sábado, 22 de abril de 2023

Atos terroristas de 8 de janeiro: faça-se luz!

Os poucos segundos de exibição das cenas dos atos terroristas do dia 8 de janeiro foram suficientes para derrubar o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República. Os atos foram registrados em 22 câmeras, gerando cerca de 165 horas de gravação, num total de 250 gigabytes. As gravações vazaram para a rede de TV depois que houve recusa do ministro em fornecê-las, segundo se noticiou, à CPI da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF).

Não é possível formular juízo vendo apenas alguns segundos dos registros. As notícias que mostram a presença do ministro demitido no Palácio não nos dizem que tais imagens foram captadas às 16h30min, portanto, depois dos atos terroristas. É possível que o trato dispensado aos terroristas tenha ocorrido depois que a situação estava controlada e que apenas se tratava com dignidade as pessoas presas e as conduzia ao segundo andar de onde seriam encaminhadas para a formalização da prisão em flagrante.

Segundo noticiou a imprensa, o ministro havia recusado a remessa das imagens à Câmara Legislativa do DF, alegando que os arquivos eram grandes demais. O presidente da CPI, deputado distrital Chico Vigilante, do PT, chegou a dizer que forneceria um HD externo para armazenar as imagens. Estaria o ministro se protegendo ou protegendo colegas de farda em razão de fidelidade castrense?

É preciso considerar que um oficial militar ingressa numa escola preparatória na adolescência, depois numa academia militar e ao longo da vida é adestrado a ter fidelidade aos seus pares e à sua instituição. Não raro sequer estabelecem vínculos fora do círculo profissional. Quando muito, estabelecem relações externas em razão de conveniências pessoais. O que falam entre si entre eles permanece. A exemplo do que demonstrou o ex-comandante do Exército, general Villas Bôas, a interlocução que estabelecem institucionalmente com a sociedade não corresponde ao que realmente pensam.

No Brasil, salvo exceções, sempre que podem atacam a democracia e a soberania popular. Foram dezenas as intervenções militares ao longo da República. A mais emblemática durou 21 anos e comprometeu o futuro do país, além de ter se notabilizado por torturas, assassinatos, desaparecimentos de pessoas, roubos, estupros e outras perversidades.

Duas questões precisam ser consideradas para a tomada de decisões futuras sobre o destino do país: 1) os golpistas não desistiram de afrontar a ordem democrática e o Estado de Direito e contam com apoio – inclusive financeiro – dentro e fora das instituições; 2) a conciliação não nos permite superar a agigantamento do papel das Forças Armadas desde o golpe que instituiu a República, quando passaram a se considerar Poder Moderador e avalistas das instituições, mesmo que a sociedade não lhes tenha atribuído tal papel.

Os atos terroristas de 8 de janeiro já vêm sendo investigados pela Polícia Federal, é objeto de atenção do STF – que também foi depredado – e pela Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF). Agora teremos também uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) a ser instalada pelo Congresso Nacional.

É fundamental para a vitalidade da República que se esclareçam os fatos. O funcionamento do aparato militar há de ser objeto de atenção por todos os que se se preocupam com a democracia e com o Estado de Direito. O general demitido é um ancião, na reserva, comandava um grupo de militares antes chefiados pelo ex-ajudante de ordens do general Silvio Frota e conta com mais de 50 anos no Exército. É preciso esclarecer se tinha condição de comando ou se estava ‘liderando’ um grupo rebelde que lhe fazia ouvidos moucos.

Em artigo pretérito elogiei a extraordinária compreensão institucional do ministro Flávio Dino quando decretou intervenção na Polícia Militar do DF no dia 8 de janeiro, recusando-se a editar decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), com convocação das Forças Armadas para controle dos atos terroristas. Tivesse sido decretada a GLO os interventores estariam até hoje na Praça dos Três Poderes e as instituições ainda lhe deveriam louvores pelos atos que os próprios deram causa.

Conciliar não é legal. E sabemos disto desde a Lei da Anistia de 1979, que isentou os praticantes de crimes de Estado de responsabilização e que mesmo depois de anistiados, continuaram a colocar bombas pelo país. As sucessivas decretações de GLOs, colocando as FFAA em papel policial, as trouxe de volta à política. A manutenção dos acampamentos antidemocráticos após o dia 1º de janeiro foi uma falha. As instituições falharam ao não reconhecer o perigo fascista que subsistia, mesmo depois de derrotada nas urnas e de ter ameaçado a Justiça Eleitoral. Os acampamentos antidemocráticos, protegidos e auxiliados pelo Exército, eram a parte visível do ovo da serpente. 

Ótimo que mais uma investigação será engendrada. É preciso que sobre tais fatos haja luz. Afinal, a luz do sol é o melhor desinfetante par defenestrar os vermes e a democracia demanda publicidade.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 22/04/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/04/6617372-joao-batista-damasceno-atos-terroristas-de-8-de-janeiro-faca-se-luz.html

sábado, 8 de abril de 2023

500º artigo, passando pelas jornadas de junho de 2013

 




Este é o 500º artigo que publico neste jornal, transcorrendo 15 anos. O primeiro artigo foi publicado em 3 de maio de 2008 e escrevi sobre o fenômeno da espetacularização dos julgamentos que se aprofundaria na sociedade brasileira. A prática se disseminou, resultando na Operação Lava Jato. Naquele artigo abordei o perigo do ajuste entre Judiciário, Ministério Público, polícia e mídia.

Outro tema abordado com frequência foi a militarização da política de segurança e extermínio de jovens pretos e pobres da periferia e favelas. Em junho de 2008, os jornais anunciavam que o Exército ocupava o Morro da Providência e que o governo federal havia recorrido da decisão judicial que determinara sua desocupação, porque as Forças Armadas não se incluem nos órgãos de segurança pública elencados no Art. 144 da Constituição.

A ocupação do Morro da Providência pelo Exército culminou com o sequestro e entrega de três jovens, que voltavam de um baile funk, a traficantes de um morro rival, onde foram torturados, executados e ‘desovados’ em lugar ermo distante. Tal como no ‘Mito de Cassandra’, que predizia o futuro, mas ninguém acreditava em seus prognósticos, não adiantou dizer sobre o que propicia a militarização da política de segurança.

Aqueles que retiraram os militares das Forças Armadas dos quarteis, e os colocaram em atividades policiais, foram os que os trouxeram para a política e colocaram para chocar o ovo da serpente que ameaçou as instituições nos últimos anos. Não basta que sejam nobres as nossas intenções. Quem tem poder de decisão precisa saber o efeito do que faz, precisa do indispensável senso de proporção, bem como senso de responsabilidade.

As crônicas registram ocorrências cotidianas e têm o desvalor do imediatismo, correndo o risco da excessiva subjetividade. Mas o pouco registro nelas contido possibilitam alguma reconstituição histórica. Analisando aquele período pelo retrovisor é possível perceber relatos do descontentamento de parcela da população com as políticas públicas divergentes das aspirações depositadas, até o surgimento das Jornadas de Junho em 2013.

A implementação de política de extermínio nas favelas e periferias, culminando com as ocupações militares, com Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) e decretação de GLOs (Garantia da Lei e da Ordem sob o comando das Forças Armadas), apenas oficializou o que o aparato repressivo do Estado, não desmontado com a redemocratização, continuava fazendo na periferia.

Desde 2003, os anseios depositados - visando a transformações sociais e dignificação do mundo do trabalho - foram frustrados e as políticas assistenciais, embora garantidoras do pão de cada dia, eram mero paliativo. Para garantir o circo foram direcionados vultosos recursos no patrocínio dos “Grandes Eventos” que prometiam legados. O Brasil se tornou destino de três grandes ocorrências desportivas sucessivas: Olimpíadas, Jogos Militares e Copa do Mundo de Futebol. Empreiteiras sorriam, mas a insatisfação popular era crescente.

A tentativa de demolição do antigo prédio que abrigou o Museu do Índio, para construção de shopping e estacionamento para a Copa de 2014, foi o aglutinador das insatisfações no Rio de Janeiro e propiciou as manifestações de 2013. Não foram os R$ 0,20, nem apenas o prédio notabilizado por Berta Ribeiro, Darcy Ribeiro e Marechal Rondon. Os motivos para as manifestações de 2013 também foram o descontentamento com os rumos que o país tomava, desde a escolha do presidente do Banco Central, gerando quebra das expectativas dos que empobreciam e tinham a vida precarizada.

Os setores progressistas, no exercício dos cargos, mas não no poder, colocaram-se como gestores da iniquidade. Enquanto assumiam compromisso com a “ordem” patrocinavam a desordem que empobrecia, torturava, executava e desaparecia com pessoas, a exemplo do Pedreiro Amarildo. Descrentes e com expectativas frustradas as massas reagiram à institucionalidade, via na qual depositavam suas esperanças.

Mas os “gestores da ordem”, compromissados com a ‘governabilidade’, não compreenderam a manifestação anti-institucional extremamente forte que emergia com pujança naquele junho de 2013 e tentaram sufoca-la. Incapazes de compreender a expressão popular, criminalizaram os movimentos sociais. Isto acentuou a desidentificação em curso e jogou a população para o lado daqueles que fizeram discursos antiinstitucionais que resultaram no terraplanismo, anticiência e nos atos terroristas de 8 de janeiro de 2023.

O descrédito no qual aqueles governantes mergulharam propiciou a aglutinação das massas em torno dos que entenderam a mensagem das manifestações e passaram a apregoar – oportunisticamente – o fim da política e dos poderes do Estado encarregado de políticas públicas.

Quem ocupa o trono tem culpa. Quando Édipo descobriu que a desgraça que se abatia sobre Tebas decorria do fato de ter matado seu pai e casado com sua mãe, não se desculpou alegando desconhecer sua ascendência. Furou os próprios olhos e partiu da cidade. Não adianta culpar os que ocuparam o vácuo deixado no seio popular. É preciso que as responsabilidades sejam assumidas e ‘novos rumos’ traçados.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 08/04/2023, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/04/6608295-joao-batista-damasceno-500-artigo-passando-pelas-jornadas-de-junho-de-2013.html

 


sábado, 25 de março de 2023

MINISTRO FLÁVIO DINO: TRIBUTO AO MÉRITO

 

Se a meritocracia é odiosa, por pretender dizer estarem em situação de igualdade pessoas que se encontram concretamente em desvantagens, o mesmo não se pode dizer do mérito. Mérito é o conjunto de características, aptidões ou valores que tornam alguém digno de apreço; são atributos ou qualidades morais ou intelectuais, bem como a aptidão ou capacidade de uma pessoa.

Podemos dizer que o Brasil tem um ministro da Justiça que tem mérito e deve ser reconhecido. A César o que é de César! Em momentos conturbados da vida político-institucional brasileira o Ministro Flávio Dino demonstrou e, tem demonstrado, excepcional capacidade de dar soluções adequadas, com absoluto respeito ao Estado de Direito e à ordem democrática.

No dia 08 de janeiro, quando os prédios dos poderes do Estado em Brasília, incluindo a sede do Supremo Tribunal Federal (STF), foram alvo de ataques terroristas preparatórios para uma intervenção golpista, o Ministro Flávio Dino editou decreto de intervenção federal na área de segurança do Distrito Federal e, sob seu comando, restabeleceu os poderes da legítima autoridade do Estado Democrático de Direito que era desafiada.

Está registrado para a história a eficiência do ministro. Rascunhou um decreto de intervenção, ainda que não numerado, remeteu por WhatsApp ao Presidente da República que o assinou e o devolveu, imprimiu o decreto assinado, sem numeração, e entregou uma cópia ao interventor nomeado para que pudesse tomar as decisões de restabelecimento da ordem na Praça dos Três Poderes. Fora sugerido ao ministro a decretação de uma GLO, Garantia da Lei e da Ordem, com convocação das Forças Armadas.

GLO é um instrumento jurídico excepcional que permite ao presidente da República empregar as Forças Armadas em casos de esgotamento das tropas de segurança pública e perturbação da ordem. Foi a prática desarrazoada das GLOs, notadamente no Rio de Janeiro, o que retirou os militares dos quarteis e os trouxe para a política, possibilitando que alguns ameaçassem os próprios poderes do Estado com o fundamento, autodeclarado, de que são um poder moderador.

Tivesse no dia 08 de janeiro sido decretada uma GLO alguns militares golpistas talvez pretendessem estar no Plano Piloto da Capital Federal até esta data. Não tendo havido tal designação dos militares, o que a eficiência da atuação do Ministro Dino demonstrou a desnecessidade, hoje, diante dos transtornos causados por criminosos, oportunistas e vândalos no Rio Grande do Norte, há quem volte a propor o emprego das Forças Armadas para atuação interna no país. Em recente entrevista o ministro deu lapidar aula de institucionalidade. Disse:

“Diante de uma crise você não pode ter posição dogmática; posição rígida. Você adequa o seu planejamento à necessidade. O artigo 144 da Constituição Federal define o que é segurança pública no Brasil. E isso não inclui as Forças Armas. As Forças Armadas são uma espécie de remédio extremo. Quando o sistema de segurança pública federal e estadual entram em colapso absoluto - que não é a situação que nós no RN - é que você busca a chamada GLO, Garantia da Lei e da Ordem, [com aplicação do] art. 142 da Constituição, lembrando que as Forças Armadas não integram o sistema de segurança Pública. Ás vezes por razões ideológicas apenas, ou da violência política a que fiz alusão, há uma fantasia sobre GLO. Se GLO fosse remédio para tudo não existiria mais desmatamento na Amazônia brasileira, porque já houve dezenas de GLOs na Amazonia. Se GLO fosse remédio para tudo não haveria mais violência no Rio de Janeiro, porque já houve várias GLOs no Rio de Janeiro. Então é preciso dimensionar as coisas com seriedade. E nós temos seriedade. Se precisar de GLO quem vai pedir é a governadora. E, claro que nós vamos atender, se for necessário. Ou seja, não há uma posição ideológica nossa. Nem no sentido de fazer amanhã, nem no sentido de rejeitar. Isto é uma decisão técnica. E essa decisão técnica é definida não por vontade política de quem quer fazer espetáculo político. Mas é definida exclusivamente por indicadores. Os indicadores [hoje] justificam uma GLO? Não! E amanhã? Vamos ver! Se houver (...) uma nova escalada nós vamos conversar com a governadora. Neste momento o sistema de segurança pública está conseguindo enfrentar a crise. Forças Armadas fazem guerra. Forças Armadas são para a defesa da soberania; guerra externa. Só se coloca as Forças Armadas na segurança pública quando há um colapso absoluto da segurança. Esta é a definição doutrinária, jurídica e constitucional que nós vamos cumprir. Porque nós não estamos aqui para sermos irresponsáveis ou para fazer fake News ou espetáculo político”.

O Ministro Flávio Dino tem notável formação intelectual, bem como traquejo para as formulações de políticas públicas, sem gerar problemas para a ordem institucional, como demonstrou nestas duas ocorrências analisadas. Tem vida pregressa orientada pelos princípios que regem o Estado de Direito e a democracia, bem como - em outras oportunidades - já provou ser imune à mosca azul da ambição política ou da soberba capaz levar os homens públicos ao cadafalso. Neste rumo será possível recolocar o Brasil nos trilhos para seguirmos adiante.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 25/03/2023. Pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/03/6600047-joao-batista-damasceno-ministro-flavio-dino-tributo-do-merito.html


quarta-feira, 15 de março de 2023

DEMOCRACIA E RECONSTRUÇÃO NACIONAL

 

 

Inicialmente gostaria de saudar o Movimento de Defesa da Economia Nacional/MODECON, pela retomada de suas atividades, bem como o Instituto Brasileiro de Estudos Políticos/IBEP organizadores deste nosso encontro.

Solicitou-me o presidente do Movimento de Defesa da Economia Nacional/MODECON, Prof. Lincoln Penna, viesse a um encontro para reflexão sobre o tema ´Democracia e Reconstrução Nacional´.

Não poderia recusar uma convocação dessa natureza, notadamente por se tratar de um movimento fundado por Barbosa Lima Sobrinho, jornalista e advogado, que se notabilizou pela defesa dos interesses do povo brasileiro, das liberdades e da democracia.

Se esta já seria razão suficiente para impossibilitar o declínio ao convite outra razão se apresentou de imperativa aceitação: a situação na qual se encontra o MODECON, que sempre foi acolhido na Casa de Barbosa Lima Sobrinho, a ABI, e neste momento somente lhe disponibilizam possibilidade de reunião mediante pagamento por horas da sala ocupada, com o aluguel de no mínimo 3 (três) horas por reunião.

Não se trata de decisão de toda a ABI. Na qualidade de Conselheiro titular não endosso tal exigência que afronta o legado de Barbosa Lima Sobrinho. Trata-se de decisão de sua atual diretoria.

Mas há outros lugares nos quais aqueles que defendem a democracia, as liberdades e os interesses do mundo do trabalho podem se reunir. E neste sentido há que se registrar a recepção por este Clube de Engenharia cuja história está vinculada aos interesses do povo brasileiro.

Antes de adentrar o tema reconstrução nacional falemos de democracia. Mas que democracia?

Podemos abordar a democracia por pelo menos 3 (três) vertentes:

·       - Teoria clássica aristotélica contida nas três formas de governo (monarquia, aristocracia e democracia x tirania, oligarquia e demagogia);

·       - Teoria medieval de origem romana: soberania popular ascendente, do povo para o príncipe ou descendente do príncipe até o povo.

·       - Teoria contemporânea: republicana.

 E mesmo quando falamos do conceito de república precisamos decodificar de que república falamos. Quando Maquiavel fala nas formas de domínio sobre as pessoas, República e Principado, pode não estar se reportando à democracia e à aristocracia, embora historicamente a democracia fosse identificada com a república.

Platão já definira a democracia como “governo do número”, “governo de muitos” e “Governo da multidão”. Da concepção romana (de poder popular) surgiu e cresceu na Idade Média a distinção entre a titularidade e o exercício do poder, reconhecendo o povo como titular do poder, porque pelos seus costumes e práticas é que dá eficácia ao comando emanado do Estado.

Ao longo do século XIX a discussão democrática foi acentuada entre a concepção liberal e socialista.

Para a concepção liberal de democracia basta-lhe a força numérica. Daí se dizer que a democracia é a força política do número, pouco importando o interesse a ser defendido pelos representantes da maioria transitória, a defesa efetiva dos interesses da maioria consultada ou o dever de coexistência respeitosa com a minoria.

Hoje, diante da barbárie que se avizinhou tomamos a defesa da democracia tal como a concebem igualmente os liberais, como um sistema de livre manifestação de pensamento, alternância de poder com eleições livres e com instituições estatais garantidoras da ordem e redutoras das incertezas do futuro.

Este modelo de democracia que hoje se apregoam, diante das nuvens da calamidade que se avizinharam e que ainda não se dispersaram, é o modelo reformado da democracia instituída quando a burguesia concluiu a tomada do aparelho de Estado, cujo símbolo – e talvez não seja o marco – é a Revolução Francesa.

O modelo de democracia liberal, com instituições jurídicas e repressivas garantidoras dos interesses da classe que chegou ao poder destronando a nobreza, foi formatada por juristas. E por isto os juristas têm sido tão demandados no presente momento. Fosse outra a demanda dos interesses hegemônicos não seriam os juristas os agentes demandados, mas aqueles que detém as armas.

Para compreender a relevância das instituições jurídicas, em nome das quais se falam no presente momento, precisamos recorrer uma afirmativa de Max Weber. Na Assembleia Constituinte Francesa a maioria dos constituintes era composta de advogados. Diz ele que:

“Quem percorra os registros do Parlamento de Paris ou os anais dos Estados Gerais franceses, desde o século XVI até 1789, aí encontrará presente o espírito dos juristas. E quem passar em revista as profissões dos membros da Convenção, quando da Revolução, encontrará um único proletário – embora escolhido segundo a mesma lei eleitoral aplicável a seus colegas burgueses. Em oposição a isso, encontrará numerosos juristas de todas as orientações, sem os quais seria absolutamente impossível compreender a mentalidade radical desses intelectuais ou os projetos por eles apresentados. Desde essa época, o advogado moderno e a democracia estão ligados. Por outro lado, só no Ocidente é que se encontra a figura do advogado no sentido específico de uma camada social independente e isso desde a Idade Média, quando eles se multiplicaram a partir do “intercessor” (Fursprech) do processo germânico, sob influência de uma racionalização de procedimentos. (Weber, Max. Ciência e Política: duas Vocações. São Paulo: Ed.  Cultrix, 1993:77).

Discussão tomou como base a concepção de Benjamin Constant exposta em discurso sobre A liberdade dos antigos comparada com a dos modernos. Para Benjamin Constant, tribuno eloquente, na segunda parte da Revolução Francesa a liberdade que dever ser promovida é a liberdade individual perante o Estado. E tratava a liberdade dos antigos danosa, por permitir a todos participação nos problemas do Estado e nos destinos da sociedade.

A democracia liberal se coloca no dilema entre a liberdade do indivíduo perante o Estado x liberdade de participação na elaboração das leis.

A democracia liberal é aquela na qual o Estado reconhece e garante alguns direitos fundamentais, como os direitos de liberdade de pensamento, de religião, de imprensa, de reunião etc...

Na democracia liberal o poder de fazer leis fica restrito a um corpo de representantes, excluída participação direta.

A questão da democracia liberal está restrita ao tamanho do corpo eleitoral. Porém, pugna pela manutenção dos interesses estabilizados, sem ampliação da participação geral no produto do trabalho social.

A democracia liberal se fez ampliando paulatinamente o corpo eleitoral: grau de instrução, idade, sexo ...

Eleição sempre houve, assim como partidos. Mesmo nas monarquias absolutistas a nobreza formava partidos palacianos e promovia votações. Tratava-se de um sistema no qual o povo não participava, nem se admitia que tivesse direito de participar dos debates.

A restauração do Trono português após a União Ibérica decorreu de um ajuste e portanto, da votação entre as Casas que almejavam o trono. Da mesma forma, quando das Guerras Napoleônicas que propiciaram a vinda da Família Real para o Brasil em 1808 havia os partidos inglês e francês na nobreza portuguesa.

Claro, não estamos falando de partidos, constituídos como pessoas jurídicas, com objetivo de captação de voto popular, tal como os que conhecemos. Mas grupos de interesses articulados e que influíam nas decisões da realeza.

Um exemplo de que eleição sempre ocorrem, mesmo nos regimes mais fechados, é a ditadura empresarial militar que elegia general a ser empossado na presidência da República. Claro que o corpo eleitoral estava limitado ao Estado Maior das Forças Armadas, com direito a desconsideração do resultado e golpe no “eleito” como o foi em detrimento do general Albuquerque Lima, que obtivera a maioria dos votos, e em favor do General Garrastazu Médici.

Foi a ampliação do corpo eleitoral, para além da nobreza, estendendo-se ao povo (inicialmente à burguesia) que propiciou a formação de partidos, tal como o conhecemos hoje.

O conceito de democracia liberal é meramente formal e indica uma institucionalidade despida de fim e onde todos são colocados em igualdade jurídica, mesmo que ostentando status distintos na ordem econômica e social. Daí que perpetua a desigualdade. Diversamente um conceito de democracia substancial indica um conjunto de fins, dentre os quais a igualdade social, juridica e econômica.

Para o liberalismo o sufrágio universal é o ponto de chegada da democracia formal; para Engels o sufrágio universal é o ponto de partida para a democracia substancial.

Se a democracia não se restringe ao sufrágio universal, e se este é o ponto de partido para aquela, que democracia almejamos?

O liberalismo nos permite a democracia representativa. Diversamente uma democracia substancial, que pode ser tanto direta quanto forem as distribuições de centro de poder, se faz com a participação popular e controle dos órgãos políticos. Uma democracia substancial não só possibilita a participação nos órgãos encarregados da edição das leis, mas sobretudo na participação do resultado do trabalho social.

E se hoje falamos da participação no que foi socialmente produzido, para o que é fundamental a ampliação do controle popular sobre o aparelho do Estado, não podemos descuidar que a acumulação capitalista propiciou o deslocamento dos centros de poder dos órgãos tradicionais do Estado para as corporações e destas para centros financeiros.

Na empresa tradicional algum controle do poder era possível com os conselhos de fábrica; no capitalismo financeiro o poder se encontra além da direção da empresa, da corporação ou do conglomerado. O gerente, presidente ou CEO (Chief Executive Officer) é mero empregado de um poder que está invisibilizado.

As concepções sobre a democracia enquanto capacidade de intervir nos órgãos do Estado, controlando sua atuação, ganha realce se considerarmos o deslocamento do centro de poder. No capitalismo financeiro mesmo a empresa se torna refém e agente da apropriação do trabalho social e transferência de renda do mundo do trabalho para o mundo do capital.

Esta problematização se faz relevante quando abordamos o tema RECONSTRUÇÃO NACIONAL.

O que reconstruir?

·           Instituições estatais ameaçadas pela barbárie negacionista ou

·           Economia, dilapidada pelo sistema financeiro internacional, que Leonel Brizola dizia promover as ´perdas internacionais´.

A reconstrução institucional, com fortalecimento dos órgãos do Estado, esbarra na multifacetação da sociedade. A precarização do mundo do trabalho dificulta a organização dos trabalhadores na defesa de seus interesses de classe. Assim, setores da sociedade têm se aglutinado em torno de bandeiras identitárias: gênero, etnia, etarismo etc, com subcategorias (diversidade sexual, colorismo etc...) e discursos, por vezes, antagônicos que se contrapõem aos interesses comuns da classe na qual estão inseridos.

Por outro lado, a reconstrução econômica não pode ser feita sem consideração aos interesses diretos e concretos do mundo do trabalho e daqueles que o compõe.

Uma reconstituição que vise a atribuir poderes aos conglomerados, a pretexto de competirem com conglomerados estrangeiros pode tão somente constituir oligarquias nacionais associadas ou a serviço de conglomerados outros, controlados – todos – pelo capital financeiro internacional.

Exemplo disto temos a formação de um gigante no ramo dos frigoríficos, das cervejarias, da rede de fast foodies, instituições privadas de ensino etc... Nada vou falar de um dos acionistas, que juntamente com outros dois eram majoritários de uma das maiores redes varejistas do Brasil e que é – ou foi - o CEO de alguns desses conglomerados.

O controle de alguns conglomerados é de fundos de investimentos. Muitos adquirem empresas sólidas. Sugam os seus recursos e os entregam à recuperação judicial, muitas vezes com algum prejuízo aos credores, ou à falência, com total prejuízo aos credores, tal como os gafanhotos que destroem uma plantação.

As empresas hoje se constituem reféns de fundos de investimentos que lhes sugam os recursos, tal como igualmente faz o capitalismo financeiro com as nações. Esta é a tônica do embate atual entre o presidente da república com o Banco Central. A alteração de alguns décimos na taxa de juros pode implicar na transferência de vultosas importâncias do mundo do trabalho para os integrantes do mundo do capital. Uma ínfima alteração na taxa de juros pode constituir um bilionário da noite para o dia, sem a possibilidade de intervenção do Estado, uma vez que constituída uma autoridade monetária imune aos poderes conferidos pelo voto popular. Autoridade monetária imune ao poder político é a característica da autonomia do Banco Central.

Assim, não é possível falar em democracia, quando a economia está gerida por quem não se submete à vontade popular. Da mesma forma não se pode pretender a reconstrução nacional, sem um projeto efetivamente nacional, visando aos nacionais, destinado ao mundo do trabalho. A constituição de conglomerados a pretexto de reconstrução da economia nacional, no máximo poderá resultar em formação de oligarcas, precarização do mundo do trabalho, e dispensa massiva de mão de obra a depender de programas assistenciais que por vezes podem se transmudar em assistencialismo asfixiador da própria democracia.

Vivemos sob escombros, ouvi hoje da professora Nadine Borges. Mas estamos vivos e fortes. Qualquer raio de luz pode nos encantar, tal como a democracia liberal, mas ao nos livrarmos do entulho precisamos removê-lo, continuar a caminhada para uma democracia substancial e iniciar a reconstrução do país que almeja a classe trabalhadora do campo e das cidades.

Muito obrigado.


Palestra proferida no Clube de Engenharia, no dia 14/03/2023.

sábado, 11 de março de 2023

Terceirização e trabalho escravo

 

Ao fim da Idade Média o expansionismo português se estendeu ao mundo. O capitalismo comercial estabeleceu definitivamente a globalização. O Estado Português construiu fortificações em toda a costa brasileira, nas costas oriental e ocidental da África, na Índia, na China, nas Filipinas e outros lugares do Oceano Pacífico. Ao tempo da ocupação do Brasil, Portugal tinha uma população de dois milhões de habitantes. Quase metade rumou em direção às novas terras conquistadas em busca de riquezas. Mas um problema se apresentou: quem trabalharia? Não seriam os fidalgos portugueses que se disporiam a lavrar a terra, escavar para tirar ouro, plantar cana para fazer açúcar ou a fazer os carregamentos dos fardos para encher os navios com as riquezas pilhadas dos povos dominados.

A história das sociedades é a história das lutas daqueles que são forçados a realizar os trabalhos com aqueles que se apropriam e gozam do resultado do trabalho. Assim foi a colonização do Brasil. Havendo demanda por mão de obra num reino tão vasto como o Português depois das navegações, a aristocracia portuguesa lançou mão da escravização da população africana. Com esse propósito estimulou rivalidades, promoveu guerras entre povos e instituiu um largo comércio de pessoas pelo mundo.

Toda a atividade empresarial portuguesa no período das Grandes Navegações se fez com algum tipo de associação com a Inglaterra. O próprio surgimento do Estado Português coincide temporalmente com a conquista da Grã-Bretanha pelos normandos em 1066, dando origem à atual aristocracia e elite britânica. Portugal e Inglaterra constituem a mais antiga aliança entre nações que o mundo conhece. Até o padroeiro é o mesmo: São Jorge. Se a América demandava escravização de pessoas para trabalho forçado a Inglaterra cuidou de prover, tanto para suas colônias na América do Norte quanto para a América Central, do Sul e Antilhas. As cidades da costa oeste da Grã-Bretanha cresceram com seus portos exportadores de gente.

A voracidade da exploração exterminou a população indígena e escravizou pessoas da África para trabalhos nas minas e engenhos de açúcar.  O capitalismo e a escravidão africana uniram-se num laço indissociável e propiciaram a acumulação de capital em grande escala. Assim, se fez mundial e transmudou-se de comercial para industrial. O ouro das Minas Gerais, cuja pilhagem foi obstada por Borba Gato, Felipe dos Santos e por Tiradentes, acabou nos cofres ingleses e aceleraram o processo de industrialização daquele país.

Mas o sistema traz as suas próprias contradições. O desenvolvimento do capitalismo industrial demandou mercados e a Inglaterra, senhora do comércio internacional de pessoas escravizadas, passou a advogar a ‘libertação dos escravos’ a fim de constituir uma sociedade de consumo. A mesma Inglaterra que se constituíra e acumulara capital com a mão de obra escravizada demandava a mão de obra livre e assalariada propícia ao consumo das quinquilharias que produzia. O trabalho livre tornou-se mais lucrativo, pois a importação e manutenção da mão de obra escravizada demandava alto investimento de capital, constituía mercado consumidor e o trabalhador livre não demandava despesas com a manutenção de sua sobrevivência.

O trabalhador livre estava livre de tudo. Livre inclusive da possibilidade de ser proprietários dos meios para a produção. A Lei de Terras no Brasil, de 1850, impedia a ocupação de terra produtiva por quem não pudesse comprá-la. Foi uma forma de impor que algumas pessoas trabalhassem para quem as pudesse adquirir. Em discurso no parlamento alguns deputados imperiais chegaram a questionar a possibilidade de distribuição de terras aos pobres e perguntavam: se todos tivessem terra quem trabalharia nas suas? A propriedade dos trabalhadores livres se constituía – unicamente - na força de trabalho, passível de ser vendida aos empregadores nos meios de produção que detinham. Empregador é quem emprega força de trabalho alheia em seus meios de produção. O trabalho é o que produz.

A ameaça dos trabalhadores organizados de tomar os meios de produção domesticou o capital e foi razão da regulamentação das relações de trabalho, fornecimento de bens e serviços indispensáveis à vida com dignidade e instituição do estado do bem-estar social. Mas o neoliberalismo pretende o retorno do mundo do trabalho ao período anterior ao das leis trabalhistas. A reforma trabalhista que possibilita a terceirização, isentando de responsabilidade o tomador do serviço e empregador da mão de obra, expressa o retorno à exploração desmedida do mundo do trabalho. A prática das vinícolas gaúchas em cujas propriedades foram encontrados ‘boias-frias’ em situação análoga a de escravos expressa o rumo que a relação capital-trabalho está tomando. Se o mundo do trabalho não reagir sua precarização poderá se acentuar. Houve reação da sociedade e os produtos das vinícolas chegaram a ser rejeitados em certas empresas comerciais. A venda de suco no Armazém do Campo, que fica na Rua Mem de Sá, na Lapa, no Rio de Janeiro, produzido em cooperativas de trabalhadores do MST, portanto livres da precarização, chegou a aumentar 200%.  A humanidade por vezes tende retornar à barbárie. A história recente do Brasil nos comprova esta possibilidade. Mas também reinventa sua história rumo ao horizonte.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 11/03/2023, pag. 14.


domingo, 26 de fevereiro de 2023

Agentes públicos, liberdades públicas e nudez

Há alguns anos dois turistas alemães foram presos e conduzidos para a Delegacia de Proteção ao Turista, em Salvador (BA), após trocarem a roupa num canto do saguão do aeroporto daquela cidade. Um terceiro, que estava com eles, também foi conduzido coercitivamente, com evidente abuso de autoridade, à delegacia para prestar depoimento. Os três, todos com mais de 60 anos, embarcariam de volta às suas casas na Alemanha, depois do Carnaval, mas foram impedidos em razão da prisão.

Os turistas disseram que não acharam que a troca de roupas incomodaria as pessoas presentes no aeroporto, depois de tudo o que viram no Carnaval pessoalmente e pela TV, nem que se tratava de crime. Apesar do evidente erro quanto à licitude do que fizeram, os dois turistas foram autuados por prática de ato obsceno e somente dias depois puderam viajar. Quem conhece a Alemanha sabe que, com muito menos exibicionismo que no Carnaval brasileiro, é comum encontrar pessoas nuas tomando sol nos parques, sem qualquer atenção dos demais frequentadores. Os turistas alemães até hoje não devem ter entendido qual é a regra de vestimenta ou da falta dela no Brasil.

No Rio de Janeiro, uma banhista que fazia topless na Barra da Tijuca foi presa pela Guarda Municipal, conduzida à delegacia de polícia e igualmente autuada. De novo o que se viu foi abuso de autoridade. Isto porque, além da licitude da prática do topless, a Guarda Municipal – hoje autarquia – era uma empresa pública com seus empregados uniformizados visando, exclusivamente, à proteção do patrimônio público municipal. A Guarda Municipal carioca não era e continua não sendo uma polícia de costumes. Ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Isto decorre do princípio da legalidade esculpido na Constituição e os agentes públicos somente podem e devem fazer o que a lei manda.

Na Grécia Antiga, os desportos tinham duas modalidades: hípicos e gímnicos. Nos esportes equestres ou hípicos, os atletas competiam vestidos. Nos desportos gímnicos os atletas competiam nus. O radical da palavra gímnico é o mesmo das palavras ginásio, ginasta, ginástica, ginecologia e está relacionado ao físico ou à atividade física.

Há algum tempo li e não reencontrei a fonte para a devida citação que os gregos competiam nus para exibição do corpo e demonstração da virtude do cuidado com ele. A nudez dos atletas gímnicos compunha um ritual cívico, que também tinha sentido religioso. Na Grécia Antiga, a competição com o corpo nu era motivo de orgulho, pois demonstrava virtudes mentais, coragem e devoção aos objetivos. A vergonha para os antigos gregos não era a nudez, mas o corpo nu sem cuidados que denotava uma pessoa sem educação e sem cultura.

O cuidado físico demonstrava o padrão social do indivíduo e era considerado uma dádiva divina. Os deuses, criadores do mundo e dos jogos, se compraziam com o corpo nu bem cuidado, segundo a concepção daquela sociedade. Os vencedores dos jogos recebiam a coroa de louro como equiparação aos deuses que cultuavam. O corpo belo, em forma, era admirável e representava virtude e bravura. Demostrava o trabalho dos atletas para alcançá-lo. O louro da vitória era um reconhecimento pelo árduo trabalho no “gymnásion” até o alcance do que se considerava perfeição.

A liberdade corporal com a nudez era a expressão da liberdade que os cidadãos gregos tinham; tratava-se de valores que os distinguiam de outras culturas e contribuía para a racionalização da qual emergiu a democracia, pela qual hoje teimamos em resistir para sua realização substancial.

Sobre o comportamento de passistas nuas no Carnaval, uma psicóloga, numa entrevista, disse que se tratava de uma prática libertadora e que todo mundo deveria experimentar alguma vez na vida. A consideração de que a nudez no Carnaval ou em praia, e apenas nessas circunstâncias, se traduz em prática libertadora reflete o moralismo, a naturalização do tabu da indumentária e sério problema com o conceito de liberdade.

O processo de naturalização consiste em nos acostumarmos com criações sociais e as tratarmos como se decorressem da natureza. Andar vestido não é natural, pois na natureza não se usa roupa. Andar vestido é cultural e necessário socialmente, ainda que sob calor de 40 graus. O uso de terno no verão carioca é antinatural e lesivo à saúde, mas demandado em certos meios sociais. Vesti-lo não há de ser considerado opressão. Mas conduta social adequada a meio específico.

Outras práticas sociais não decorrem da natureza, mas da milenar construção da convivência humana. Na natureza não existe direito, nem liberdade. Tudo na natureza é instinto e poder do mais forte. Liberdade é a ausência exterior de limitação e também o direito de fazer e buscar tudo que a outrem não prejudique.

A troca de roupa num saguão de aeroporto, o desfile das passistas nuas, o topless ou nudismo nas praias não haveriam de incomodar quem não o está fazendo, nem ser considerados práticas libertadoras. Tratam-se de condutas compatíveis com o que é natural e adequadas, numa sociedade orientada pela liberdade individual, por não causarem danos a quem quer que seja.


Publicado originariamente no jornal O DIA em 25/02/2023, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/02/6581936-joao-batista-damasceno-agentes-publicos-liberdades-publicas-e-nudez.html


sábado, 11 de fevereiro de 2023

Lehman Brothers, fraudes e inconsistências contábeis

 


Um dono de padaria arranjou um jeito que lhe parecia simples de pagar menos impostos. Selecionou determinadas mercadorias que seriam escrituradas contabilmente, e sobre as quais pagaria imposto, e outras que não constariam da contabilidade. O esquema funcionou maravilhosamente durante anos. Passou ileso em todas as fiscalizações a que fora submetido. Os fiscais analisavam as escritas nos livros de entradas e saídas - de acordo com a escrita contábil -, conferiam as notas fiscais arquivadas com as escriturações, calculavam o imposto sobre a diferença e analisavam as guias de pagamento de imposto. Tudo em ordem.

O problema é que um dia uma fiscal notou que não havia entrada nem saída de açúcar, na padaria, de acordo com a escrituração contábil. Alguma coisa estava errada. A padaria vendia pão doce, café e açúcar. Mas nas escritas contábeis jamais fora anotado um único quilo da mercadoria. Numa visita ao estabelecimento a fiscal encontrou duas realidades: uma impecavelmente escriturada e outra paralela.
Muitos dos produtos comerciados não constavam da contabilidade, dentre os quais o açúcar. Era o caixa dois do dono da padaria. Coitado! Foi descoberto e rigorosamente autuado. O caso é real e já tem mais de 30 anos.

Inconsistência contábil é um nome pomposo que se dá a fraudes. Em se tratando de empresas de capital aberto, com ações ofertadas ao público, a inconsistência proposital é fraude à Economia popular. Mesmo quem nunca tenha comprado uma ação pode estar sendo lesado pela fraude. Um fundo de pensão que invista em ação de uma empresa fraudulenta pode estar impedindo seus beneficiários do direito à aposentadoria. Uma cooperativa de saúde que faça o mesmo pode levar inúmeras pessoas à perda do direito à vida. O problema está no modelo neoliberal que tenta afastar da atividade financeira a regulação estatal, possibilitando que alguns poucos bilionários possam causar crises capazes de arruinar a vida de milhões de pessoas e a própria Economia de todo um país.

O ex-ministro da Fazenda Delfim Neto, em entrevista ao programa Roda Viva, em 2019, falou sobre o que se repete no mundo financeiro: “As pessoas devem ler o Relatório Pécora, feito pelo Congresso norte-americano sobre a crise de 1929. Vão ver que os banqueiros cometeram todos os crimes do mundo. E vão ver o seguinte: que banqueiro solto volta para o local do crime”.

A crise que se abateu sobre os EUA e sobre o mundo em 2008 decorreu de mais uma fantasia contábil. Os bancos financiavam aquisições de imóveis para pessoas que jamais poderiam pagar as prestações. Quando as pessoas atrasavam o pagamento elas pediam empréstimo dando como garantia o direito de aquisição dos imóveis que jamais seriam seus. Num dado momento a bolha estourou.

A crise financeira, iniciada em 2007, foi causada pela perda de valor de ativos imobiliários, provocou uma reação em cadeia, carregou a Europa, se alastrou pelo mundo e provocou uma recessão global no ano de 2009. Levou à nacionalização de bancos, derrubou governos e gerou taxas de desemprego altíssimas. Num primeiro momento o governo dos EUA salvou duas corretoras da falência, gastando US$ 100 bilhões. Mas o problema era mais profundo. A alegria durou pouco. Uma semana depois, o Lehman Brothers, o quarto maior banco de investimentos dos EUA, quebrou. Todo o sistema foi colocado em discussão, inclusive as agências de certificação que atribuem notas para as empresas e levam o público a investimentos nelas.

Na crise dos EUA uma figura acabou se notabilizando. Foi um investidor chamado Bernie Madoff, que virou filme. Madoff era um administrador de fortunas e por igual processo de escrituração fraudulenta convencia os investidores de que estavam tendo ganhos, quando na verdade o dinheiro dos novos depósitos é que pagavam os rendimentos dos depósitos antigos. Com a falência do Lehman Brothers o público começou a fazer saques e novos investimentos não eram feitos. Daí é que a pirâmide ruiu. Milhões de trabalhadores no mundo perderam suas economias e seus meios de subsistência na velhice.

O tema é complexo, suscita paixões e mexe com grandes interesses. O professor Delfim Neto explicou onde está o problema em entrevista ao jornal GGN, de novo relembrando o Relatório Pécora: “A resposta é que, nos anos 1990 do século passado, o sistema financeiro começou a libertar¬-se da regulação imposta nos anos 1930, alegando que ela prejudicava o desenvolvimento econômico. Com apoio no Congresso e suporte ‘científico’ inventado ‘ad hoc’ por uma tribo de economistas, cujos membros enganam-se e divertem¬-se mutuamente”.

Em momento no qual se discute a autonomia do Banco Central, deferida após o Golpe de 2016, talvez valha a pena incluir na discussão o sistema financeiro, tomando como referência as apurações feitas pelo Congresso estadunidense após a crise de 1929.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, 11/02/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/02/6573026-joao-batista-damasceno-lehman-brothers-fraudes-e-inconsistencias-contabeis.html