sábado, 1 de novembro de 2025

O presidente Lula e a invenção do traficante

 

A declaração do presidente Lula, na Indonésia, de que “Toda vez que a gente fala em combater as drogas, possivelmente, fosse mais fácil a gente combater os nossos viciados internamente” e que “os usuários são responsáveis pelos traficantes, que são vítimas dos usuários também”, precisa ser contextualizada. Ele a fez ao ser questionado sobre afirmativa do presidente estadunidense Donald Trump, de que não é necessária declaração de guerra para matar traficantes de drogas. O governo Trump tem afundado barcos em águas do Caribe, próximo à Venezuela, dizendo estar mirando em traficantes de drogas. Embarcações afundadas podem ser de pescadores. A agressão que se pratica contra a Venezuela visa a criar um clima que favoreça uma intervenção armada e instituição de um governo subordinado aos interesses estadunidenses. A invasão do Panamá e sequestro do presidente Manuel Noruega, por ocasião da retomada do Canal do Panamá, é exemplificativa. A escalada de agressividade à Venezuela inclui autorização à Agência Central de Inteligência (CIA) para sabotagens, terrorismo ou eliminação física em território venezuelano.

A declaração do presidente Lula foi endereçada ao presidente Trump. Se drogas são enviadas aos EUA, há um problema com os cidadãos daquele país que os tem levado ao consumo. Qualquer livro de introdução à economia ensina que a oferta é pressionada pela demanda. Existindo consumidor que procura, haverá fornecedor que oferte. Não adianta oferta sem procura. Além do que, das mais de duzentas substâncias catalogadas e proibidas que alteram o metabolismo apenas três têm sido objeto da preocupação dos EUA: Maconha, coca e papoula. É questão de geopolítica. Sem se ocupar com os problemas no mercado interno, os EUA criminalizam a maconha para justificar pressão sobre o México, a cocaína para atuar da mesma maneira em relação à América do Sul e a papoula por seus interesses na Ásia. Nenhuma outra droga é objeto de preocupação do governo estadunidense. As drogas sintéticas produzidas em laboratórios nos EUA e Europa e que fazem o caminho inverso das drogas naturais, não são objeto de preocupação do presidente Trump. Tampouco ocorrem grandes apreensões em território estadunidense, o que enseja a suspeita de que os próprios órgãos governamentais traficam para aquele país, a exemplo do que a CIA e o Departamento de Estado fizeram no Caso Irã-Contras.

Tráfico, tráfego, trânsito, contrabando e descaminho são termos empregados sem preocupação com os significados. Enquanto trânsito é o mero deslocamento de um lugar para outro, o tráfego é o deslocamento com transporte lícito de coisa ou pessoa. Descaminho é a entrada ou saída de mercadoria do território nacional sem o pagamento de imposto. O muambeiro que traz mercadorias lícitas não é contrabandista. Seu crime é sonegação fiscal; pratica descaminho. No entanto, se a mercadoria for proibida o crime será de contrabando. Por isso, contrabando e tráfico internacional são sinônimos. Mas a política de guerra às drogas difundiu no imaginário social que tráfico é de pessoas, de órgãos ou de drogas. Para diferenciar dos demais criminosos que contrabandeiam mercadorias proibidas, pintaram a figura do traficante de drogas com as piores tintas.
O presidente Lula tem razão. Raramente dou razão a ele, notadamente porque seu discurso – em regra – não é compatível com sua prática. Brizola dizia que era como uma galinha que cacareja para a esquerda e põe o ovo para a direita e Darcy Ribeiro dizia que era a esquerda que a direita gosta. O registro do seu partido, com referência a classe social, contrariava a Lei dos Partidos Políticos vigente desde 1979.

No governo do general-presidente Geisel foi instituída a Operação Radar, visando à eliminação e desaparecimento de dirigentes e simpatizantes do PCB, razão dos assassinatos de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, dentre muitos outros. A diferença de tratamento aos dois partidos somente é compreensível à luz da contradição entre o mundo do trabalho e o mundo do capital. As reivindicações de melhores salários e condições de trabalho, ainda que com emprego de greve ou ocupação de empresas, são toleradas pelo capital porque sugerem a conciliação de classes quando atendidas. Aqueles que foram eliminados fisicamente, antes da abertura política, tinham proposta mais radical, porque iam na raiz do sistema.
A criação da figura do traficante, expressão do mal dentre os demais contrabandistas, foi internalizada na lei brasileira em 1971, no governo do general-presidente Médici. Antes, o Código Penal, em seu artigo 281, não distinguia usuário e traficante e ambos eram igualmente criminosos. Em relação à entrada ou saída de drogas do território nacional, a lei se limitava a dizer que era crime importar ou exportar sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Em 1971, enquanto estimulava golpes militares na América do Sul, o presidente estadunidense Richard Nixon anunciou que as drogas eram o inimigo número um dos Estados Unidos. Com isso, criminalizou a população negra estadunidense, consumidora ou não, e estendeu seus tentáculos sobre a América do Sul. A partir desta declaração foi concebida a política conhecida como “guerra as drogas”. Sabujo dos interesses estadunidenses a ditadura empresarial-militar editou, em 28 de outubro de 1971, a lei 5724 que em seu artigo primeiro dizia que “é dever de toda pessoa física ou jurídica colaborar no combate ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica”.

Não há guerra às drogas. Há guerra a pessoas tratadas como indesejáveis e a países que não se subordinam aos interesses dos EUA.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 01/11/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/11/7155374-joao-batista-damasceno-o-presidente-lula-e-a-invencao-do-traficante.html


segunda-feira, 20 de outubro de 2025

STF, instituições e identitarismo

Quando aluno de Ciências Sociais, no IFCS/UFRJ, um colega afirmou em sala que as mulheres são mais sensíveis e melhores na direção das instituições. A professora, notável antropóloga brasileira, questionou a afirmativa: “Que pesquisa você fez que comprova sua hipótese?” Apesar de professora associada à Fundação Ford, instituição estadunidense que contribuía com a construção das bases ideológicas que afastavam a sociedade brasileira de referências opostas aos interesses estadunidenses, tinha honestidade intelectual. Em seguida, citou nomes de mulheres que exerceram poder com mão de ferro ou desumanidade.

A primeira a ser citada foi Margaret Thatcher, apelidada de “dama de ferro”, primeira-ministra do Reino Unido e cuja imagem até hoje é usada para amedrontar os eleitores britânicos que pensam em votar nos conservadores. Seguiram-se Golda Meir, Benazir Buttho, Imelda Marcos, Violeta Chamorro e outras.

Golda Meir foi primeira-ministra de Israel de 1969 a 1974. Embora as Cortes internacionais de justiça não a tenham condenado por crimes contra a humanidade e genocídio, não há quem deixe de lhe imputar tais crimes. Teria ordenado operações de caça e assassinato, pelo Mossad, de opositores do sionismo, seus familiares e membros da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), além de negar a possibilidade de existência do povo palestino. Benazir Bhutto, primeira-ministra do Paquistão de 1988 a 1990 e de 1993 a 1996, foi figura emblemática do Partido Popular do Paquistão. Imelda Marcos, conhecida como "Borboleta de Ferro", exerceu várias funções ativas no governo das Filipinas. Foi governadora da região metropolitana de Manila, ministra dos Assentamentos Humanos, deputada na Assembleia Nacional e embaixadora extraordinária e plenipotenciária. Violeta Chamorro, oligarca dona de uma empresa de comunicação na Nicarágua, foi a expressão política dos Contras que lutavam contra a Frente Sandinista de Libertação Nacional, responsável por derrubar a ditadura de Anastasio Somoza. Foi eleita presidenta em 1990. Os Contras, guerrilha anti sandinista, e o jornal de Violeta Chamorro eram financiados pelos Estados Unidos, por meio da Central Intelligence Agency (CIA), com recursos advindos de tráfico de armas e drogas, no que ficou conhecido como Caso Irã-Contras. Órgãos e autoridades estadunidenses financiavam seus parceiros na Nicarágua com o produto da traficância. Violeta Chamorro não expressou a vitória de uma mulher na Nicarágua, mas dos interesses estadunidenses contra o povo nicaraguense. Pouco importava o gênero. O que os EUA precisavam era de fantoche que lhes garantisse a apropriação das riquezas daquele país.

Depois de falar sobre estrangeiras chefes de estado, a professora falou de Lygia Lessa Bastos e Sandra Cavalcanti, personagens femininas brasileiras cujas atuações políticas se caracterizaram pela desumanidade no trato com os direitos dos excluídos. A remoção das favelas e alocação dos seus moradores em lugares distantes, favorecendo a especulação imobiliária na Zona Sul do Rio de Janeiro, foi uma dessas políticas. Mas aconteceram coisas piores.

Atualmente, a premiação da venezuelana Maria Corina Machado com o Prêmio Nobel da Paz, ao invés de significar a luta de uma mulher pela democracia na Venezuela, tem o objetivo de preparar uma incursão militar dos EUA naquele país para subtrair seu petróleo. Sua premiação está a serviço do imperialismo e do colonialismo.

Em momento no qual os critérios identitários são propostos como fundamento para a próxima escolha para o STF, é relevante refletirmos sobre a questão. Será tal critério o que melhor atende aos interesses sociais ou pode servir para camuflar outros interesses? Que a sociedade manifeste seus desejos de representação é legítimo. Mas a pressão de membros de poder ou de empresas de comunicação é indevida ingerência na prerrogativa de escolha do presidente da República.

Quando da implicância desarrazoada com o Programa Mais Médicos, o humorista José Simão escreveu que pouco importava se o médico era Cubano, Venezuelano, Colombiano ou Boliviano. O que ele esperava é que o médico fosse humano. O Presidente Lula já caiu no conto do identitarismo, com acentuado custo para a sociedade. Que a indicação recaia sobre quem tenha compromisso incondicional: com os valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito; com a realização substancial e não apenas formal dos valores, direitos e liberdades do Estado Democrático de Direito; com a defesa da independência do Poder Judiciário não só perante os demais poderes como também perante grupos de qualquer natureza, notadamente os econômicos e internos da magistratura representativos do patrimonialismo; com a democratização da magistratura, seja no ingresso, nas condições do exercício profissional e na ascensão funcional; com o fortalecimento das prerrogativas funcionais da magistratura de primeira instância, acessada por concurso; com a Justiça considerada como autêntico serviço público que, respondendo ao princípio da transparência, permita ao cidadão entender os mecanismos de seu funcionamento; com a promoção e a defesa dos princípios da democracia pluralista e a difusão da cultura jurídica democrática, bem como consciência de que a função judicante há de ser exercida para a proteção efetiva dos direitos da pessoa humana, individual e coletivamente considerada, notadamente os vulneráveis. Seja quem for com estas características, o presidente da República estará repetindo o virtuoso comportamento do presidente Afonso Pena quando indicou Pedro Lessa, conforme relato do ex-ministro do STF Paulo Brossard.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 18/10/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/10/7147462-joao-batista-damasceno-stf-instituicoes-e-identitarismo.html

 

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

CET-Rio interdita entorno do Maracanã para jogos e torna inviável funcionamento da UERJ. Cartolagem e negócios desportivos ou educação e ciência? Que opção há de fazer o Brasil?

CET-Rio interdita entorno do Maracanã para jogos e torna inviável funcionamento da UERJ. Cartolagem e negócios desportivos ou educação e ciência? Que opção há de fazer o Brasil?

E inadmissível o descompromisso com a educação neste país. Um jogo de futebol impede que alunos e professores tenham acesso a uma universidade. Já vivenciei situação de impedimento de chegada à faculdade e ter que voltar do ponto de interdição.

Isto é algo que o prefeito e o governador precisam se ocupar. Um jogo de futebol não pode impedir o funcionamento de uma universidade. Ou educação é mero discurso a se fazer em tempo de eleição?

A notícia publicada no site da CET-RIO é a seguinte:

CET-Rio preparou esquema especial de trânsito para jogo no Maracanã - Marcos de Paula/ Prefeitura do Rio

A CET-Rio montou um esquema de trânsito para o jogo entre Fluminense e Juventude, nesta quinta-feira (16/10), às 21h30, no Maracanã, pelo Campeonato Brasileiro. A partir das 19h30 haverá interdições ao tráfego de veículos na região do estádio. E, além dos locais regulamentados com proibição de estacionamento, outras vias estarão restritas a partir das 10h.

A operação contará com agentes da CET-Rio e apoiadores, veículos operacionais e motocicletas que estarão empenhados na orientação do trânsito. E, ainda, no reforço das informações do trânsito, 13 painéis de mensagens variáveis informarão sobre os horários dos fechamentos e as rotas alternativas. Todo o conjunto é em prol da segurança viária, fluidez do trânsito, manutenção dos cruzamentos livres, como também na orientação dos pedestres, torcedores e motoristas.

Técnicos da CET-Rio no Centro de Operações Rio (COR) vão monitorar toda a movimentação do trânsito por meio das câmeras para que, se necessário, sejam feitos ajustes na programação semafórica com o objetivo de garantir as boas condições viárias.

 

Interdições

 

Das 19h30 (16/10) à 1h30 do dia seguinte (17/10)

– Rua Professor Eurico Rabelo

– Rua Artur Menezes Rua Conselheiro Olegário

– Rua Isidro de Figueiredo

– Rua Visconde de Itamarati, entre a Rua São Francisco Xavier e a Rua Professor Eurico Rabelo

– Avenida Rei Pelé, duas faixas no sentido Centro, entre a Avenida Professor Manoel de Abreu até a altura do Museu do Índio

– Avenida Maracanã, sentido Centro, entre a Rua São Francisco Xavier e a Rua Mata Machado

 

Das 23h10 (16/10) à 1h30 do dia seguinte (17/10)

– Avenida Professor Manoel de Abreu, sentido Centro, entre a Rua São Francisco Xavier e a Avenida Rei Pelé

– Rua Dona Zulmira, entre a Avenida Professor Manoel de Abreu e a Rua São Francisco Xavier

 

Proibição de estacionamento

Das 10h (16/10) à 1h30 do dia seguinte (17/10)

– Rua Professor Eurico Rabelo

– Rua Visconde de Itamarati, entre a Rua São Francisco Xavier e a Rua Professor Eurico Rabelo

– Rua Isidro de Figueiredo

– Rua Artur Menezes

– Rua Conselheiro Olegário

– Avenida Paula Sousa, lado esquerdo, entre a Rua São Francisco Xavier e a Rua Professor Eurico Rabelo

Rotas alternativas

Provenientes do Centro e Zona Sul

– Para a Tijuca: utilizar a Avenida Paulo de Frontin e Rua Dr. Satamini, ou seguir pela Praça da Bandeira, Rua Pará ou Rua Paraíba e, em seguida, Rua Mariz e Barros

– Para Vila Isabel e Grajaú: utilizar a Avenida Paulo de Frontin e Rua Dr. Satamini, ou seguir pela Praça da Bandeira, rua Pará ou Rua Paraíba, Rua Mariz e Barros e, em seguida, Rua Major Ávila e Rua Felipe Camarão

– Para a região do Grande Méier: utilizar a Rua Visconde de Niterói

Provenientes da Tijuca, Grajaú, Vila Isabel e entorno

– Para o Centro e Zona Sul: utilizar a Rua Conde de Bonfim e a Rua Haddock Lobo

Provenientes do Grande Méier

– Para o Centro e Zona Sul: utilizar a Rua Visconde de Niterói

 

Fonte: https://prefeitura.rio/cet-rio/cet-rio-monta-esquema-de-transito-para-jogo-do-fluminense-no-maracana-5/

 


sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Popó, Wanderlei Silva, Neoliberalismo e barbárie

Ao longo da história as sociedades se organizaram com fundamentos em valores e princípios que lhes possibilitaram existir. Suas instituições tinham a função de referência de ordem e redutoras das incertezas do futuro. Chegamos ao século XX com a consciência de que a riqueza socialmente produzida precisava ser repartida e todos tinham o direito à participação na organização e destino da sociedade. O século XX foi a Era de Ouro do mundo do trabalho. Mas assistimos à derrocada de tal modelo e a vida se precariza.

As novas tecnologias dispensam massivos contingentes de mão de obra. A desregulamentação precariza as relações de trabalho e difunde-se a ideia de que cabe a cada um, por seus próprios meios, atingir seus objetivos. Tudo é desregulamentado, menos a propriedade. Tudo se transformou em mercadoria. Até a água teve sua natureza alterada. Desde 1997, no Brasil, água é bem econômico. Não mais é bem natural a todos acessível e sua captação não mais é livre.

O “Vale-Tudo” nos ringues foi renomeado de MMA. Mas ainda não há nome para designar o vale tudo nas relações sociais. Não é fascismo, evento que ocorreu na metade do século XX, nem é fenômeno que possa ser designado pela adjetivação do nome de indivíduo que simboliza a boçalidade. A selvageria que estamos revisitando está expressa na conduta de certos indivíduos, mas com eles não pode ser confundida. São bárbaros, mas não inventaram a barbárie. São incultos, mas não inventaram a ignorância. São negacionistas, mas não inventaram a irracionalidade.

Na semana passada a luta armada entre Popó e Wanderlei Silva, no Spaten Fight Night, foi exemplificativa do tempo no qual vivemos. O esporte, que é meio de exercício civilizado da violência própria da natureza animal do ser humano, foi igualmente afetado pelo desvalor que triunfa. Dois veteranos dos ringues, um no boxe, outro no MMA, nos deu a dimensão do fenômeno no qual estamos imersos. O boxe já foi proibido no Brasil, dada a sua lesividade e já teve negada sua natureza esportiva. O espetáculo, entre os gladiadores aposentados, patrocinado por uma cervejaria, não foi um evento esportivo. Tratou-se apenas de entretenimento para vender ingresso e gerar repercussão, tal como fazem-se nas rinhas de galo, lutas de cães ou arremesso de anão. Foi o espetáculo da barbárie contemporânea.

No ringue, um dos gladiadores ignorou as regras, cabeceou ilegalmente o oponente e acabou desclassificado. O vencedor foi aclamado por mera formalidade. Quem pagou para ver aquilo ou quem ficou acordado para assistir mereceu o que teve. Mas a bizarrice não acabou. As equipes dos gladiadores entraram em campo e ofertaram um aprimoramento da incivilidade: socos, chutes, empurra-empurra, nocaute depois do confronto, nariz quebrado, sangue e muito mais.

A rusticidade, com toda sua crueza, nos leva a refletir sobre as relações sociais no tempo presente, notadamente as relações que envolvem a política, a governabilidade e a administração do que é público. O evento era a própria desregulamentação da vida social demandada pelo anarcocapitalismo onde, tal como no Estado de Natureza, inexiste regra de bem viver e vale a lei do mais forte. O evento em si foi falso, não tinha qualquer importância, o primado foi o da violência injustificada e todos perderam, tanto os gladiadores, seus auxiliares e quem assistiu. Somente quem arrecadou na bilheteria pode se dizer ganhador.

O ministro Luis Roberto Barroso, do STF, acreditou termos vencido a incivilidade e a nomeou com adjetivo que é pouco para a definição. Precisamos de um nome. A lógica da luta tem o mesmo código do fenômeno que perpassa as atuais relações sociais: ignorância, violência, encenação, fake news e desprezo pelos valores civilizatórios. Já não é a sociedade do espetáculo. É o espetáculo do que é grotesco, ridículo, extravagante, da fanfarronice e da presepada sem base sólida que lhe dê sustentação, a não ser a polarização volátil em proveito de quem lucra.

O que se viu é corrosivo da civilidade. Não há vencedor nessas condutas, seja no ringue ou na arena política. Quem participa, assiste ou torce é um perdedor. Perdemos todos, pois tais condutas são as pás com as quais se cavam a sepultura do que a humanidade construiu ao longo da sua existência. O fenômeno no qual estamos mergulhados é corrosivo da civilidade e destrutivo da humanidade.

Os dois personagens e seus asseclas são a expressão do fenômeno que nos apavora. Aquele ringue era o extrato do pensamento social que permeia as relações atuais no Brasil. Se era boxe não tinha lugar para cabeçada nem chute. Mas como exigir respeito às regras se no vale tudo da vida social a norma é o golpe violador da regra, o desejo de anistia ou a redução da penalidade? Em carne e osso (embora fraturado) o estilo visto no ringue é o vigente na atualidade. Este é o esporte que o fenômeno ainda inominado difunde.

É o Vale-Tudo, onde o mais forte tritura o mais fraco. É o espetáculo da destruição sem pretensão de reconstruir algo que possa ficar no lugar. É a técnica do gafanhoto que a tudo devora e destrói. O mais estiloso é o que aplica o golpe mais baixo, tem a ignorância como metodologia e a terra arrasada como projeto a ser concluído. É possível dizer ao Wanderlei Silva: “Perdeu Mané! Mas relaxe! Com a difusão de tais modos incivilizados, perdemos todos. E perderemos muito mais se continuarmos por onde estamos indo. Perdoemo-nos! Anistiemo-nos! A anistia apaga tudo, para recomeçarmos do mesmo modo”.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 04/10/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/10/7139644-joao-batista-damasceno-popo-wanderlei-silva-neoliberalismo-e-barbarie.html

 


Filhotes da ditadura, o fim do ciclo

 

O golpe militar proclamador da República propiciou que a classe fardada passasse a se arvorar tutora das instituições republicanas e nelas interviessem quando julgasse conveniente. Em todas as intervenções, tentadas ou consumadas, os militares atuaram no interesse das próprias corporações, na defesa da classe dominante ou de interesses estrangeiros, ainda que sob outras justificativas.

Pela Constituição de 1891 caberia ao STF dizer o direito com independência, mesmo quando os conflitos envolvessem matéria política. Muitas das vezes o STF abdicou do seu dever de dizer o direito sob o fundamento da “objeção do caso político”. Ao judiciário cabe dizer o Direito com base no que for alegado e provado, mesmo que envolva interesses políticos. João Mangabeira, por ocasião da comemoração do centenário do nascimento de Rui Barbosa, disse que o Supremo foi quem mais falhou na República, pois não exerceu os poderes que lhe competiam, deixando o espaço ser ocupado por quem não deveria se imiscuir na ordem interna.

Os militares se pretenderam eminências pardas na República e já no seu nascedouro tentaram um golpe contra o terceiro presidente civil, Rodrigues Alves, em 1904. Os golpistas valeram-se da insuflada Revolta da Vacina. Todo golpe tem o anteparo de alguma inquietação popular provocada, incentivada ou espontânea. Dezenas de mortos e centenas de feridos foi o resultado da tentativa frustrada. A pretexto de pacificar a sociedade, os golpistas foram anistiados.

Em 1922 jovens tenentes atentaram contra o Estado no governo de Epitácio Pessoa. O evento dos 18 do Forte de Copacabana reuniu golpistas de diversas matizes que permaneceram unidos por décadas até a consumação do golpe de 1964. Arthur Bernardes, um presidente nacionalista, governou sob ameaça de golpe e com estado de sítio de 1922 a 1926. O Clube Militar estava ativo na atividade golpista, difundindo documentos falsos. O triunfo da Revolução de 30 implicou anistia a todos e promoção dos golpistas. Getúlio Vargas tomou posse em 03 de novembro de 1930, mas a deposição do presidente Washington Luís fora feita em 24 de outubro. O golpe de 1930 destituiu o presidente em exercício e impediu a posse do presidente eleito.

Em 1937 mais uma falsidade documental contribuiu para o golpe. O Capitão Olímpio Mourão Filho elaborou um documento falso e o levou ao comando das Forças Armadas. Com base nele foi instituído o Estado Novo. Quem apoiou o presidente Vargas no golpe de 1937 o destituiu em 1945. A partir de então o Estado estava sequestrado pelas corporações fardadas.

Em fevereiro de 1954 foi lançado o Manifesto dos Coronéis contra o aumento do salário-mínimo em 100%. Com isso derrubaram o Ministro do Trabalho João Goulart. Não foram punidos. Em agosto de 1954, militares da Aeronáutica a serviço da UDN e vinculados a interesses escusos, levaram o presidente Vargas ao suicídio. Vargas morreu, mas deixou a carta-testamento denunciando os interesses que o destituíram da presidência.

Em 1955, um coronel lotado na ESG discursou na presença do Ministro do Exército, Marechal Lott, dizendo-se contrário à posse de Juscelino Kubitscheck e do vice João Goulart. O presidente Café Filho se licenciou para suposto tratamento de saúde e o presidente da Câmara assumiu, ratificando o posicionamento do golpista coronel Mamede, demitindo o Marechal Lott do comando do Exército. Lott deu um contragolpe preventivo, destituiu o presidente interino, impediu o retorno de Café Filho, e deu posse a JK em 31 de janeiro de 1956. O golpe preventivo foi submetido ao STF e o ministro Nelson Hungria disse que não deferiria habeas corpus contra o Exército porque as espadas dos militares eram verdadeiras e a dele mero adereço de gesso no teto ou pinturas nas paredes. O voto do ministro está acessível no site do STF.

Durante seu mandato JK sofreu duas tentativas de golpe. Aragarças e Jacareacanga, além de ato de indisciplina de oficiais da Aeronáutica. A pretexto da pacificação todos foram anistiados. Manifesto chegou a ser divulgado pelos golpistas no sentido de que as feridas deveriam ser cicatrizadas e não mantidas expostas. Em 1961, ante a renúncia do presidente Jânio Quadros, a elite militar tentou impedir a posse do vice-presidente João Goulart. A posse foi garantida pela Campanha da Legalidade liderada pelo governador gaúcho Leonel Brizola.
Em 01 de abril de 1964 todos os que haviam sido anistiados estavam unidos no golpe-empresarial militar que infelicitou o povo brasileiro por 21 anos. Agora general, Olímpio Mourão Filho, golpista de 1937, foi quem partiu de Juiz de Fora em 31 de março dando início ao golpe, inaugurando um período sombrio de torturas, assassinatos, desaparecimentos, roubos, estupros e outras perversidades, além de cercear um projeto de soberania nacional e vender o futuro do país ao capital internacional.

Com a morte do general-presidente Costa e Silva, o vice Pedro Aleixo foi impedido de assumir. Um golpe interno afastou o general Albuquerque Lima da sucessão, levando o general Médici à presidência. Os gorilas da Linha Dura reinaram, escancarando a ditadura. Em 1977 o general Sylvio Frota, que tinha o então coronel Heleno, agora general condenado pelo STF, como ajudante de ordens, tentou um golpe no general-presidente Geisel. No início dos anos 80 militares colocavam bombas pelo país a fim de causar clamor popular e darem um golpe contra a redemocratização. Mas uma bomba explodiu no colo dos terroristas fardados, durante um show para jovens no Riocentro. Todos os militares que tentaram golpes e foram anistiados estiveram envolvidos em golpes, tentados ou consumados, posteriores. Isto porque os criminosos soltos costumam voltar aos locais dos seus crimes.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 20/09/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/09/7132110-joao-batista-damasceno-filhotes-da-ditadura-o-fim-do-ciclo.html


domingo, 7 de setembro de 2025

Gratificação da política de extermínio


 

Dispõe a Constituição que é assegurado aos funcionários públicos revisão geral anual das suas remunerações, sempre na mesma data e sem distinção de índices. Mas no Rio de Janeiro tal direito encontra óbice na alegação do regime de recuperação fiscal. Inegável a crise no Estado do Rio., sem igual desde que se tornou capital do Brasil, em 1763. As indústrias migraram do estado, não se tornou polo de tecnologia e conhecimento, a cidade do Rio deixou de ser capital e, embora seja a mais bela cidade do mundo, sequer é o primeiro destino turístico. Na Polícia Civil não há verba para implementação das gratificações por mestrado e doutorado, nem assistência à saúde dos servidores policiais.

O cenário é triste. Mas não faltam recursos para certos tipos de gratificações e certas promoções, dentre elas as gratificações para quem atua na Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil do Rio de Janeiro (CORE) e para quem é beneficiado com reconhecimento de bravura. Quem atua na CORE recebe gratificação pela lotação e se lhe reconhecerem bravura ganha promoções e gratificação de 20% sobre o vencimento. Mas há quem receba acréscimo de 40%. Promoção, gratificação por lotação e gratificação permanente por bravura! É uma farra. De novembro do ano passado a julho deste ano, a polícia civil promoveu 563 policiais por bravura. A cada dia foram promovidos por bravura dois policiais, implicando aumento salarial dos agraciados e ocupação das vagas destinadas a promoções por merecimento e antiguidade.

Em tempos passados a política de segurança do Estado do Rio de Janeiro instituiu a ‘gratificação faroeste’. Tratava-se de uma recompensa em dinheiro para o policial que se envolvesse em confronto armado. O resultado não poderia ser pior. Aumentou-se a letalidade e não foram poucas as fraudes. Policiais chegaram a simular confronto para o recebimento do ‘jabá fúnebre’.

A ideia de promoção ou recompensa por bravura é algo estranho a uma política de segurança que vise a proteger vidas e estabelecer relações cordiais entre os agentes do sistema de segurança e a sociedade. A recompensa por bravura surgiu nas instituições militares em tempos de guerra e somente a recebia o combatente que tivesse sido reconhecido por feito excepcional. Pelo ato ordinário, durante uma guerra, nenhum soldado recebe recompensa por bravura, pois combater o adversário é sua missão.

A CORE, que não processa inquéritos dada sua natureza operacional, tem mais que o dobro dos policiais lotados na Delegacia de Homicídios (DH), que investiga todos os homicídios ocorridos na Cidade do Rio de Janeiro.

A gratificação e a promoção por bravura implicam violação aos direitos daqueles que realizam trabalhos ordinários, imprescindíveis para as investigações. A gratificação por bravura é irmã siamesa da ‘gratificação faroeste’ que causou muitos danos à sociedade civil fluminense. E, neste momento está vulgarizada. A ‘gratificação faroeste’ exigia enfrentamento, real ou simulado, normalmente com relato de ação letal. Nas promoções por bravura há relato de inclusões indevidas de apaniguados nos Registros de Ocorrências. Até fato ordinário ocorrido em sede policial tem sido registrado como bravura, pavimentado a folha funcional do agraciado a fim de garantir-lhe promoção e gratificação. Há registro de policial que recebeu seis reconhecimentos de bravura num mesmo dia. Nem o personagem Rambo foi capaz de tal proeza.

Realizou-se na Assembleia Legislativa (ALERJ), no dia 28/08, audiência pública, com a participação do Sindicato dos Delegados de Polícia (Sindelpol-RJ). Mas a cúpula da direção do estado não compareceu para o debate e publicização republicana de suas condutas. Enquanto se desenvolvia a audiência na ALERJ, reuniram-se na Cidade da Polícia com parlamentar cujo histórico registra honraria a miliciano. O objetivo da reunião na Cidade da Polícia foi a comunicação de aumento do valor da gratificação de quem está na CORE fora da atividade de investigação. Além da desorganização do serviço público, tal prática pode vir a implicar na formação de grupos ou quadros eleitorais oriundos de tal tipo de beneficiamento, aumentando a violência no período eleitoral, com risco para a própria democracia.

A promoção e a gratificação por bravura prestigiam quem atua com letalidade, em detrimento de quem investiga com inteligência e legalidade exercitando a atividade fim. O prestígio à operacionalidade na Polícia Civil enfraquece sua função investigativa, atividade que lhe é própria, favorece a ação repressiva e propicia o aumento de letalidade. Enquanto isto os crimes ocorridos não são investigados e aumenta-se a sensação de impunidade.

A CORE atua fora das atribuições institucionais da Polícia Civil. A Polícia Militar tem a função de evitar ostensivamente a ocorrência dos crimes. A Polícia Civil tem a função de apurar as ocorrências criminosas e seus possíveis autores. Por isso a Polícia Civil não usa farda e sua atuação há de ser com a discrição indispensável às investigações.

Se a remuneração por lotação em órgão operacional, mesmo sem operacionalidade, e se as gratificações e promoções por bravura estiverem vinculadas à eleição vindoura de 2026, quem as promove poderá ser responsabilizado por abuso de poder político, caso esteja incidindo em favorecimento com fins eleitorais. A gratificação por lotação na CORE, a farra das bravuras e as promoções delas decorrentes hão de merecer atenção dos órgãos de controle, notadamente do Ministério Público Eleitoral. É questão de preservação da democracia e justiça com os demais trabalhadores policiais preteridos.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 08/09/2025, pag. 12.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Adeus ao amigo Sílvio Tendler!

 Adeus ao amigo Sílvio Tendler!

                                            João Batista Damasceno



As fotos registram dois dos muitos encontros que tive com meu amigo Sílvio Tendler. Todos recheados de ironia, sarcasmo e seriedade. Mas nenhum com sisudez.

O pássaro no meu ombro, na foto à esquerda, é Renè. O nome francês é porque o Silvio não sabia o sexo do animal. Daí que poderia manter o nome quando descobrissem ou ele declarasse ser do sexo masculino, feminino, interssex ou neutro. Sem embarcar no identitarismo, Sílvio ria da situação. Passei longos momentos conversando com Sílvio, com a participação do Renè. Renè participava das conversas e repetia o som que emitíamos ao fim de cada frase. Renè assobiava A Internacional (quando queria). Na maioria das vezes emitia uns sons que não sabíamos o que significava, mas o incluíamos na conversa. E era muito divertido. A foto é de 02 de março de 2024. Numa das internações hospitalares do Sílvio, Renè – sentindo sua falta – saiu pela janela para procurá-lo e nunca mais voltou.

A outra foto registra a exibição e debate do documentário do Sílvio “Os Advogados Contra A Ditadura”. Nela estão o Silvio, a inigualável Eny Moreira, Modesto da Silveira e eu. Sem os três eu me sinto órfão mais uma vez.

Com o Sílvio eu me divertia fazendo coisas sérias. Numa delas foi numa reunião do Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), onde ambos éramos Conselheiros Titulares, e uma corja indecente queria punir um idoso que – durante a pandemia – se descuidara e trocara de roupa diante da câmera. O ancião supunha ter desligado a câmera, quando o havia feito tão somente do microfone. Os moralistas, sem ética, queriam compor uma comissão para investigação da conduta do velhinho. Opus-me que os próprios acusadores formassem a Comissão Torquemada para investigação da nudez inadvertida. Retiraram um deles da Comissão Savonarola e incluíram o Sílvio. O Sílvio era o único opositor da formação da comissão e da punição do descuidado ancião.

Ao fim da reunião, satisfeito com a inclusão do Sílvio na Comissão de Investigação por Ato Atentatório à Moralidade dos e das Vestais da ABI, sugeri que a apresentação do Relatório da Comissão de Investigação fosse precedida da apresentação do filme “Toda Nudez Será Castigada”. O Sílvio se escancarou de rir e um escroto, que hoje ocupa cargo de Conselheiro da Presidência da República, nos recriminou, dizendo que aquela comissão era coisa séria.

Nas reuniões que fizeram, para apurar a nudez, o Silvio preparou um parecer que começava relatando o julgamento d`As Bruxas de Salém e outras atrocidades registradas na história, bem como relembrou a história de cada um dos algozes do ancião. Todos se calaram, a comissão encerrou seus trabalhos, não fez qualquer relatório e o assunto jamais voltou a ser comentado nas reuniões da ABI. Em consequência o velhinho que se descuidara e trocara de roupa com exibição online deixou de viver sob a espada de Dâmocles que o sujeitava a situação vexatória. Tratou-se de uma comissão criada, instalada e esquecida, sem ato de encerramento dos seus trabalhos. Era coisa de gente moralista, com a ética própria dos moralistas, ou seja, de gente desocupada que não tinha outra coisa a fazer senão promover o mal-estar a terceiros. Os escrotos são maus e desejam a infelicidade alheia. Este é o sentido do termo.

Não faltaram trapalhadas. Na exibição do filme, também do Sílvio, “Ousar Viver! Histórias da Maria”, no antigo Estação Botafogo, em 11 de março passado, às 18h00, o Sílvio me mandou áudio da porta do cinema: “Estou te esperando! Estou te esperando! Já estou aqui no cinema”. Fui prá lá. Estava nas proximidades e cheguei em minutos. A exibição começaria às 20h00.

Foram muitos os encontros, conversas e provocações com o Sílvio. Todas com muito humor. Nossos últimos desencontros e mensagens foram no início de julho. Num ele reclamou que eu não estava num restaurante que ele esperava me encontrar. Noutro, ele me chamou para ir à sua casa. Mas eu acabara de chegar em casa cansado e fiquei de ir outro dia. Entrei em férias, viajei em julho, retomei às atividades no Tribunal e na universidade em agosto, quando ele já estava internado, e não fui ao seu encontro.

Sílvio não era tímido quando queria reclamar a visita dos amigos. Numa das suas internações eu lhe mandei mensagem perguntando como estava. Ele não disse do seu estado. Disse onde estava e o número do quarto. Fui imediatamente vê-lo. Ao entrar no quarto ele caiu na gargalhada e disse: “Você entendeu que o que eu queria era visita". Rimos juntos.

Rirei toda vez que lembrar das conversas que tivemos. Algumas impublicáveis!

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Ciclismo, morte e legado dos grandes eventos

Trafegando pela Avenida Pasteur, em Botafogo, à minha frente um ciclista pedalava pela pista de rodagem. A partir do entroncamento com a Rua Repórter Nestor Moreira tal avenida não mais dispõe de ciclovia. O Código de Trânsito Brasileiro reconhece a precedência do ciclista sobre os automóveis, se inexistir ciclovia. Conduzi o carro em baixa velocidade, possibilitando ao ciclista continuar transitando, com prioridade, à minha frente. Uma ultrapassagem somente seria permitida se pudesse fazê-lo com um metro e meio de distância, o que a largura da via não permitia. Ao chegar ao semáforo existente em frente à Policlínica de Botafogo, pensei que o ciclista fosse parar, pois o sinal estava fechado para veículos de qualquer espécie. Mas sem se importar com a norma de trânsito, o ciclista avançou o sinal ameaçando de atropelamento um casal de idosos que se amparava reciprocamente para atravessar a rua na faixa de pedestres.

Nossa realidade está permeada por exigências de comportamentos alheios sem condutas similares às que exigimos de terceiros. É o problema do moralismo. O moralismo é a ética de quem não tem ética. O ciclista transgressor, certamente, exige respeito e cuidado, mas não atuou com a mesma reciprocidade com os idosos que saíam do hospital. Isto ocorreu no domingo passado, dia 17.

Na sexta-feira, dia 15, meu assessor Danny Rogers Coelho Teles fora atropelado por uma bicicleta e morreu. Ele fora meu aluno na faculdade de Direito. Ao fazer seleção para assessor no Tribunal de Justiça ele, que se tornara serventuário da justiça por concurso público, se candidatara à função. Fora bom aluno. Era da turma do fundão da sala, que juntamente com outros eram os mais bagunceiros e participativos das aulas. Num semestre dei aula pela manhã. No semestre seguinte pedi transferência para a noite. Mas deles não me livrei. Eles se inscreveram à noite e continuaram os cursos comigo. E assim estabelecemos uma relação de ensinagem, processo pedagógico no qual quem aprende também ensina e quem ensina aprende. O clima era de seriedade, compromisso com os objetivos dos cursos e muita camaradagem.

Ao ser informado do atropelamento por uma bicicleta e do óbito do meu assessor, duvidei da notícia. Afinal, uma bicicleta não é capaz de causar dano tão acentuado. Mas era verdade. Meu assessor, voltando de encontro com amigos atravessava a Avenida Vieira Souto, em Ipanema, na proximidade da Rua Maria Quitéria e, terminando a travessia, foi atropelado por um ciclista profissional que, em alta velocidade, treinava naquela madrugada. O ciclista igualmente sofreu fraturas, mas sem gravidade. Ambos foram socorridos para o Hospital Miguel Couto. Meu assessor não saiu de lá vivo. O ciclista foi imediatamente transferido para um hospital, desses existentes na Zona Sul do Rio de Janeiro destinados ao atendimento de quem tenha dinheiro que atribua o direito à saúde.

A dinâmica do acidente ainda precisa ser investigada e esclarecida. É certa a materialidade. É certo que uma pessoa morreu em decorrência de um acidente envolvendo um ciclista. Mas antes de questionar sobre o comportamento dos dois envolvidos no evento, é preciso apreciar o comportamento do poder público que autoriza o uso das vias públicas para treinamento por desportistas de alto rendimento.

Sem iluminação, sem motor que faça barulho, com pequeno volume e alta velocidade, uma bicicleta de corrida é imperceptível à noite. Trata-se de inegável irresponsabilidade política e administrativa a decisão do poder público de autorizar tal prática desportiva em via pública. O ciclismo é o esporte, dentre todos os outros, que mais promove fraturas, proporcionalmente ao número de acidentes. Já não bastam as motos, os ciclomotores, os patinetes e as bicicletas elétricas por calçadas, ciclovias e entre os carros? As ruas serão transformadas em velódromo à noite, colocando em risco a vida e a integridade física das pessoas? Na ausência de autódromo na cidade, igualmente serão permitidos os treinos de Fórmula 1 pelas ruas do Rio de Janeiro? Onde estão os legados dos grandes eventos que consumiram centenas de bilhões em recursos do erário para alegria dos cartolas que não nos deixaram ao menos um velódromo?

Dispõe a lei que quem de qualquer forma concorre para um crime incide nas penas a ele cominadas. A responsabilidade civil e a administrativa são regidas pelo mesmo princípio. E mais: A dimensão ética que há de permear as relações sociais e as relações dos cidadãos com o poder público não permite a isenção da responsabilidade das autoridades que contribuíram para o desfecho trágico. Além da responsabilidade civil da Administração pública também estamos diante da responsabilidade dos seus agentes.

É absurdo que uma cidade como o Rio de Janeiro não tenha um velódromo onde os ciclistas profissionais possam treinar. É impensável que desportistas profissionais usem as vias públicas em seus treinos colocando em risco os cidadãos. A cidade do Rio de Janeiro foi cenário de vários eventos que prometiam legados. Além da Copa do Mundo de Futebol de 2014, tivemos os Jogos Panamericanos de 2007, os Jogos Mundiais Militares de 2011 e as Olimpiadas de 2016. Onde está o velódromo que poderia ter poupado a vida de um pai de uma menina de dois anos? Não há via nas quais possam ocorrer treinamentos desportivos sem colocar em risco a vida dos cidadãos cariocas e fluminenses? Cabe ao poder público e aos seus agentes a resposta, a responsabilidade e tomada de providências.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 23/08/2025. Versão digital disponível no link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/08/7116016-joao-batista-damasceno-ciclismo-morte-e-legado-dos-grandes-eventos.html

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Placa retirada, homenagem indevida apagada!

 




No dia 28 passado enviei para amigos e fiz postagem nas redes sociai do seguinte texto:

Há 40 anos eu passo pela placa acima na UFRJ, ignominiosa homenagem daquela universidade ao mais truculento dos ditadores do regime empresarial-militar. Médici foi responsável pelo período de torturas, mortes, desaparecimentos, estupros, roubos e muito mais. Lamento não a ter arrancado com um pé de cabra, quando era estudante por lá, e jogado ao mar. Nunca deixei de chamar a atenção dos meus amigos que exerceram cargos de mando naquela IES. Passei por lá e parei para ver se a homenagem da universidade ao sanguinário continuava por lá. Continua! Lamentável! Está entre o CT e o CCMN.

Hoje passei pelo Fundão e parei para ver se a placa continuava por lá. Não mais está! Finalmente foi retirada. Há 40 anos eu me incomodava com aquela indevida homenagem a quem foi politicamente responsável pela prisão, tortura, morte, estupro e desaparecimento de muitos estudantes.

É pouco! Mas alguma coisa foi feita. Não reescreveremos a história. Mas não podemos manter homenagens a quem fez parte de  um passado que não queremos ver repetido.

sábado, 9 de agosto de 2025

A atualidade de Joaquim Silvério dos Reis

Joaquim Silvério dos Reis é a expressão da traição, da delação e do entreguismo. Atuando em razão de seus interesses pessoais delatou os conjurados mineiros e foi premiado com dinheiro, títulos, propriedades imobiliárias, perdão de dívidas e anistia de penalidades. Tinha 23 anos quando delatou seus companheiros, dentre os quais Tiradentes, mas já era coronel da cavalaria da Vila de Borda do Campo, atual município mineiro de Antônio Carlos.

O ouro foi encontrado no interior do Brasil entre 1693 e 1695, tendo sido explorado por paulistas e baianos que contornavam a Serra do Mar. Subtraindo a influência destes, a Coroa portuguesa criou a Capitania das Minas Gerais, concedeu sesmarias e autorizou que fidalgos portugueses expulsassem da região os que nela viviam e haviam descoberto as riquezas que exploravam. Disto decorreu a Guerra dos Emboabas entre 1707 e 1709. Chacinados os possuidores originários, a partir de 1711, Portugal instituiu a cobrança da finta, que uns pagavam pelo arrendamento das terras, que eram do rei, e outros simplesmente por viverem na região. Era o caso dos “povos de nação”, que pagavam pelo direito de viver na colônia portuguesa. Dentre estes estavam os judeus sefarditas ascendentes de Tiradentes.

Depois de instituída a Intendência das Minas, subordinada diretamente a Lisboa, foi exigido o pagamento do “quinto” ou quinta parte de toda a riqueza produzida nas terras do rei. Era uma espécie de arrendamento. Não tinha a natureza de imposto como o conhecemos. Escasseado o ouro, a Fazenda Real exigiu o pagamento anual de 100 arrobas de ouro, equivalente a 1.500Kg. Para atingir tal montante, todos tinham que contribuir. Era uma espécie de vaquinha ou exigência pública de pix. Não atingido o valor, a Fazenda Real promovia a “derrama”, ou seja, confisco de casa em casa até completar a quantia requisitada.

As derramas eram feitas num clima de pavor e violência. A população vivia revoltada, mas com o quase esgotamento das minas e com a situação precária de Vila Rica (atual Ouro Preto) os inconfidentes, entre eles, o tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada, o desembargador Cláudio Manuel da Costa, os poetas Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto e o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, encabeçaram o levante contra a derrama prevista para 1789.


O clima era tenso. Desde 1788, sob as ordens da rainha Dona Maria I, A Louca, o governador, Visconde de Barbacena, confrontava a elite mineira assentada no controle do poder local e articulada com a intelectualidade fluminense. A mãe de D. João VI, avó de D. Pedro I e bisavó de D. Pedro II reinava com o apoio de uma aristocracia parasitária, depois do afastamento do Marquês de Pombal, primeiro-ministro de seu pai, D. José I, morto em 1777. A intensificação do controle sobre o comércio, as cobranças das dívidas dos contratos atrasados e a ameaça de mais uma derrama incendiavam os ânimos, propiciando as conjurações mineira e fluminense. Esta em 1794, sob a direção da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, e aquela em 1789.

Diversamente de Joaquim Silvério dos Reis, que se pontuava como desleal, entreguista e vassalo do colonialismo, Tiradentes era contra a exploração colonial mediante taxações abusivas e cobrança desmedida de impostos e finta. Mas lutava sobretudo pela autonomia política, independência em relação à metrópole, liberdade de atuação, igualdade na tributação e solidariedade entre os nacionais.

Antes de Joaquim Silvério dos Reis a história registra a existência de outro entreguista antipatriota: Calabar. Quando da expulsão dos holandeses do nordeste brasileiro ficou ao lado dos holandeses e contra a retomada da região invadida. Chico Buarque escreveu peça sobre o personagem e relativizou sua traição. É possível relativizar o posicionamento de Calabar, a partir da análise dos seus interesses. Mas foi um traidor da sua pátria, como sempre existiu por cá e em todos os tempos.

Joaquim Silvério dos Reis era coronel remunerado pelos interesses da Coroa portuguesa, mas o que visava ia além do seu soldo. Tiradentes e seus companheiros pretendiam impedir a saída das riquezas que passavam por Portugal, mas se direcionavam ao país pirata europeu de língua inglesa. Tiradentes foi fiel aos interesses da nação a que pertencia. Não foi inconfidente, mas conjurado. A história demonstra que aqueles que atuaram em favor da ordem internacional e contra os interesses da nação brasiliana eram os traidores do seu próprio povo.

Se a história se repete o é como farsa. Se há traição aos interesses nacionais, sobreposição dos interesses particulares aos interesses do povo brasileiro e entreguismo das riquezas nacionais ao estrangeiro, a figura de Joaquim Silvério dos Reis se torna atual, ainda que representada por outros personagens. Seja Calabar, Joaquim Silvério dos Reis ou outro qualquer em qualquer tempo, quem se coloque contra os interesses do povo brasileiro em favor de interesses estrangeiros é entreguista, traidor da pátria e do povo merece aversão. Tiradentes é referência para os que almejam um país soberano, justo e solidário. Foi traído, mas não traiu jamais. Não se submeteu à exploração estrangeira, nem mesmo para poupar sua vida. Não pediu clemência, nem anistia. Não chantageou quem quer que fosse para livrar a própria pele. Ao contrário, disse: “Mil vidas eu tivesse, mil vidas eu daria pela libertação da minha pátria”. Esta é a diferença entre um pária e um patriota.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 09/08/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/08/7106880-joao-batista-damasceno-a-atualidade-de-joaquim-silverio-dos-reis.html


segunda-feira, 28 de julho de 2025

MÉDICI, CRUDELÍSSIMO DITADOR DOS ANOS DE CHUMBO, CONTINUA HOMENAGEADO NA UFRJ

Há 40 anos eu passo pela placa acima na UFRJ, ignominiosa homenagem daquela universidade ao mais truculento dos ditadores do regime empresarial-militar. Médici foi responsável pelo período de torturas, mortes, desaparecimentos, estupros, roubos e muito mais. Lamento não tê-la arrancado com um pé de cabra, quando era estudante por lá, e jogado ao mar. Nunca deixei de chamar a atenção dos meus amigos que exerceram cargos de mando naquela IES. Passei por lá e parei para ver se a homenagem da universidade ao sanguinário continuava por lá. Continua! Lamentável! Está entre o CT e o CCMN.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

O PARTIDO DE TIRADENTES

 

O imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) e saudoso presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Barbosa Lima Sobrinho, dizia que no Brasil sempre teve apenas dois partidos: O Partido de Tiradentes, nacionalista, autonomista e da independência e o Partido de Joaquim Silvério dos Reis, dos entreguistas e partidários da subordinação nacional.

Quando falamos em partidos o que nos vem à mente são as organizações criadas para a disputa do voto, visando aos cargos eletivos estatais. Partidos sempre existiram. Mas o direito ao voto é recente. Somente a partir da metade do século XIX, depois das revoluções liberais e publicação do Manifesto Comunista de 1848, o voto foi instituído e ampliado para a sociedade. Embora se dissesse universalizado, grandes parcelas das sociedades estavam excluídas. No Brasil a universalização do voto ocorreu com o advento da República, mas com exclusão de mulheres, analfabetos, mendigos, militares de baixa patente, indígenas, menores de 21 anos e religiosos sujeitos a voto de obediência.

Hoje, além da função de cabalar votos, os partidos também têm a função de organizar as correntes de opinião, formar quadros para a direção do Estado ou representar interesses. Mas antes que os partidos tivessem a forma atual, as aristocracias monárquicas já se dividiam em ‘partidos’, com tomadas de posições distintas relativamente a certos temas. Durante as guerras napoleônicas, no final do século XVIII e início do XIX, a Corte Portuguesa se dividia entre os partidários da Inglaterra e da França. Ganharam os partidários da Inglaterra, país que trouxe a Família Real para o Brasil em 1808 para fugir de Napoleão Bonaparte.

No mesmo ano em que os franceses fizeram a grande revolução burguesa, em 1789, no Brasil houve insurreição. Foi a Conjuração Mineira. E nela tivemos dois partidos: O de Joaquim José da Silva Xavier, O Tiradentes, e o de Joaquim Silvério dos Reis. Este inaugurou a delação premiada no Brasil e aquele “foi traído, mas não traiu jamais”, conforme o clássico samba-enredo ‘Exaltação a Tiradentes!’ da Império Serrano, de 1949, de autoria de Mano Décio da Viola, Penteado e Estanislau Silva.

Mineiro que sou, sempre admirei o ideário dos posseiros que partiram de São Paulo, contornaram a Serra do Mar visível ao fundo da Baía de Guanabara e fundaram Mariana e Vila Rica, hoje Ouro Preto, até serem chacinados pelos Emboabas que chegaram com suas escrituras de propriedade no início do século XVIII, sempre admirei o ideário dos conjurados de 1789, bem como dos liberais de 1842 que tinham à frente Teófilo Otoni.

Depois do ciclo da cana, espécie de agronegócio exportador, monocultor, devastador e latifundiário, no Nordeste e em Campos do Goytacazes, Minas Gerais foi a expressão da economia e cultura nacional. Ouro Preto é um monumento a céu aberto. São Paulo ganhou relevância posteriormente e o Rio de Janeiro foi povoado por mineiros que desceram a serra, O cidadão honorário iguaçuano, Zanon de Paula Barros, diz que a Conjuração Mineira desabrochou em Vila Rica mas foi gestada no Rio de Janeiro, tanto que igual movimento com ideias de liberdade e autonomia, expressando descontentamento com o domínio português, eclodiu em terras fluminenses em 1794. Mineiro ou fluminense ninguém nega o caráter autonomista e nacionalista dos movimentos e a grandeza de Tiradentes.

O pesquisador e historiador Cristiano Dornelas empreendeu estudo relevante sobre a sua genealogia e a ocupação da Zona da Mata mineira. Era zona proibida ao tráfego até a metade do século XIX, pois o ouro tinha que ser escoado pelos caminhos oficiais. Quem nela fosse encontrado era apenado por contrabando ou descaminho, crimes que subsistem na ordem penal brasileira. Somente com o fim do ciclo do ouro foram os sertões do leste liberados para ocupação. Após a Revolução Liberal de 1842 um ascendente comum ao pesquisador e a mim, Jacob Dornellas, migrou para a região e sua genealogia remonta aos avós de Tiradentes: Domingos Xavier Fernandes e Maria de Oliveira Colaça.

Paulo Mercadante, autor de A Consciência Conservadora no Brasil, escreveu que entre nós nenhuma revolução fora feita em nome da liberdade e que todas contestavam pagamento de imposto. É verdade! Mas em alguns momentos a cobrança de impostos ou taxações são formas de opressão e a resistência é uma luta pela liberdade e independência. Tiradentes morreu numa luta contra a finta, uma vez que já não subsistia o sistema de cobrança do quinto. Documento comprova que sua ancestral “Izabel de Carvalho Peixoto teve o valor de suas terras listado para o pagamento de finta, imposto cobrado das pessoas listadas como pertencentes à nação Judaica”. Não só pela ocupação e exploração das terras realengas da Capitania das Minas Gerais, tinha-se que pagar uma porção do que dela se retirasse, fosse o quinto ou a finta, como também havia cobrança sobre a qualidade da pessoa, por ser considerada “gente de nação”, como eram os ascendentes de Tiradentes, judeus sefarditas.

A luta de Tiradentes era contra a exploração colonial mediante cobrança abusiva de taxas, impostos e finta. Mas era sobretudo pela autonomia política, independência em relação à metrópole, liberdade de atuação, igualdade na tributação e solidariedade entre os nacionais. Barbosa Lima Sobrinho tinha razão. O Partido de Tiradentes era o Partido da Independência que se opunha aos vassalos do colonialismo, entreguistas personificados em Joaquim Silvério dos Reis.

 

Fonte: Publicado originariamente no jornal O DIA, em 26/07/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/07/7099141-joao-batista-damasceno-o-partido-de-tiradentes.html


segunda-feira, 14 de julho de 2025

Entreguistas traidores da pátria!

Em 1862 o governo inglês promoveu um conjunto de exigências impróprias ao governo imperial brasileiro, dentre elas uma indenização pelo saque da carga de um navio britânico que encalhara no Rio Grande do Sul, a demissão dos militares que haviam prendido uns oficiais ingleses que, bêbados, haviam se metido em arruaça no Rio de Janeiro e um humilhante e formal pedido de desculpas. Apesar de soltos logo depois de identificados, o embaixador inglês William Christie, arrogantemente, exigia que os militares brasileiros que efetuaram a prisão fossem demitidos. Não aceitadas as imposições, embarcações inglesas invadiram as águas nacionais, adentraram na Baía de Guanabara e apreenderam cinco navios brasileiros como indenização pelo que requeriam.

A crise com a Inglaterra levou à derrubada do governo que era presidido por Duque de Caxias, cuja atuação não contemplava o interesse nacional. Mas o incidente contribuiu para o fortalecimento do sentimento nacionalista e o Brasil passou a buscar maior autonomia em relação à Inglaterra. Até Teófilo Otoni, crítico do Imperador D. Pedro II, apoiou o monarca ante a necessidade de prevalência dos interesses nacionais.
O nacionalismo crescente e a vitória na Guerra do Paraguai, que terminou em 01 de março de 1870, influiu no ânimo dos militares que acabaram se sobrepondo ao Estado, culminando com o golpe da Proclamação República em 1889. Desde então várias foram as intervenções militares no funcionamento dos poderes do Estado. O judiciário contribuiu para que tal acontecesse, acolhendo o que se chamava “Objeção do Caso Político”. Tratava-se do afastamento da apreciação de um caso pelo judiciário, se a questão envolvesse interesses políticos. Rui Barbosa insistia que mesmo em casos com interesses políticos, cabe ao judiciário a arbitragem com fundamento na lei, no que tivesse sido alegado e no que tivesse sido provado. Mas Rui perdia sempre.

Os militares usurparam poder e se julgaram árbitros de conflitos políticos em toda a República. A Marinha, formada sob orientação de oficiais ingleses, sempre manteve pretensão aristocrática e antipopular. A Aeronáutica, pelo momento de sua criação em 1941, luta na Segunda Guerra Mundial e orientação dos EUA, tinha expressiva parte dos seus quadros ligados ao elitismo asséptico da UDN. A Força Aérea Brasileira teve seus quadros formados a partir da aviação do Exército. Este parecia uma Arca de Noé, com bicho de todo tipo e era plural até 1964.

O golpe empresarial-militar de 01 de abril de 1964, tramado por militares e empresários entreguistas brasileiros, com o apoio dos EUA, buscou suprimir das Forças Armadas os militares democratas, nacionalistas, liberais, socialistas ou com qualquer concepção que pudesse ser considerada popular ou à esquerda do espectro político. Restou a gentalha, também conhecida como “Linha Dura”, responsável pelo que se fez nos porões dos quartéis. Até os quadros oriundos ou influenciados pelo tenentismo foram perseguidos. Restaram os entreguistas, interesseiros, lambedores de botas ianques e grileiros de terras nas regiões submetidas aos seus comandos.

O golpe de 1964 foi tramado por brasileiros que colocaram seus interesses acima dos interesses nacionais e para satisfação dos EUA. A abertura dos arquivos dos EUA revelou a atuação do presidente Lyndon Johnson, a possibilidade de divisão do Brasil a exemplo do que fora feito com outros países (Coreia, Vietnã, Iemen etc) e o envio da Quarta Frota para apoiar os golpistas, nominada de Operação Brother Sam. O documentário ‘O Dia que Durou 21 anos’ expõe os documentos já publicizados nos EUA.
Neste momento, a decisão do governo Trump de impor sanções comerciais ao Brasil visando a pressionar o funcionamento do STF é mais um embate desses que já vivenciamos na construção da nossa soberania. Felizmente sempre tivemos brasileiros de matizes ideológicas diversas que tinham visão institucional e não se renderam às chantagens estrangeiras. Aqueles nacionalistas inadmitiram pressão sobre o funcionamento de nossas instituições que hão de ser harmônicas e independentes. Os poderes são harmônicos quando cada um se limita às suas funções e serão independentes se não precisarem, para funcionar, de autorização dos demais. Nem dos demais, nem de potências estrangeiras.

O nazifascismo é tosco e desumano. Sua indigência intelectual não lhe permite compreender padrões de civilidade. Por isso não compreende o conceito de soberania nacional, autodeterminação dos povos, independência de poderes e limites civilizatórios. O filme estadunidense ‘Amistad’, de 1997, de Steven Spielberg, baseado em eventos reais, retrata a luta de um grupo de africanos escravizados em território estadunidense, desde a revolta a bordo do navio ‘La Amistad’, em 1839, até o julgamento por um tribunal e sua libertação. A rainha da Espanha não compreendia a falta de poder do presidente dos EUA em liberar o navio apreendido e sua carga humana. Não adiantava a explicação de que a questão estava subordinada a um tribunal, que não haveria de sofrer ingerência para contemplação dos interesses de Sua Majestade.

Além da pressão ao STF para satisfazer entreguistas, o que contraria os EUA é a formação dos BRICs, a viabilidade de comércio intermediado pelas próprias moedas e a possibilidade de criação de uma moeda comum que não seja o dólar americano. Como escreveu o Estadão em seu editorial de quinta-feira (10), “que o Brasil não se vergue diante dos arreganhos de Trump. E que aqueles que são verdadeiramente brasileiros não se permitam ser sabujos de um presidente americano”, porque isso é “coisa de mafiosos’.

 

Fonte: Publicado no jornal O DIA em 12/07/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/07/7091156-joao-batista-damasceno-entreguistas-traidores-da-patria.html


sexta-feira, 27 de junho de 2025

Machado de Assis e a criminalização dos juízes

 

A caçada aos imigrantes nos EUA propiciou a prisão da juíza Hannah Dugan, no estado do Wisconsin, acusada de facilitar a fuga de um perseguido pelo serviço de imigração. Juízes estadunidenses criticam o trabalho da imigração, pois a detenção de imigrantes, quando nos tribunais, os leva a recusarem comparecimento em audiências como testemunhas e mesmo quando vítimas. Por todo o mundo os marcos civilizatórios sofrem ataques. A ofensiva aos juízes e a criminalização da jurisdição não fica de fora da sanha neofascista. Até setores autodenominados ‘progressistas’ caem no conto do punitivismo.

No Brasil o poder judiciário se fortaleceu ao longo da República, mesmo com algumas vacilações e falta de entusiasmo institucional. João Mangabeira afirmou que o STF foi “o poder que mais falhou” na República, por não haver cumprido seu papel político-constitucional, apesar da fustigação de Rui Barbosa. Na Primeira República, até mesmo o controle de constitucionalidade das leis era por ele recusado. A ilegalidade nas instituições tanto pode decorrer da exorbitância quanto da omissão. No Império inexistia controle de constitucionalidade das leis, porque a sanção imperial excluía qualquer vício do processo legislativo. O decreto que organizou a justiça federal, quando da Proclamação da República, assegurou ao STF o poder de interpretar as leis e verificar sua conformidade com a Constituição. Mas os ministros, oriundos do Império, não assumiam tal poder. Hoje, há na sociedade quem demonstre estranhamento ao ver o STF exercitando, plenamente, suas competências constitucionais.

No âmbito dos Estados, os juízes, quando não integrantes do quadro das oligarquias, estavam sujeitos à sedução ou à vingança. Dentre os meios utilizados para submeter a magistratura estavam a disponibilidade e a retenção de vencimentos, disse o ministro do STF Victor Nunes Leal, mineiro de Carangola. Mas apesar das ameaças, o juiz gaúcho Alcides Mendonça Lima, em 28 de março de 1896, declarou a inconstitucionalidade de uma lei estadual. Em razão do exercício de sua competência, o Ministério Público recebeu ordens do governador Júlio de Castilhos para processar o juiz. E o fez alegando que “ousou o denunciado afrontar o regime constitucional do Estado e arvorar-se em supremo e original poder moderador”.

O juiz foi condenado pelo tribunal gaúcho. Rui Barbosa emitiu parecer em sua defesa demostrando que um juiz estadual podia reconhecer a inconstitucionalidade de lei estadual que contrariasse a Constituição da República e que não podia ser punido pelo exercício da jurisdição. O STF reformou a decisão e o absolveu, mas atuou timidamente no caso, esquivando-se de apreciar a inconstitucionalidade da lei gaúcha em face da Constituição da República. Um dos votos explicitou a negativa de adentrar ao cerne da questão da validade da lei estadual gaúcha, sob o fundamento de que o recurso se restringia ao julgamento do juiz pela sua atividade.

Machado de Assis, também escreveu sobre o tema. Não se pode pretender que o “Bruxo do Cosme Velho” tivesse familiaridade com o conceito de supremacia da Constituição, oriunda do ‘poder constituinte’, sobre as leis, oriundas do ‘poder constituído’. Sem considerar que de decisão judicial se recorre e não se pode criminalizar a jurisdição, sob pena de esmorecimento do sistema de justiça, escreveu Machado de Assis em A Semana, no dia 05 de abril de 1896: “Faço igual reflexão relativamente ao juiz da comarca do Rio Grande, que, segundo telegramas desta semana, vai ser metido em processo. A causa sabe-se qual é. Não consentiu o juiz em que os jurados votem a descoberto, como dispõe a reforma judiciária do Estado; afirma ele que a Constituição Federal é contrária a semelhante cláusula. Não sou jurista, não posso dizer que sim nem que não. O que vagamente me parece, é que se o estatuto político do Estado difere em alguma parte do da União, é impertinência não cumprir o que os poderes do Estado mandam."

É indiscutível que Machado de Assis é o maior romancista da literatura brasileira. É denso e enigmático. Sua produção literária abrangeu praticamente todos os gêneros, incluindo poesia, romance, crônica, dramaturgia, conto, folhetim, jornalismo e crítica literária. Após sua morte não faltaram impiedosas acusações à sua memória. Os poucos que o criticaram foram esquecidos pelo tempo. Silvio Romero disse ter sido “capacho de todos os governos”. Hemetério José dos Santos disse que, logo que o casamento e a posição social o levaram para outro ambiente, ao lado de gente branca, desprezara a madrasta, por ser negra. E Pedro do Couto dizia que sua obra não tinha filosofia ou psicologia e só lhe restava o mérito de “escrever bem”.

A leviandade dos críticos não lhes permitiu entender a grandeza da obra de Machado de Assis. No último dia 21 comemoramos 186 de seu nascimento. Sua obra precisa ser lida e estudada e seus equívocos pessoais, como a defesa da condenação de um juiz pelo exercício de sua atividade, precisam ser relevados. Se Cristo, considerado filho de Deus, secou uma figueira porque não tinha fruto, sem considerar se era estação frutífera, por que condenar Machado de Assis por uma opinião em tema que não era da sua especialidade? Basta-nos a obra que nos legou. E já é muito. Se tivesse escrito em língua das potências europeias estaria melhor posicionado mundialmente que Shakespeare, Cervantes e muitos outros autores clássicos, e somente disputaria o podium com Dostoievski.

 

Fonte: Publicado originariamente no jornal O DIA, em 28/06/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/06/7082553-joao-batista-damasceno-machado-de-assis-e-a-criminalizacao-dos-juizes.html