Um trem do ramal Guapimirim descarrilou, na tarde desta
quinta-feira (20), no bairro de Parque Estrela, em Magé. Segundo a empresa
concessionária do serviço ferroviário de transporte de passageiros, Supervia, o
incidente foi causado pela alta temperatura registrada na via férrea, que
chegou a 71°C, dilatando os trilhos. Em nota a Supervia informou que “não houve
feridos no descarrilamento ocorrido por volta das 14h40 desta terça-feira
(20/02) com um trem do ramal Guapimirim, que fazia o trajeto Saracuruna x
Guapimirim, nas proximidades da estação Parque Estrela. A ocorrência foi
causada pela dilatação dos trilhos devido à alta temperatura registrada na via
férrea, que chegou a 71°C, provocando a flambagem dos trilhos. Todos os
passageiros que estavam a bordo foram retirados com segurança. Equipes da
SuperVia estão no local para realizar os reparos necessários e normalizar a
circulação."
Em Magé foi instalada a primeira ferrovia do Brasil.
Construída pelo Barão de Mauá partia da Praia da Guia de Pacobaíba (hoje Praia
de Mauá), com destino a Petrópolis. Foi inaugurada em 30 de abril de 1854. Tal
trecho ferroviário é marco da história ferroviária do Brasil e era um meio de
transporte intermodal entre o Paço Imperial da Praça XV e os aposentos
petropolitanos de D. Pedro II. Saía-se da Praça XV de barco, desembarcava-se na
estação de Mauá onde se entrava no trem e terminava-se a viagem no alto da
Serra de Petrópolis no lombo de burro.
Fui Juiz de Direito em Magé do início de 1995 ao ano de 1997,
inclusive. Presidi as eleições municipais para prefeito de 1996 daquela cidade.
Apesar do pouco tempo que lá trabalhei minha memória registra uma eternidade.
Além dos assassinatos de políticos, exercício do mando local como nunca vira em
outro lugar e dos quais somente tinha referência tão forte na literatura
especializada, desorganização dos serviços públicos e patrimonialismo expresso
pela confusão entre o público e o privado, a mim impressionava a qualidade dos
serviços de transporte ofertados aos trabalhadores em seus deslocamentos para o
ganho do pão de cada dia.
O serviço, naquele tempo, não era prestado pela SuperVia. No
Rio de Janeiro o transporte ferroviário de passageiros já foi prestado com
diferentes nomes. Desde a inauguração da Estrada de Ferro Barão de Mauá, em
1854, tivemos a Estrada de Ferro D. Pedro II, homenagem ao Imperador, a Estrada
de Ferro Central do Brasil, nome dado ante a Proclamação da República, a RFFSA
(Rede Ferroviária Federal S/A), a CBTU (Companhia Brasileira de Trens Urbanos)
e Flumitrens (Companhia Fluminense de Trens Urbanos).
Atualmente, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, o
serviço é prestado pela empresa que administra o Ramal de Guapimirim, SuperVia.
Num daqueles anos em que fui juiz em Magé, numa audiência de um caso envolvendo
acidente ferroviário, diante das fotografias dos trens transitando com portas
abertas, excesso de passageiros, gente pendurada por todos os lados, inclusive
do lado de fora da janela, e até no teto da composição, cometi a imprudência de
dizer ao advogado da empresa que as fotos constantes dos autos mais pareciam
dos trens da Índia. Ele demonstrando sua indignação com a indiscrição do juiz,
retrucou:
- Não sei. Nunca estive na Índia.
A desativação das linhas férreas no Governo JK para estimular
o transporte por veículos automotores e a expansão das indústrias de automóveis
e caminhões, aliada à urbanização do país, transformou o transporte de
passageiros numa barafunda. Naquele período de industrialização a população
brasileira que era majoritariamente rural transformou-se em majoritariamente
urbana. A inversão sem planejamento e sem a criação de condições para acolher
dignamente todos os que migraram dos campos para as cidades propiciou o caos
urbano no qual estamos mergulhados: precariedade dos transportes, loteamentos
irregulares e sem instalação de serviços públicos adequados, ocupação
desordenada do solo urbano com favelização das cidades, além de outras mazelas
que se ampliam.
O que aconteceu no caminho de ferro do ramal de Guapimirim
não é novidade.
A imagem de estradas de ferro contorcidas após incêndios é
exemplo clássico dos livros didáticos de física para demonstrar aos alunos que
os corpos expandem com o calor e que contraem com o frio. As estradas de ferro
dos trens de alta velocidade na China não se sujeitam a tais acidentes, pois a
moderna tecnologia permite que os trilhos expandam para os lados, sem
aumentarem suas extensões. Os trilhos engordam, mas não crescem.
A falta de investimento em tudo o que beneficia os
componentes do mundo do trabalho é a causa de tais desastres. Felizmente desta
vez foi comunicado que não houve mortos. Ao longo de mais de 30 anos como
magistrado na justiça fluminense já julguei milhares de causas envolvendo
acidentes no transporte rodoviário e ferroviário de pessoas. Julguei poucas
causas envolvendo transporte de carga viva, valores ou mercadorias. Numa
destas, o caso versava sobre a falta de cuidado no transporte de uns cavalos de
raça. Um deles morreu e a imputação foi de que a transportadora não teve o
cuidado de parar o caminhão de duas em duas horas, alimentar e hidratar os
animais e esperar que repousassem para evitar o estresse da viagem. O fato
ficou comprovado e condenei a transportadora. E nunca esqueci que os cuidados
para transporte de mercadorias, valores e carga viva são muito maiores que
aqueles demandados para transporte de gente. Afinal, quem anda em transporte
público é pobre e a estes está reservado tão somente o reino dos céus. O gozo
no reino da terra é para outros.
Publicado originariamente no
jornal O DIA, em 22/02/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/02/7008833-joao-batista-damasceno-o-transporte-de-trabalhadores-e-de-animais.html