/ou mantida pelo poder judiciário. A polícia apenas executa a ordem expedida. Portanto, toda prisão ilegal é de responsabilidade dos juízes.

No Brasil somente estão autorizadas as seguintes prisões:

1)     Prisão em flagrante, com fundamento no art. 301 do CPP que diz: Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Tal prisão apenas subsiste até a apresentação do preso à delegacia e à audiência de custódia. Não sendo decretada a prisão preventiva a pessoa retoma seu status de liberdade.

 2)     Prisão em decorrência de sentença penal condenatória transitada em julgado. Dispõe a Constituição em seu art. 5º que: LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. Prisão para impedir que o condenado em segunda instância participe de processo eleitoral é ilegal.

3)     Prisão provisória para investigação (temporária) ou para garantia do processo (preventiva).

Dispõe o Código de Processo Penal em seus artigos 311 e 312 que: Art.

“Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial”.

“Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”.

Portanto, as prisões exemplares fundadas na moralidade, decretadas para promoção do espetáculo midiático e as decretadas como expressão de vingança contra quem seja considerado inimigo são ilegalidades que violam frontalmente o Estado de Direito.

O espetáculo é incompatível com a institucionalidade da ordem jurídica que se pretende democrática.

Se o que pretendemos é o linchamento, sem processo e sem respeito a institucionalidade própria do Estado de Direito, entreguemos o poder de punir aos sentimentos transitórios das multidões.

Em tempo no qual os cristãos comemoram o nascimento do seu Deus, seria adequado que cada qual, que crê em tal divindade, pensasse o que fez a turba sedenta de sangue e vingança contra quem nem mesmo o representante do Império Romano viu falta alguma.

Sou João Batista e quero manter minha cabeça colada ao corpo. Por isto, escrevo abstratamente sem qualquer alusão a fatos ou processos. Qualquer semelhança é mera coincidência.