Em sua obra Lavoura Arcaica o escritor Raduan Nassar narra o
encontro de um faminto com um ancião milionário dono de uma mansão a quem pede
comida. O ancião simula estar entregando o que comer. “O faminto, dobrando-se
de dor, pensou com seus botões que os pobres deviam mostrar muita paciência
diante dos caprichos dos poderosos, abstendo-se por isso de dar mostras de
irritação” e sem saber o que pensar da encenação dela participa como se
estivesse recebendo comida e mastiga o alimento imaginário.
O filósofo Platão dedicou sua obra à justiça depois de
presenciar a condenação à morte do seu mestre Sócrates. Quatrocentos anos
depois, com o mesmo ideário de Platão, o filho de um carpinteiro de Nazaré se
notabilizou por pregar justiça e acabou pregado numa cruz. E se fez deus para
os que nele crêem. O ‘Divino de Nazaré’ falou que são bem aventurados os que
têm fome e sede de justiça.
A justiça é uma lei não escrita que rege a vida humana. As
leis escritas não ordenam as vidas. O que fazemos decorre dos laços de
sociabilidade e civilidade. Se o dispositivo de lei que pune o homicídio fosse
revogado a maioria das pessoas ainda assim não se tornaria homicida. A lei é
mera referência de ordem, assim como os preceitos sociais, ideológicos,
religiosos e outras referências de comportamentos. São meras referências as
quais precisamos nos ater. O objetivo da norma jurídica é dar referência de
ordem e reduzir as incertezas para o futuro. Não é criar cidadãos robotizados,
observadores autômatos dos dispositivos legais. Mas, alguma coisa está fora da
ordem.
Nesta semana o poder judiciário fluminense revogou a prisão
preventiva por ele mesma decretada do estudante Weslley Rodrigues Jacob. Preto,
pobre e morador do Morro do Alemão foi vitimado pelo conhecido flagrante
forjado pela polícia. Não é caso único, nem raro. Quem conhece a periferia sabe
o que é o aparato repressivo do Estado. Um dos casos mais emblemáticos de flagrante
judicial foi a prisão de Rafael Braga, morador de rua que tinha uma garrafa de
detergente com a qual higienizava a calçada onde dormia confundida com Coquetel
Molotov. A condenação se deu sem que fosse periciado o objeto apreendido e o
morador de rua contraiu tuberculose na prisão. De instituição criada para
garantir direitos o judiciário se converteu em homologador das arbitrariedades
policiais. É notório o que o sistema de justiça faz com o preso político mais
visível do Brasil, Luis Inácio Lula da Silva. Há outras centenas de milhares de
ilegalidades. A decisão do STF que impediu a remoção do ex-presidente Lula para
cela coletiva em São Paulo é demonstração de percepção da vilania e começo da
reação para fazer cessar as violências da Polícia Federal a serviço do ministro
Moro e daqueles para quem trabalha. A sociedade não continuará a endossar os
enriquecimentos dos ‘palestrantes de Curitiba’ que lucram com discursos de
falso conteúdo moralizador. É hora de cessar a paciência diante dos caprichos
dos poderosos e de dar mostras de irritação com o que se faz em nome da justiça.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 10/08/2019,
pag. 10. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2019/08/5671023-joao-batista-damasceno--brasil-arcaico-em-decadencia.html
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