Numa monarquia autocrática ou teocrática o poder se legitima
como se emanasse do próprio trono ou de Deus. A ideia do poder emanando de Deus
chegou a ser teorizada em obra do jurista francês Jean Bodin, de 1576, no
nono ano da fundação da Cidade do Rio de Janeiro, após expulsão dos
protestantes franceses.
Posteriormente a Bodin outros filósofos escreveram que o
poder não emana de deus, mas se constitui por um pacto civilizatório entre os
cidadãos. Assim, em 1789, os franceses fizeram uma revolução, cortaram a cabeça
do rei e mostraram que seu sangue não era azul, mas vermelho como o de todos. E
numa assembleia nacional constituíram um novo modelo de Estado, declarando que
todo o poder emana do povo.
Nas monarquias absolutistas tinha-se a concepção de que o rei
não erra e que aqueles que agem em seu nome têm a presunção de estarem
realizando sua vontade. Daí a presunção de legitimidade de seus atos. Mas nas
democracias, onde o poder emana do povo, os agentes públicos não podem
pretender privilégios que os sobreponham aos cidadãos.
Embora seja signatário da Convenção Americana de Direitos
Humanos (CADH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, o Estado
brasileiro mantém a tipificação do crime de desacato. Tal crime cerceia as
liberdades públicas e foi instituído em favor dos agentes públicos contra a
cidadania. No Rio de Janeiro o Tribunal de Justiça editou súmula (nº 70)
reconhecendo que a palavra do policial é prova suficiente para a condenação. A
revisão da súmula não afastou a presunção de veracidade. Portanto, se o
policial diz que foi desacatado o cidadão está no sal. O Brasil já foi
condenado algumas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela
violação ao pacto por ele firmado e ratificado em defesa dos direitos humanos.
Mas a condenação recai sobre o Estado e os governantes e agentes políticos que
autorizam ou legitimam as violações nada sofrem.
O assassinato do office boy Herus Guimarães Mendes, de 23
anos (é preciso dizer que tem profissão para afastar a legitimação da
execução), no Morro Santo Amaro, entre os bairros da Glória e Catete na Zona
Sul do Rio de Janeiro, durante uma festa junina, é emblemático e mostra do que
é capaz a política de extermínio instituída no Rio de Janeiro. Se na Zona Sul,
durante uma festa junina, a polícia é capaz de ferir e matar moradores,
imaginemos do que é capaz à noite nas ruas e becos não iluminados da Baixada Fluminense.
A supremacia das armas e da truculência acanha e subjuga qualquer resquício de
cidadania. E tudo sob o manto protetor da presunção de legitimidade dos atos de
autoridade e de seus agentes. É o próprio estado policial em sua mais brutal
aparição!
Diante do bestial assassinato de Herus, a PM afastou 10
policiais que participaram da operação e exonerou o coronel André Batista,
comandante do Comando de Operações Especiais (COE), bem como o coronel Aristheu
Lopes, comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope). Um sargento,
possivelmente escalado para bucha, diz ter sido o único a efetuar disparos. A
coisa ganha ares estranhos. Se era um tiroteio contra traficantes, por que
somente um dos agentes teria disparado sua arma?
A violência policial é tema que me levou a iniciar escrever
neste jornal em 2007. Em 16/02/2019, em artigo intitulado “A Boa Polícia” ,
tratei de uma incursão da PM no Morro do Fallet que causou 15 mortes. Um erro
de publicação atribuiu as mortes ao Bope. Mas o então comandante do BPChq,
tenente-coronel André Batista, reivindicou a operação. Ele já havia comandado o
9° BPM de Rocha Miranda. Trata-se de policial da elite da tropa, com currículo
premiado. Foi o negociador do sequestro do ônibus 174, onde morreram a
professora Geisa Gonçalves e o assaltante Sandro Barbosa. Além disto, é coautor
do livro Elite da Tropa em parceria com o ex-capitão Rodrigo Pimentel,
reformado da PM por surdez, e com o literato Luiz Eduardo Soares. O personagem
André Matias no filme Tropa de Elite, teria sido inspirado em André Batista.
Foi subsecretário do literato Luiz Eduardo Soares em Nova Iguaçu, na gestão do
então prefeito Lindbergh Farias.
A polícia violenta, mas incorruptível, retratada no filme
Tropa de Elite 1, decorre da concepção de uma “boa polícia” da qual falam o
literato Luiz Eduardo Soares, da Uerj, e os formuladores do curso de Segurança
Pública, da UFF. Em suas formulações, a “boa polícia” há de ser incorruptível,
mas pode ser violenta, pois corrupção é uma opção; é um desvio pessoal. Mas a
violência é um desígnio inevitável da atuação policial.
Terminei aquele artigo dizendo que nos resta apelar para o
Tribunal Penal Internacional, para que a cadeia de comando da política de
extermínio e aqueles que para ela concorrem, por não exercitarem o regular
controle externo da atividade policial, sejam julgados por eventuais crimes
contra a humanidade, assim considerados os massacres, a desumanização, os
extermínios e as execuções. O texto me propiciou um irado telefonema do então
governador e bloqueio nas redes sociais, o que me tira o sono até hoje.
Em 08/05/2021 voltei ao tema em artigo intitulado “Polícia
fluminense matou mais 27”, analisando a incursão da Core no Jacarezinho, na
mais letal operação policial da história do Rio de Janeiro, salientando dúvida,
fundada em precedentes, sobre efetivo confronto e exercício de legítima defesa.
Punir alguns policiais e manter a política de extermínio é a
receita para legitimar a continuidade das execuções dos indesejáveis. Mas às
vezes os matadores erram na execução e até a mídia reclama.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 14/06/2025, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2025/06/7074735-joao-batista-damasceno-essa-policia-e-de-matar.html