sexta-feira, 13 de junho de 2025

Essa polícia é de matar!

Numa monarquia autocrática ou teocrática o poder se legitima como se emanasse do próprio trono ou de Deus. A ideia do poder emanando de Deus chegou a ser teorizada em obra do jurista francês Jean Bodin, de 1576, no nono ano da fundação da Cidade do Rio de Janeiro, após expulsão dos protestantes franceses.

Posteriormente a Bodin outros filósofos escreveram que o poder não emana de deus, mas se constitui por um pacto civilizatório entre os cidadãos. Assim, em 1789, os franceses fizeram uma revolução, cortaram a cabeça do rei e mostraram que seu sangue não era azul, mas vermelho como o de todos. E numa assembleia nacional constituíram um novo modelo de Estado, declarando que todo o poder emana do povo.

Nas monarquias absolutistas tinha-se a concepção de que o rei não erra e que aqueles que agem em seu nome têm a presunção de estarem realizando sua vontade. Daí a presunção de legitimidade de seus atos. Mas nas democracias, onde o poder emana do povo, os agentes públicos não podem pretender privilégios que os sobreponham aos cidadãos.

Embora seja signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, o Estado brasileiro mantém a tipificação do crime de desacato. Tal crime cerceia as liberdades públicas e foi instituído em favor dos agentes públicos contra a cidadania. No Rio de Janeiro o Tribunal de Justiça editou súmula (nº 70) reconhecendo que a palavra do policial é prova suficiente para a condenação. A revisão da súmula não afastou a presunção de veracidade. Portanto, se o policial diz que foi desacatado o cidadão está no sal. O Brasil já foi condenado algumas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela violação ao pacto por ele firmado e ratificado em defesa dos direitos humanos. Mas a condenação recai sobre o Estado e os governantes e agentes políticos que autorizam ou legitimam as violações nada sofrem.

O assassinato do office boy Herus Guimarães Mendes, de 23 anos (é preciso dizer que tem profissão para afastar a legitimação da execução), no Morro Santo Amaro, entre os bairros da Glória e Catete na Zona Sul do Rio de Janeiro, durante uma festa junina, é emblemático e mostra do que é capaz a política de extermínio instituída no Rio de Janeiro. Se na Zona Sul, durante uma festa junina, a polícia é capaz de ferir e matar moradores, imaginemos do que é capaz à noite nas ruas e becos não iluminados da Baixada Fluminense. A supremacia das armas e da truculência acanha e subjuga qualquer resquício de cidadania. E tudo sob o manto protetor da presunção de legitimidade dos atos de autoridade e de seus agentes. É o próprio estado policial em sua mais brutal aparição!

Diante do bestial assassinato de Herus, a PM afastou 10 policiais que participaram da operação e exonerou o coronel André Batista, comandante do Comando de Operações Especiais (COE), bem como o coronel Aristheu Lopes, comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope). Um sargento, possivelmente escalado para bucha, diz ter sido o único a efetuar disparos. A coisa ganha ares estranhos. Se era um tiroteio contra traficantes, por que somente um dos agentes teria disparado sua arma?

A violência policial é tema que me levou a iniciar escrever neste jornal em 2007. Em 16/02/2019, em artigo intitulado “A Boa Polícia” , tratei de uma incursão da PM no Morro do Fallet que causou 15 mortes. Um erro de publicação atribuiu as mortes ao Bope. Mas o então comandante do BPChq, tenente-coronel André Batista, reivindicou a operação. Ele já havia comandado o 9° BPM de Rocha Miranda. Trata-se de policial da elite da tropa, com currículo premiado. Foi o negociador do sequestro do ônibus 174, onde morreram a professora Geisa Gonçalves e o assaltante Sandro Barbosa. Além disto, é coautor do livro Elite da Tropa em parceria com o ex-capitão Rodrigo Pimentel, reformado da PM por surdez, e com o literato Luiz Eduardo Soares. O personagem André Matias no filme Tropa de Elite, teria sido inspirado em André Batista. Foi subsecretário do literato Luiz Eduardo Soares em Nova Iguaçu, na gestão do então prefeito Lindbergh Farias.

A polícia violenta, mas incorruptível, retratada no filme Tropa de Elite 1, decorre da concepção de uma “boa polícia” da qual falam o literato Luiz Eduardo Soares, da Uerj, e os formuladores do curso de Segurança Pública, da UFF. Em suas formulações, a “boa polícia” há de ser incorruptível, mas pode ser violenta, pois corrupção é uma opção; é um desvio pessoal. Mas a violência é um desígnio inevitável da atuação policial.

Terminei aquele artigo dizendo que nos resta apelar para o Tribunal Penal Internacional, para que a cadeia de comando da política de extermínio e aqueles que para ela concorrem, por não exercitarem o regular controle externo da atividade policial, sejam julgados por eventuais crimes contra a humanidade, assim considerados os massacres, a desumanização, os extermínios e as execuções. O texto me propiciou um irado telefonema do então governador e bloqueio nas redes sociais, o que me tira o sono até hoje.

Em 08/05/2021 voltei ao tema em artigo intitulado “Polícia fluminense matou mais 27”, analisando a incursão da Core no Jacarezinho, na mais letal operação policial da história do Rio de Janeiro, salientando dúvida, fundada em precedentes, sobre efetivo confronto e exercício de legítima defesa.

Punir alguns policiais e manter a política de extermínio é a receita para legitimar a continuidade das execuções dos indesejáveis. Mas às vezes os matadores erram na execução e até a mídia reclama.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 14/06/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/06/7074735-joao-batista-damasceno-essa-policia-e-de-matar.html


segunda-feira, 2 de junho de 2025

FILOSOFA NA PRAIA, COPACABANA E CHOQUE DE ORDEM


O prefeito Eduardo Paes editou um decreto no último dia 15 que causou mais reboliço na Praia de Copacabana que causariam correrias e gritos de que está havendo arrastão. Já presenciei uma cena dessas. Um segurança desconfiou de uns meninos que cruzavam por mim no calçadão e ao andar em direção a eles cada qual correu num sentido. Apareceram pessoas de todos os lados correndo atrás dos garotos sem saberem o porquê empreendiam a caçada. Outros meninos aproveitaram para fugir, antes que fossem confundidos com os que eram perseguidos. Banhistas igualmente se apressaram em sair da areia. Mães com suas bolsas, cangas, toalhas e filhos colocados debaixo do braço também corriam para deixar a praia, fugindo da violência imaginária. Continuei minha caminhada pois vira que nada tinha acontecido que justificasse aquela agitação. Fui até o fim do calçadão. Ao retornar pude ver que o alvoroço se ampliara. Havia carros de polícia com sirenes e giroflex ligados, guarda-vidas com seus quadriciclos rodando pela areia em alta velocidade tal como se estivessem num rally pelo deserto, guardas municipais empunhando seus cassetetes tais como D. Pedro I com sua espada proclamando a independência, crianças e adolescentes magrelos com os olhos arregalados detidos dentro das viaturas e uma multidão de curiosos no entorno contando suas versões. Todo mundo era um pouco cinegrafista, fotógrafo e repórter naquela cena. O furdunço começara do nada e ninguém sabia explicar o que tinha acontecido, mas não faltavam versões imaginárias. Eu que tinha visto o começo da história, testemunhei como um grande incêndio pode começar com uma simples fagulha.

Mas voltemos ao decreto do prefeito! Trata-se de um ato regulamentar que dispõe sobre a proibição de atividades que contrariem o ordenamento urbano e público na orla marítima da Cidade do Rio de Janeiro. Copacabana é a praia mais famosa do mundo e o bairro que, talvez, tenha a maior diversidade, inclusive de classes sociais. Pretender ordenar as múltiplas interações e relações estabelecidas em Copacabana deve ser mais dificultoso que a pretensão de impor moralidade em alguns estabelecimentos da Rua Prado Júnior, no mesmo bairro, com a ostentação de uma imagem de São Jorge. Mas se não é possível ordenar a vida social pelos meios normativos e repressivos é necessário que as instituições se imponham como referencial de ordem e redutoras das incertezas do futuro.

O decreto não tem novidade alguma. Tão somente trata da necessidade de preservar o ordenamento urbano, a segurança, o sossego público e a adequada utilização dos espaços públicos na orla da cidade, bem como visa a reforçar o combate a práticas que representem abusos, desordem ou usos indevidos da orla que interfiram na mobilidade, limpeza urbana, meio ambiente e qualidade de vida dos cidadãos. É só isto. E não poderia ser diferente. Um decreto apenas regulamenta direitos, deveres e interesses dispostos em lei. Não pode dispor de forma diferente da norma superior. A hierarquia das normas impede que uma norma inferior contrarie a superior. Uma lei é editada por dois poderes: o Legislativo e o Executivo. Um decreto é ato normativo que visa a explicitar um comando para o cumprimento daquela. O problema ficou no campo da interpretação. No decreto faltou explicitação de alguns temas e poderia oportunizar discricionaridades ou até mesmo arbitrariedades. E daí o pânico dos trabalhadores dos quiosques.

No dia 27 o prefeito editou novo decreto, com redação esclarecedora, revogando expressamente o anterior. Mas valeu o alerta. De vez em quando é preciso relembrar que a vida coletiva demanda restrição a interesses privados em proveito dos interesses coletivos ou sociais. Se cada qual quisesse conduzir seu carro no sentido que o nariz lhe aponta, nenhum de nós sairia do lugar. A imobilidade seria total.

Copacabana é um bairro ímpar. Mas por vezes é impossível andar no calçadão dada a quantidade de tapetes, toalhas e cangas espalhadas com mercadorias expostas, por trabalhadores ambulantes que não deambulam. Na ciclovia às vezes é pior. Mães com carrinhos de bebê reborn, cachorros conduzidos por seus tutores, ciclomotores, bicicletas elétricas e patinetes infernizam a vida de quem deseja pedalar. Quem mora na orla tem a necessidade de janelas antirruído, em razão dos carros tunados com alto-falantes amplificados nos domingos e feriados e outros sons que se socializam sem a demanda dos demais ouvintes. Na pista fechada para uso dos pedestres se locomovem os ciclistas. Alguns quiosques se pretendiam casas de espetáculo ou salões de festa, sem preocupação com o sossego da vizinhança. Só isto!

A cada quinze dias no quiosque da Maria Alice, o Espaço A, em frente ao número 974 da Avenida Atlântica, das 11h00 ao meio-dia, um tema é exposto por um filósofo, cientista social ou escritor e debatido entre os presentes. O decreto originário chegou a perturbar alguns que frequentam a atividade cultural. Mas a ela não se destinava. Assim, hoje, teremos conferência do professor Carlos Frederico Gurgel, sobre “A consolação da filosofia”, de Severino Boécio, escrita por volta do ano 524. Trata-se da mais importante obra filosófica do Ocidente até o início da Renascença.

Estive com o Secretário Municipal de Ordem Pública, Brenno Carnevale, rimo-nos do alvoroço imotivado e lembramos que o decreto do prefeito funcionou tal como o sino da igreja que toca não para os fiéis, que sabem a hora da missa, mas para lembrar, àqueles que andam faltando, que o templo ainda existe. O decreto apenas rememorou que as atividades em público se subordinam ao interesse público.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 31/05/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/05/7065666-joao-batista-damasceno-filosofa-na-praia-copacabana-e-choque-de-ordem.html


Monteiro Lobato, Bacharelismo e o povo brasileiro

terça-feira, 27 de maio de 2025

SAÚDE MENTAL DOS POLICIAIS: O SILENCIOSO PROBLEMA DA SEGURANÇA PÚBLICA

 SAÚDE MENTAL DOS POLICIAIS: O SILENCIOSO PROBLEMA DA SEGURANÇA PÚBLICA[1]

 A questão da saúde mental dos policiais: o silencioso problema da segurança pública é questão que deve ser objeto de todos quantos queiramos uma sociedade pautada por padrões de bem-estar.

Não poderemos falar em tranquilidade e bem-estar se aqueles que velam pela nossa segurança não gozarem, previamente, de tal estado.

A questão da saúde dos profissionais da área de segurança é preocupante. E não me refiro tão somente aos cuidados médicos em face de doenças físicas ou acidentes. Mas sobretudo às doenças neuropsíquicas decorrentes das condições de trabalho. E para produzir um doente psíquico ou um suicida nada melhor que condições inadequadas de trabalho. E é somente isto o que abordarei.

Durante muito tempo estudei a questão da violência e dos grupos de extermínio na Baixada Fluminense, onde fui juiz por 18 anos, anteriormente chamados de Esquadrão da Morte, Mão Branca, Justiceiros e outros nomes que eram dados ao mesmo fenômeno. Mas aprofundando a questão e indo às suas origens pude constatar que o problema estava num tipo de política de segurança fundada na violação aos direitos humanos, de cidadãos e dos próprios agentes do Estado designados para sua execução.

E a origem remota foi um grupo de homens autorizados pelo General Amaury Kruel, que dirigiu o Departamento Federal de Segurança Pública de 1957 a 1959 nesta cidade, a combater - à margem da legalidade - os crimes dos outros.

Todos os que se embrenharam na execução das ilegalidades acabaram adoecidos ou descartados pelo poder a que serviram. Mas muitos dos que não prestaram tais serviços igualmente adoeceram por preterições em suas carreiras ou pelas inadequadas condições de trabalho.

Ainda hoje no Rio de Janeiro a bravura, com risco da própria vida e dos cidadãos, é motivo para a rápida ascensão funcional em preterição aos que empregam a inteligência.

A inadequada condição de trabalho do agente de segurança decorre não somente da sua colocação em situação de risco de vida, mas também em situação de afastamento de uma vida saudável ou de uma vida com abundância.

Condições de trabalho adequadas e a promoção do bem-estar são essenciais para um ambiente laboral saudável.

Bem-estar no trabalho refere-se à preocupação com a saúde mental e emocional dos trabalhadores, incluindo: 

1.       Um ambiente de trabalho que valorize a atividade desenvolvida, a carreira, a saúde mental e física dos trabalhadores policiais;

2.       Prevenção de riscos psicossociais, por meio de identificação de possibilidade de danos decorrentes do estresse ou das exposições impróprias que possam afetar a saúde mental;

3.       A oferta de apoio psicológico e programas de bem-estar que contribuam para a saúde dos trabalhadores policiais;

4.       Treinamentos sobre saúde mental e gestão do estresse que possam ajudar a lidar com os desafios do trabalho; 

5.       Promoção do equilíbrio entre vida pessoal e profissional.

Fui por algumas vezes titular em varas de interdição de incapazes, adoecidos por problemas psíquicos. E lidei com pessoas com problemas neurais (físicos), doenças mentais (transtornos mentais) e com transtorno da personalidade antissocial (psicopatia ou sociopatia).

A sociopatia foi o que mais me impressionou em minha atividade profissional, como juiz de interdição. A sociopatia é um transtorno de personalidade caracterizado por um padrão persistente de desrespeito e violação dos direitos dos outros. É frequentemente associado a comportamentos antissociais, falta de empatia, falta de remorso e dificuldade em seguir as regras sociais. 

Uma política de segurança que estimula a operacionalidade em desfavor da inteligência é propicia ao adoecimento dos agentes do Estado, proporcionando-lhes um quadro caracterizado por:

1.       Falta de empatia: Dificuldade em entender e compartilhar os sentimentos dos outros. 

2.       Falta de remorso: Não se sentir culpado ou arrependido por ações prejudiciais a terceiros.

3.       Manipulação: Utilizar estratégias para controlar e influenciar os outros. 

4.       Comportamento antissocial: Desrespeito por normas sociais e leis. 

5.       Ausência de culpa: Não se sentir culpado ou responsável por suas ações. 

6.       Narcisismo e egocentrismo: Foco excessivo em si mesmo e em suas próprias necessidades. 

7.       Desinibição e ousadia: Falta de medo ou preocupação com as consequências de suas ações.

Quaisquer dessas características acima podem decorrer de um ambiente inadequado para o trabalho. E precisamos evitar que os agentes do aparato de segurança do Estado sejam adoecidos nos seus ambientes de trabalho.

Além deste adoecimento, um caso grave em relação à saúde dos agentes de segurança é o suicídio, lamentavelmente crescente nas fileiras das diversas corporações estatais (policiais militares, policiais civis, bombeiros militares, policiais penais e guardas municipais).

O número de casos de suicídio tem crescido em todo o mundo, em razão da crise do mundo do trabalho, mas nos países periféricos muito mais. E dentre profissionais da área de segurança muito mais ainda.  Segundo a OMS, o ato de tirar a própria vida “é um problema complexo, para o qual não existe uma só causa nem uma só razão”, resultado de uma “complexa interação de fatores biológicos, genéticos, psicológicos, sociais, culturais e ambientais”.

Se o trabalho nem sempre é fonte de prazer e realização pessoal, não pode ser um ambiente que se transforme em fator de risco à saúde psicofísica que possa causar danos psicológicos, sociais e físicos ao próprio trabalhador ou à sociedade.

Nossa jurisprudência sedimentou-se no sentido de que não é improvável a ideação suicida por parte do trabalhador em razão das variadas formas de pressão psicológica que sofre no ambiente laboral, havendo casos em que se pode se caracterizar como evento equiparado a infortúnio trabalhista.

As normas legais consideram como acidente de trabalho não apenas aquele ocorrido no local e horário de trabalho que cause lesão, mas também diversos outros eventos, alheios ao local e ao horário de serviço, desde que com estes relacionados. Assim, os eventos danosos vinculados ao trabalho são equiparados a acidente de trabalho ou doença ocupacional.

Por isso é preciso estabelecer o correto enquadramento da sociopatia, causadora de insegurança, como doença propiciada pelas condições do trabalho policial.

Não há dúvida que os transtornos mentais adquiridos em ambiente de trabalho nocivo podem levar aos males acima descritos, em prejuízo dos próprios trabalhadores do campo da segurança pública e da sociedade.

O Estado tem o encargo de promover a proteção à saúde psicofísica do trabalhador policial. O descumprimento dos deveres gerais ou específicos de proteção, prevenção e segurança em relação aos trabalhadores que se colocam sob suas ordens e comandos gera a responsabilidade pelos danos que causarem a si próprios ou a terceiros.

Cuidar da saúde do trabalhador policial, em todas as suas esferas, há de ser uma obrigação do Estado e uma preocupação de toda a sociedade, a fim de poder exigir a segurança que almeja.

Assim, parabenizo a OAB/RJ, na pessoa de sua presidenta, Dra. Ana Basílio, pela instalação dessa Comissão Especial da Segurança dos Direitos dos Policiais Civis e Militares da OAB/RJ, presidida pelo Dr. Orlando Zaccone, que é o primeiro passo na preocupação social com a saúde do trabalhador policial.

 

João Batista Damasceno, desembargador no TJRJ e professor de Sociologia Jurídica da UERJ.



[1] Manifestação durante a instalação da Comissão Especial da Segurança dos Direitos dos Policiais Civis e Militares da OAB/RJ, no dia 27/05/2025 na sede da OAB/RJ.

sábado, 17 de maio de 2025

A imortalidade de Miriam Leitão



Não formularei juízo de valor sobre a eleição de Miriam Leitão para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Miriam, jornalista das empresas Globo, foi eleita para a cadeira 7 da ABL no dia 30 do mês passado, ocupando a vaga deixada por Cacá Diegues. Recebeu 20 votos. Seu concorrente Cristovam Buarque, ex-reitor da UNB, ex-presidente do Conselho dos Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB), ex-governador do DF, ex-senador e ex-ministro da Educação recebeu 14 votos. A eleição chegou a ser justificada pelo aumento da representatividade feminina na instituição, que agora conta com cinco acadêmicas. A genial poeta Cecília Meireles foi a primeira mulher a ser premiada pela ABL. Mas nela não ingressou; era cigana.

Foi ampliado o poder da bancada de jornalistas da Globo na instituição presidida por Merval Pereira. Miriam é mineira, da cidade de Caratinga, MG, a mesma de Ziraldo, Agnaldo Timóteo e do acadêmico Ruy Castro. É filha de um pastor protestante que, na direção de uma escola, possibilitou outra educação que não a dos padres da cidade, embora igualmente confessional. Até 1759, quando expulsos por Marquês de Pombal, os Jesuítas cuidavam da educação no Brasil. No século XX as diferentes igrejas passaram a disputar o poder educacional. Assim, tanto a Igreja Católica quanto as instituições protestantes criaram escolas para formar fiéis. E o reverendo protestante pai da Miriam o fez, brilhantemente.

Se a eleição na ABL foi orientada por critério identitário, alguma coisa está fora do lugar. Não sei o que Machado de Assis acharia disso. O identitarismo como critério precisa ser repensado. Vários grupos demandam representação e são legitimados, mas outros sequer são cogitados. Embora todas as instituições tenham em seus quadros integrantes de pequena estatura, nenhuma se dispõe a ampliar seus quadros com a oferta de vagas a pessoas de pequena estatura física, notadamente os anões. Reporto-me aos anões por dois motivos: o primeiro é literário porque, em se tratando da ABL, é preciso lembrar que os anões povoam a literatura nórdica e germânica; e o segundo é cordial, numa referência ao meu amigo André Pestaninha, assassinado em 2016 nesta cidade do Rio de Janeiro sem que até hoje a polícia tenha esclarecido o crime.

André Pestaninha foi o anão que liderou uma campanha para que houvesse telefones públicos (orelhões) em altura que pudessem usar, assim como as crianças. A TELERJ o atendeu. André Pestaninha nunca aceitou ser qualificado por outro termo e por isso a ele não me refiro com outros vocábulos. Ele dizia que era anão e que queria apenas acessos compatíveis com sua condição, sem privilégios ou palavras que não o ajudavam.

As cidades não têm responsabilidade pelo que fazem seus filhos. Carangola, MG, minha cidade natal, teve juízes de matizes diversas, dentre os quais o ministro Victor Nunes Leal, do STF, e a juíza Denise Frossard, além de outros e outras. Mas se manteve longe do poder eclesiástico e recusou abrir espaço para a instalação do bispado, que certamente influiria nas relações sociais locais. Mas Caratinga, terra da nova imortal, não! Na década de 20 do século XX ganhou o bispado.

Em 1938, Dom João Batista Cavati foi nomeado bispo Diocesano de Caratinga, ficando no cargo até 1956, quando renunciou. O motivo da renúncia não foi esclarecido. Deu nome ao distrito de Caratinga, criado em 1948, que emancipado em 1962 mantém o nome de município de Dom Cavati. Somente em 1987 Dom Cavati faleceu, na sede da Diocese de Caratinga, com grande prestígio dentre seus pares e muita influência nas decisões locais e é lembrado como o Bispo das Vocações Sacerdotais e das Escolas Católicas.

O contraponto ao educador católico na cidade foi o Reverendo Uriel de Almeida Leitão, pai da nova imortal, que em 1943 proferiu entusiasmado discurso no Ginásio Caratinga, falou sobre as finalidades da educação na sociedade e assumiu a instituição como seu Diretor Geral. O Reverendo Uriel se estabeleceu no ramo da educação privada e a cidade viveu o embate entre os ensinos religiosos com fundamentação católica ou protestante.

Com o golpe empresarial-militar de 1964 a primeira lei de diretrizes e bases da educação nacional, formulada por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, promulgada em 1962, foi desnaturada. Assim, em 1968, entrou em vigência a “Reforma Universitária”. A partir dos anos 1970 foram estimulados os cursos superiores privados. Em 1971, o coronel-ministro Jarbas Passarinho implantou reforma educacional no ensino correspondente aos níveis fundamental e médio. Houve aumento do número de concluintes do ensino médio, demanda por curso superior e a instituição do Reverendo Uriel instalou a Faculdade de Ciências Contábeis de Caratinga. Depois criou os cursos de Serviço Social, Ciência da Computação, Comunicação Social e Direito. Em 2000 as cinco faculdades compuseram as Faculdades Integradas de Caratinga e desde 2004 é o Instituto Doctum de Educação e Tecnologia.

Ganhou a eleição na ABL a filha do Reverendo Uriel, fiadora da Operação Lava Jato, cujo filho foi o escriba da atuação politizada do “principado de Curitiba”. Perdeu a eleição da ABL um professor, um educador, um homem das letras, que tem como referência teórica Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Paulo Freire e, tal como estes, tem uma vida dedicada à educação pública, universal, gratuita e laica

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 17/05/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/05/7057385-joao-batista-damasceno-a-imortalidade-de-miriam-leitao.html

 

sexta-feira, 2 de maio de 2025

A cassação do deputado Glauber Braga

É certa a cassação do deputado Glauber Braga pela Câmara dos Deputados. Sempre que os direitos das minorias ou dos indivíduos são entregues aos sentimentos contrariados da maioria, aqueles são sacrificados. Na história há registros emblemáticos do que é capaz a maioria insatisfeita, dentre eles os julgamentos do filósofo grego Sócrates e de Jesus Cristo. Em ambos os casos a maioria enfurecida sacrificou a vida dos inocentes.

O deputado Glauber Braga é acusado de haver expulsado um provocador que há muito tempo o perseguia e que num determinado dia, no âmbito das dependências da Câmara dos Deputados, ofendia sua mãe que se encontrava no leito de morte. Em defesa da honra da mãe, o deputado expulsou o provocador da casa parlamentar que desrespeitava e na saída deu-lhe um chute na bunda. A acusação é de exercício de violência no recinto parlamentar e, portanto, quebra do decoro parlamentar. Mas tal Casa nunca foi tão intransigente com essa questão. Está mais que evidenciado o exercício regular de direito ou a legítima defesa da honra de terceiro. No caso, a honra da mãe do deputado. Ela morreu dias depois do episódio.

Tanto o exercício regular de direito ou a legítima defesa são causas de exclusão da ilicitude da conduta. Aquele que pratica fato previsto como crime, diante de causas excludentes de ilicitude, não comete crime. Comete o fato hipoteticamente definido como crime, mas crime não é porque se trata de conduta lícita. O médico que faz uma incisão cirúrgica num paciente, causando uma cicatriz, não pode ser acusado de lesão corporal. Isto porque a lesão causada está respaldada pelo exercício regular de direito, que é outra excludente de ilicitude da conduta.

Já tivemos ocorrências no âmbito da Câmara dos deputados e do Senado Federal de efetiva gravidade que jamais mereceram qualquer manifestação de censura aos autores. O deputado Arnon de Mello, pai do ex-presidente Fernando Collor de Mello, disparou tiros contra o senador petebista Silvestre Péricles, atingindo e matando o senador José Kairala. Apesar do assassinato, e ainda que tenha sido dentro do Senado Federal, na presença de inúmeras autoridades, Arnon de Melo não teve qualquer punição imposta pela Mesa Diretora. Em data recente, no âmbito do Congresso Nacional, um deputado fazia apologia à tortura e ao Coronel Brilhante Ustra, dirigente de centro de tortura reconhecido por uma de suas vítimas a deputada e atriz Bete Mendes. Igualmente não houve sequer submissão ao Conselho de Ética.

O problema não é o fato, ainda quando seja grave. Mas quem o pratica ou quem foi atingido pelo comportamento anterior do acusado. Cristo não foi crucificado porque curava no sábado ou perdoava prostitutas e publicanos corruptos. Mas porque acusava os sacerdotes de transformarem o templo em casa de comércio. Angariou a antipatia do alto clero, que insuflou o baixo clero e a massa.
No julgamento de Cristo o mais indignado era o Sumo Sacerdote, Caifás. Para disfarçar sua falta de seriedade fez cara sisuda e para convencer o povo a libertar Barrabás e levar Cristo à crucificação, teatralmente, rasgou as próprias vestes. Os discursos indignados dos acusados de improbidade geralmente decorrem de retórica para convencimento, sem racionalidade. Quem tem razão pode fazer a demonstração com o passo a passo do raciocínio. Não precisa de retórica acalorada.

No caso do julgamento de Cristo, o sumo sacerdote, com sua retórica e teatralidade, acirrou o sentimento da maioria contra o acusado. No caso do deputado Glauber Braga, depois da Comissão de Ética foi a vez da Comissão de Constituição e Justiça aprovar o julgamento feito pelo Pleno da Câmara dos Deputados. O baixo clero, oriundo dos grotões, que domina a cena parlamentar, não perdoará quem o acusa de malversação de verbas orçamentárias. Glauber será cassado e por suas virtudes.

A indignação de certos parlamentares com o deputado Glauber Braga é notável. Alguns são capazes de rasgar as próprias vestes para demonstrá-la. Ele vem denunciando as emendas secretas pelas quais seus pares no Congresso Nacional direcionam recursos do orçamento para suas bases eleitorais a fim de serem geridas pelas autoridades locais. Quem conhece o poder local no Brasil sabe o quanto essas verbas são relevantes para realização de festas diversas, muitas das quais superfaturadas. Rodeios, cavalgadas, shows sertanejos, contratação de bandas locais e muitos outros modos de gastos de verbas advindas de emendas do orçamento da União fazem a alegria de cabos eleitorais nos grotões, de quem é contratado e de quem recebe as `rachadinhas´. Isto sem contar as obras públicas, muitas das quais já veem com destinatário certo e onde o procedimento licitatório é mera formalidade para prestação de contas. Além disto, tem também as destinações a entidades declaradas de interesse social, que na verdade são entidades `pilantrópicas´. O ralo pelo qual se esvai o dinheiro público, por meio de emendas parlamentares secretas, é na verdade um bueiro.

A CPI dos Anões do Orçamento demonstrou, nos anos 90 do século XX, como agiam os que manipulavam o orçamento da União. Tal investigação não cessou com a prática. Ao contrário, a divulgou a ensinou a outros o caminho pelo qual poderiam trilhar rumo ao patrimonialismo. O Brasil tem jeito. Mas não será com pulverização de recursos federais para garantia de governabilidade. Pelo menos a sessão Plenária da Câmara dos Deputados que cassará o deputado Glauber Braga será pública, com voto aberto, e assim poderemos saber quem tem interesse no orçamento secreto com destino de verbas em envelopes fechados.

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 03/05/2025, pag. 15. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/05/7049201-joao-batista-damasceno-a-cassacao-do-deputado-glauber-braga.html

sábado, 19 de abril de 2025

Glauber Braga e greve de fome

O espelho no qual nos vemos nem sempre reflete o que somos. A formação social brasileira decorreu da usurpação das terras dos povos originários, a pilhagem das suas riquezas e a eliminação daqueles que se opunham à sanha predatória. Gilberto Freire, autor que os que não o leram tentam cancelar, nos indica que a religião foi um fator de unidade nacional. No momento da colonização do Brasil, na Europa ardiam as fogueiras onde eram colocadas mulheres consideradas bruxas e homens chamados de hereges. A eliminação dos indesejáveis foi exportada para o Novo Mundo. Utilizando-se das brigas religiosas na África, os colonizadores declararam os vencidos adquiridos como se mercadoria fossem e os trataram como corpos sem alma, não sujeitos à cristianização.

Desde o século VII, o processo de islamização da África vinha promovendo a transformação de seres humanos em mercadorias. Os animistas, escravizados pelos africanos convertidos ao islamismo, eram, desde aquele século, castrados no Egito e vendidos para o Oriente Médio. Não se tem na história registro de que pessoas tenham sido transformadas em mercadoria, embora a história do mundo do trabalho, até o surgimento do capitalismo, seja de trabalho forçado. O Sudão do Sul, mais novo país do mundo, criado em 2010, é parte desta história. Darfur, à leste do Sudão, foi a região de onde saíram as primeiras pessoas convertidas em mercadoria e até hoje seu povo vive sob a ameaça de genocídio.

A eliminação do outro, física ou moralmente, é componente da formação social brasileira. O feminicídio, o assassinato de homossexuais, a violência contra os pobres e pretos e a constante ameaça à vida dos povos indígenas no Brasil é expressão desta concepção. Mas nos consideramos um povo amavelmente cordial e receptivo, esquecendo os horrores da escravidão e outras formas de opressão e violência difundidas e naturalizadas entre nós.

Quem resiste à violência é tratado como incivilizado. Dos oprimidos deseja-se que tolerem com paciência a violência lhes dirigida. O poeta escreveu que dizem violentas as águas do rio que tudo arrasta, mas não dizem violentas as margens que o oprime. A violência que permeia o nosso dia a dia visa à apropriação de bens e à eliminação de quem contraria interesses espúrios. Não temos registro, no Brasil, de revoltas das oligarquias pelas liberdades. Todas as “revoluções brasileiras” foram motivadas pela recusa de pagamento de impostos. Apenas as revoltas populares lutaram por liberdade, mas foram esmagadas pelo poder. Palmares, Canudos, Revolta da Chibata e Contestado são exemplos de levantes populares esmagados pelas oligarquias econômicas, políticas e militares. Nossa história é uma história construída com sangue popular.

Quem anda caminho do cadafalso é o jovem deputado Glauber Braga. E quem o ameaça é a própria instituição para a qual foi eleito pelo voto popular, a Câmara dos Deputados. Seus colegas se dispõem jogar o desafeto ao mar, mesmo que isto implique a própria credibilidade da instituição parlamentar. Glauber Braga cometeu a imprudência de denunciar as emendas secretas ao orçamento da União, cuja prática - ofensiva à moralidade pública -, foi explicitada na CPI dos Anões. Por meio de emendas parlamentares, agora secretas, bilhões do orçamento podem ser desviados para as oligarquias locais e gastos com destinatários determinados, ao arrepio do interesse dos cidadãos. Por vezes verbas públicas podem ser direcionadas para enriquecimento de dirigentes de entidades ‘pilantrópicas’.

Os rumos que o processo de cassação segue, embora adiado, indica a eliminação do seu mandato e sua inelegibilidade. A acusação é de que teria violado o decoro parlamentar e chutado a bunda de um provocador que ofendia sua mãe, que se encontrava no leito de morte. Se inexistisse este fundamento poderia ser acusado de não ter se barbeado para comparecer ao Plenário. Os desejosos de sua cassação acolheriam como grave esta ou qualquer outra acusação.

A lógica dos julgamentos das minorias ou de indivíduos pela maioria contrariada e enfurecida é a mesma lógica do linchamento, pois não respeita os direitos fundamentais da pessoa humana, esculpidos na Constituição como garantia contra mesquinhos e momentâneos sentimentos persecutórios. Tanto Sócrates quanto Cristo foram julgados por coléricas maiorias circunstanciais. Isto haveria de nos ter ensinado alguma coisa.

A desproporcionalidade da pena com a qual se ameaça Glauber Braga haverá, se imposta, de ser revista pelo judiciário. Jamais houve cassação de parlamentar por atos de violência no âmbito do Congresso Nacional, nem mesmo quando se tratou de violência ilegítima. Nem o assassinato de um senador no plenário do Senado Federal, por outro senador, implicou na cassação do homicida. Um oleiro disse ao poderoso Imperador Frederico Guilherme da Prússia, que lhe ameaçava subtrair um bem: “Ainda há juízes em Berlim!”. Sem justiça as sociedades afundam na vilania. E hoje podemos dizer que ainda há juízes no STF.

Diferentemente do que os seus acusadores esperavam, o deputado Glauber Braga não se silenciou, tal como Cristo fez perante Pilatos, nem suplicou por clemência ante tortura a lhe ser infringida. Ao contrário, iniciou uma greve de fome e denunciou os horrores de um processo injusto, porque afastado dos princípios que regem uma sociedade democrática, republicana e norteada pelo Estado de Direito. O Deputado Glauber Braga defendeu a honra de sua mãe e quem tem mãe sabe honrá-la. Fez greve de fome contra a ilegalidade e, abraçado pela sociedade, a interrompeu. Esperamos que não haja motivo para sua retomada e que a Câmara dos Deputados e o Brasil tome novos rumos. Ninguém há de viver com a espada de Dâmocles sobre suas cabeças.


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 19/08/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/04/7041465-joao-batista-damasceno-glauber-braga-e-greve-de-fome.html

terça-feira, 15 de abril de 2025

OS JORNALISTAS E A INTERPELAÇÃO CRIMINAL


 OS JORNALISTAS E A INTERPELAÇÃO CRIMINAL


*João Batista Damasceno


Hoje, 07 de abril de 2025, rememoramos a derrubada de D. Pedro I, ocorrida na mesma data em 1831. O fato histórico, conhecido como Dia da Abdicação, na verdade se refere a uma deposição de um Imperador que a cada dia mais se aproximava de setores conservadores ou reacionários e demonstrava sua postura autoritária enquanto perdia prestígio social. Para o fato histórico foram imprescindíveis as atuações dos jornalistas Evaristo da Veiga e Líbero Badarò. Este foi assassinado dias após completar 31 anos e morreu dizendo: "Morro defendendo a liberdade". Nem um, nem outro tinham formação em jornalismo, comunicação social ou qualquer outro curso superior equivalente. Eram jornalistas, "sem diploma" por dois motivos: 1) No Brasil tínhamos os cursos de Engenharia, Direito e Medicina. Estes instituídos em 1827. Inexistiam cursos para se apurar fatos, descrevê-los em jornais ou expressar opiniões, e 2) Tal como hoje, inexistia lei que impusesse exigência de diploma para o exercício da comunicação social. Esta se rege pelos princípios próprios da liberdade de expressão, seja na mídia corporativa, nas mídias sociais ou em qualquer lugar onde inexista cerceamento às liberdades.

Assassinam-se muitos jornalistas mo Brasil ou simplesmente os calam por outros meios. A liberdade de comunicação tem sido a cada dia mais atacada. E um dos meios para o cerceamento é o lawfare, que se traduz no uso do Direito como instrumento de guerra ao desafeto considerado inimigo a ser eliminado ou silenciado. Quando não há fundamento para se instaurar diretamente um processo criminal não é incomum a utilização da interpelação criminal para silenciar o opositor sobre fato que o dever de transparência imporia esclarecimento.

A interpelação criminal é um procedimento preparatório para o ajuizamento de uma ação penal. Está prevista no Código penal e serve, de modo geral, para preparar e instrumentalizar uma futura ação penal.

A interpelação judicial é um instrumento previsto no Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40), mais especificamente no art. 144 do Capítulo V, que trata dos crimes contra a honra.

Enquanto procedimento especial de jurisdição voluntária, que antecede a fase contenciosa (propositura de ação penal), a interpelação pode servir para pedir esclarecimentos que servirão de subsídio em ação futura. Igualmente atua como prova de ciência da parte interpelada. 

A interpelação criminal é um procedimento preparatório para o ajuizamento de uma ação penal e somente pode ser utilizada quando houver ambiguidade ou equivocidade em frases ou expressões que – esclarecidas por quem se acredite ser um ofensor - possam caracterizar crime contra a honra.

É evidente a necessidade de compreender quando cabe, como se aplica e de que forma se elabora uma interpelação judicial.

Há controvérsia sobre a recepção da interpelação criminal ante a Constituição de 1988. Se há dúvida sobre a prática da conduta criminosa, por ofensa a honra, não há que se falar de crime. Afinal, havendo dúvida há de se decidir a favor do acusado. E, no caso, se dúvida há sobre o crime contra a honra não há que se falar em esclarecimento pelo próprio ofensor a fim de que venha a ser processado. Se há dúvida por quem se sentiu ofendido sobre a presença dos elementos ou requisitos para a propositura de uma ação penal privada, nos casos de crime contra a honra, é porque não há crime.

A interpelação criminal tem servido para admoestar, constranger ou censurar quem tenha se expressado e não tenha – efetivamente – praticado crime.

Durante a vigência da Lei de Imprensa, que cerceou a liberdade de expressão a ponto de exigir diploma para a atribuição da qualidade de jornalista a profissionais que atuavam na imprensa, era comum a interpelação a jornais e a profissionais da imprensa para que explicassem o que teriam dito. Em regra, os jornalistas se silenciavam a fim de não dar fundamento a perseguição por meio da ação penal.

Os crimes contra a honra são praticados contra pessoas físicas. Inexiste honra numa pessoa jurídica. Mas hoje até pessoas jurídicas têm utilizado a interpelação judicial para constranger quem com seus dirigentes tenha qualquer tipo de divergência. O fascismo está em ascensão e não é apenas nos espaços designados como império da direita.

A interpelação criminal diz muito mais sobre o interpelador que à conduta do interpelado. Em regra, é feita por quem deseja o silenciamento sobre determinado tema ao invés de esclarecê-lo diante da crítica ou afirmativas de quem se pretenda processar para calar.

Apenas o espírito persecutório, afastado dos princípios que orientam as democracias e o pluralismo, utiliza tal ferramenta no debate político e no âmbito das instituições onde há de reinar o pluralismo.

 

*João Batista Damasceno exerce a função de Desembargador no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), é doutor em Ciência Política (UFF) e professor no Departamento de Teoria e Fundamentos do Direito da  Faculdade de Direito da UERJ.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Ponte para o passado

 

No dia 01 de abril rememoramos os 61 anos da ditadura empresarial-militar que subordinou os interesses do povo brasileiro ao capital internacional, reservando-nos o papel de fornecedores de recursos naturais para os países centrais do capitalismo. Os militares foram usados e bem remunerados para impedir nosso desenvolvimento autônomo. Desde o golpe da Proclamação da República os militares se portam como tutores do Estado e da sociedade. Anistias não os domesticam. Após tentativas de golpe no ex-presidente JK, os anistiados reincidiam. Relembrados de suas lambanças sugeriam não mexer com feridas em cicatrização. O que sangra é a sociedade e suas instituições democráticas por ação de gorilas. Por isso não se pode renunciar à memória, à verdade e à justiça.

Aqueles que atentavam contra a democracia ao tempo de JK também o fizeram com o ex-presidente Jango, desde que fora ministro do trabalho. Jango, conciliador, depois do manifesto dos coronéis em 1954, entregou um filho, para batismo, ao general Amaury Kruel. Este, traidor, não se vexou de colocar o II Exército em prol da destituição do compadre em 1964.

As trevas que se estenderam sobre o país em 1964, acentuada com o AI-5 e durante a Administração Médici, foram debeladas pela sociedade na medida em que se reorganizou. Durante a Assembleia Nacional Constituinte o que mais se ouvia era que os militares não aceitariam isto ou aquilo. Elaborada a Constituição, os constituintes partidários do presidente Lula não a assinaram. O presidente ainda não se dispusera ao papel de gerente da ordem iníqua e dizia não negociar com princípios, submeter-se a conjunturas e limitar-se tão somente ao possível. Posteriormente mudou e lhe pavimentaram o caminho para o Palácio do Planalto.

Mas a presidenta Dilma teve a ousadia de criar e instalar a Comissão Nacional da Verdade (CNV) gerando sua incompatibilidade com as vozes contidas na escuridão dos porões dos quartéis. Após a destituição da presidenta, buscou-se aprofundar o golpe. A intervenção federal no Rio de Janeiro, em 18 de janeiro de 2018, com designação do general Braga Neto para interventor, foi o passo seguinte. A intervenção federal teve motivação nacional e foi pensada pelo então Presidente da República com apoio do presidente da Câmara dos Deputados e cúpula das instituições nacionais.

O que estava em jogo era a saída da crise política causada pela Operação Lava Jato que deixou as instituições desnudadas e mostrou à sociedade como os donos do poder usam as instituições para manutenção dos seus negócios, colocando os mandatários a seus serviços. A Operação Lava Jato se ampliara para além do tolerável pela classe dominante.

Em razão da CNV, os militares não só se incompatibilizaram com a presidenta Dilma, mas também com o presidente Lula e seu partido. Desde 2016 o general Mourão discursava contra as eleições em 2018. E por isso foi mandado para a reserva. Dizia ele que a saída da crise era a volta ao regime de 1964. Em 2018 acreditava-se que uma intervenção piloto no Rio de Janeiro, para servir de alerta aos demais estados, e a prisão do presidente Lula, com impedimento de sua participação nas eleições daquele ano, poderia ser a pavimentação do caminho para o retrocesso que desejavam.

O movimento que atentou contra o Estado de Direito, a democracia e suas instituições atingiu seu apogeu em 08 de janeiro de 2023. Mas começou a se estruturar bem antes. Os palermas nas portas dos quartéis do Exército eram apenas instrumentos de um projeto político gestado no seu interior. E por isso recebiam apoio da caserna: acampavam em área militar, sem serem incomodados, e tinham fornecimento de água, luz e banheiro fornecidos pelos comandantes.

A intervenção no Rio de Janeiro em 2018 parecia ser uma questão local fluminense, mas era um projeto piloto acenando o que poderia ocorrer em todo o país, conforme discurso do interventor Braga Neto. O impeachment da presidenta Dilma, a prisão do presidente Lula, a intervenção no Rio de Janeiro, o atentado à Marielle no 24º dia de sua implementação e a tentativa de golpe de 8 de janeiro são desdobramentos da mesma articulação contra a democracia e o Estado de Direito. E não foi coisa de militares isolados. Tratou-se de uma proposta do Exército Brasileiro, encampada por setores retrógrados da sociedade.

A intervenção de 2018 era foi projeto para impedimento das eleições de 2018, se o presidente Lula pudesse concorrer e vencê-las, o que ocorreria; foi um ensaio para a saída da crise política e garantia das eleições de 2018, com o afastamento do presidente Lula da disputa. Sem o presidente Lula na disputa podia ocorrer eleições. Daí a inclusão em pauta de julgamento do habeas corpus do presidente antes do julgamento das Ações Diretas de Constitucionalidade nº 43, 44 e 54 tratando da prisão antes do trânsito em julgado. Julgou-se o caso concreto e encarcerou-se o presidente antes do estabelecimento da regra, restabelecida posteriormente às eleições e colocado em liberdade.

Quem mandou matar Marielle, tal como os que colocaram bombas pela cidade, inclusive no Riocentro, desejavam interceptar o processo democrático. Sua execução visava a criar o caos e favorecer o aprofundamento da repressão e suspensão das garantias constitucionais. Mas tal como no Caso Riocentro não foi coisa pessoal. No dia 08 de janeiro o Ministro da Defesa alegou que os militares que participaram do atentado à democracia o fizeram com seus respectivos CPFs e não envolvia o CNPJ da instituição. Nada do que se descreve foi coisa de militares individualizados. Houve apoio institucional. É preciso rememorar que o chefe de polícia nomeado pela intervenção era um delegado de política oriundo das Forças Armadas, condição que lhe conferia a confiança necessária para aquele projeto, em razão do qual está preso.

Muito já foi esclarecido sobre o impeachment da presidenta Dilma, da prisão do presidente Lula e da execução da vereadora Marielle Franco. Resta apurar e publicizar as reais motivações para a execução da saudosa amiga e vereadora carioca.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 05/04/2025. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/04/7033006-joao-batista-damasceno-ponte-para-o-passado.html


sábado, 22 de março de 2025

HOMICÍDIOS CAMUFLADOS

Num prédio na Avenida Pasteur, em Botafogo, há mais de 30 anos, um porteiro foi além de suas funções e passou a aferir as despesas realizadas pelo síndico. Detectada malversação contou para os moradores o que sabia. Foi pior que atiçar um formigueiro. Os moradores ficaram em polvorosa. O síndico, um militar reformado, era um homem sisudo, que mantinha fixada, desde o Governo Médici, no lado interno do vidro frontal do apartamento, uma bandeira do Brasil, com os dizeres: “Brasil! Ame-o ou deixe-o”. Soberbo e defensor intransigente de valores como Deus, pátria e família sentiu-se humilhado e acuado. O porteiro se tornou prestigiado e pensava ter adquirido estabilidade vitalícia no emprego.

Destituído do cargo de síndico, cultivou o ressentimento contra os vizinhos, mas sobretudo contra o porteiro. O ex-síndico se transformara num capacho e o porteiro numa soberba ambulante. Inverteu-se a hierarquia social. Sem aviso prévio, em certo dia, o ex-síndico descarregou o revólver no porteiro. O homicida era locatário de um pequeno apartamento em Copacabana, para onde fugiu.

Mas descoberto foi levado à delegacia – sem mandado ou prévia intimação – e alguns policiais ficaram no apartamento para investigar existência de outras ilicitudes. Não tendo sido preso em flagrante, prestou depoimento e voltou ao apartamento de Copacabana, onde disse ter constatado a subtração de relógios de luxo e outras joias. Para a imprensa não falou do homicídio que praticara, mas não poupou palavras para denunciar o furto de suas joias. Tampouco quis responder se o apartamento de Copacabana era uma “garçoniere” mantida por tão ferrenho defensor de valores tradicionais. Qualificava a subtração das joias como roubo, porque fora retirado do apartamento e levado para a delegacia sob a mira de armas.

O homicídio deixou de ser o tema abordado pelos jornalistas. Deste já se falara tudo ou quase tudo. O tema das matérias passou a ser o roubo das joias praticado pelos policiais que ficaram no apartamento enquanto outros levaram o homicida para depoimento. O delegado tomou o depoimento do homicida sobre o roubo das joias e instaurou um inquérito policial. Decorridos dois dias, sem que haja testemunha do fato, o homicida foi atropelado por um ônibus e morreu. A morte extingue a punibilidade e portanto o inquérito do homicídio foi arquivado. Outro não foi o destino do inquérito do suposto roubo das joias. Tendo se comprometido a voltar à delegacia com documentos que comprovavam a aquisição das joias, a suposta vítima do crime de roubo não teve tempo suficiente para provar o que dissera e seus familiares nada sabiam da existência delas, assim como também não sabiam da existência da “garçoniere”. Casos encerrados!

Restou a dúvida sobre o “acidente” que vitimou o ex-síndico. Não poucos atropelamentos durante a ditadura empresarial-militar disfarçaram homicídios. Igualmente mortes súbitas de quem não ostentava doenças pré-existentes que as pudesse justificar. A morte dos três líderes da Frente Ampla de oposição ao regime empresarial-militar num lapso de 9 (nove) meses deixa dúvidas sobre as causas das mortes. O ex-presidente Juscelino Kubitschek morreu num suposto acidente automobilístico no dia 22 de agosto de 1976. O ex-presidente João Goulart faleceu de suposto infarto em 06 de dezembro de 1976. Os militares não permitiram a abertura do caixão para que Jango fosse velado pelos familiares, nem a necrópsia. Carlos Lacerda morreu em 21 de maio de 1977 igualmente de suposto infarto. Em 20 de janeiro de 1977 tomara posse nos EUA o presidente democrata Jimmy Carter. Este presidente estadunidense pôs fim à colaboração dos EUA com os governos militares cujas ditaduras instituíram a Operação Condor e se esforçou para conter abusos aos direitos humanos. Esta mudança poupou a vida de Brizola que seria deportado do Uruguai para ser morto no Brasil, mas foi, por ordem de Jimmy Carter, resgatado pela CIA no dia 20 de setembro de 1977.

Levado para Buenos Aires onde passou a noite em um local seguro da CIA, Brizola foi embarcado em um voo - sem escalas - para Nova Iorque, onde chegou em 22 de setembro, recebeu visto de permanência por seis meses e depois rumou para Portugal onde permaneceu até retornar ao Brasil em 1979. O salvamento da vida de Brizola naquele momento tinha a oposição do subsecretário de Estado para os Assuntos do Hemisfério Ocidental, Terence Todman. Mas a CIA obedeceu a quem tinha que obedecer: ao presidente Jimmy Carter.

Assim como se sabe que o acidente que vitimou “Zuzu Angel” foi um atentado, a queda de Anísio Teixeira no fosso do elevador num prédio na Praia de Botafogo, onde morava Aurélio Buarque de Hollanda, há 44 anos, no dia 11 de março de 1971, pode igualmente ter decorrido de sua forte preocupação com o que se fazia com a educação nacional às vésperas da edição da Lei de Diretrizes e Bases para o ensino de 1971.

Há muitos acidentes, mortes súbitas e desaparecimentos de opositores do regime empresarial-militar a serem apurados para constituição da memória de nossa história. Mas não basta verdade e memória. É preciso também justiça. A formação da maioria no STF sobre o não abrangimento dos desaparecimentos de pessoas pela Lei da Anistia é um começo. A destituição das patentes dos sicários das liberdades e a subsequente anulação das pensões para suas filhas “solteiras” ´pode ser a continuidade. O Estado pode anistiar os cidadãos, mas não pode se perdoar ou perdoar seus agentes quando comete crimes.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 22/03/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/03/7025113-joao-batista-damasceno-homicidios-camuflados.html


domingo, 9 de março de 2025

Os pobres e o cumprimento dos alvarás de soltura

Quando será posto em liberdade um preso após ser reconhecida a ilegalidade de sua prisão e decretada judicialmente sua soltura? Eis o dilema das famílias! Familiares, por vezes, aguardam dias na porta de uma instalação prisional a soltura de quem sai sem meios até para custear o transporte de volta para casa. Dispõe a Constituição, como direito fundamental, que é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; que às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação; que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa; que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos; que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; que o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal; que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente; que a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada; que o preso será informado de seus direitos, dentre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado, bem como que o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial. Além destes direitos há outro importante: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória”. Para assegurar tais direitos a Constituição impõe aos magistrados: “a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”. Trata-se de uma garantia da cidadania e um dever de os magistrados relaxar a prisão ilegal.

No Estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária/SEAP, tem até “Guardião”, um aparelho para intercepção de conversações telefônicas. Mas negligencia meios para imediato cumprimento das decisões judiciais. Vivemos tempos estranhos. Ao longo das últimas semanas li e assisti a manifestações de autoridades e agentes do sistema de segurança propondo a desobediência às determinações judiciais, notadamente das decisões contidas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental/ADPF 635, onde o Supremo Tribunal Federal (STF) analisará a adoção de um plano para redução de mortes nas operações policiais. Na ação, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) afirma que a política de segurança pública em nosso Estado, “em vez de buscar prevenir mortes e conflitos armados, incentiva a letalidade da atuação dos órgãos policiais”.

O aparato repressivo é profundamente eficiente. O orçamento da área de segurança é, por vezes, superior ao orçamento das áreas de saúde e educação juntas. Ainda que tais despesas obedecessem aos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade e moralidade, falta publicidade (transparência) e eficiência. Administrar é gerir a escassez. Portanto, a opção pela despesa e a execução orçamentária precisa levar em consideração o benefício a se obter com o gasto correspondente.

O sistema é eficiente para criminalizar, mas não para desfazer ou reparar injustiças. Quando estudante ouvia uma frase latina que dizia: “in dubio pro reo”, ou seja, na dúvida, decide-se a favor do réu. Tal princípio haveria de orientar a área tributária (em dúvida pró-contribuinte) e a própria relação cidadão-Estado (em dúvida pró-cidadão). Afinal, numa república democrática todo o poder emana do povo. O Estado é constituído pelos cidadãos. Diversamente, nos estados autocráticos, próprios das ditaduras ou como já foram os Estados justificados pela Teoria do Poder Divino dos Reis, a cidadania decorria da benesse do Estado aos súditos.

As relações sociais são permeadas por conflitos de interesses. Inexiste direito ou liberdade na natureza, onde os conflitos são resolvidos pela lei do mais forte. As leis e os princípios decorrem da cultura e da civilidade. Portanto, a existência de conflito entre quem decide e quem deveria dar cumprimento à decisão é imprópria. Quando ocorre entre poderes do Estado é expressão de desarmonia ou violação da independência entre eles. Quando ocorre entre quem tem o dever de decidir e quem deveria cumprir a decisão é desobediência, motim, insubordinação, rebelião, sublevação, insurgência ou outra qualquer anomalia institucional demonstrativa da incivilidade. Quando o juiz decide pela liberdade de um preso não pode a SEAP, seu “policial classificador”, nem o Oficial de Justiça, postergar por dias o cumprimento da ordem judicial. Nós os juízes, eu inclusive, decidimos, mas nem sempre temos como acompanhar o efetivo cumprimento de nossas decisões.

Nem sempre o que decidimos é imediatamente cumprido. Estando no 32º ano de efetivo serviço jurisdicional na magistratura fluminense, já o vivenciei por milhares de vezes. Em se tratando de polícia, seja ela civil, militar ou penal (penitenciária), seu controle externo compete ao Ministério Público. Já vi estampado em jornais o pronto cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão por mim expedidos. Igualmente, pela mídia, já tomei ciência de imediato cumprimento de alvarás de soltura, de presos com elevado poder aquisitivo. Falta-me ciência, pela mídia, do tempo transcorrido entre a decisão de soltura de um pobre e sua efetivação. Passarei a exercer este controle. Não adianta ordenar. É preciso aferir se o que foi ordenado foi cumprido.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 08/02/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/03/7016131-joao-batista-damasceno-os-pobres-e-o-cumprimento-dos-alvaras-de-soltura.html