Por Geraldo Prado*
Pensei em muitos títulos para as
ideias que exporei em seguida.
Nenhum, todavia, captava
integralmente o sentido de um episódio aparentemente singular, a princípio
destinado a permanecer oculto nas entranhas da instituição judiciária, mas que
veio à superfície provocado pela manifestação de Siro Darlan, desembargador do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e pela reação do Presidente do
mencionado tribunal.
(...)
a) no Judiciário, que durante a
ditadura revelou-se em grande medida servil aos desmandos dos poderosos de
ocasião, quer por convicção (autoritária) de muitos dos seus membros, quer por
medo ou simplesmente porque outros integrantes do poder acreditavam que não era
dever seu opor resistência à ditadura de dentro do Judiciário;
b) no amplo terreno de conflitos
demarcado pelas políticas de "minorização", isto é, de conversão das
maiorias populacionais (os mesmos pobres, negros, mulheres, os que professam
credos de origem africana etc.) em minorias políticas, algo que, diga-se de
passagem, diz muito daquilo que Wacquant denomina de "imenso trabalho
histórico de eufemização jurídica, política e cultural constitutivo do
estabelecimento de um regime formalmente democrático, fruto de dois séculos de
lutas sociais - (brotar com clareza a face oculta) do Estado como organização
coletiva da violência visando a manutenção da ordem estabelecida e a submissão
dos dominados".
Pensei em muitos títulos para as ideias que exporei
em seguida.
Nenhum, todavia, captava integralmente o sentido de
um episódio aparentemente singular, a princípio destinado a permanecer oculto
nas entranhas da instituição judiciária, mas que veio à superfície provocado
pela manifestação de Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro, e pela reação do Presidente do mencionado tribunal.
Pode-se tentar entender o que se passou
limitando-se artificialmente o fato à imagem de uma luta - desigual - por poder
no âmbito do tribunal. É possível também empenhar-se em comprimir as margens do
entendimento à figura "autoral" de Siro Darlan e creditar a ação ao
propósito dele de estar ou ficar em evidência. Num e noutro caso o que se tem é
tão-só o superficial, não se toca nas questões de fundo que estão implicadas
quer na trajetória, quer com a personalidade de Siro, menos ainda penetra-se no
contexto político implícito, que transcende as objeções ao modo como o
Judiciário governa a si próprio.
Quando o foco recai sobre a conduta de Siro Darlan,
singularizada ou simplesmente colocada ao lado de tantas outras, pelo critério
da repercussão na comunicação social, ao qual se confere importância central, a
política definitivamente é escanteada.
E escantear a política, ocultando os conflitos que
lhe são inerentes, é próprio das tradições autoritárias. Para ficar na
proximidade temporal, isso remonta a pretensões muito conhecidas de Carl
Schmitt e Francisco Campos: postular uma sociedade "homogênea",
concorde, sem conflitos e atritos, pois que todos estão irmanados em torno de
ideais comuns.
O dissidente dissente "da sociedade",
ainda que seja apenas uma corporação, a corporação judiciária, contraria os
princípios do grupo, ofende suas pautas éticas e se transforma em um ser
abominável, um "inimigo" dentro das "nossas fronteiras", de
quem se devem denunciar as "fraquezas morais" e em relação a quem
cabem as iniciativas de isolar, censurar e punir exemplarmente.
O contágio dos sediciosos é mortal às pretensões do
poder de governar sem dissensões... seu exemplo questionador ( "o rei está
nu") necessita ser reelaborado discursivamente em termos tais que sua ação
seja vista como atentatória à ordem comunitária. Se for o caso, o governante
deverá apelar, impiedosamente, ao "divide e impera" romano, com o
propósito de romper as redes de solidariedade em torno do sujeito indesejável,
provocar a cizânia no seio do grupo ao qual pertence, estimular a desconfiança
sobre a sua pessoa.
Tudo culmina, ensinam as razões de estado, desde
Maquiavel, com o sacrifício ritual a que Foucault se refere, sacrifício que nas
sociedades pós-industriais contemporâneas opera em dois níveis: internamente,
na esfera da instituição integrada pelo "traidor", com o emprego de
punições simbólicas e/ou concretas; e no "mundo exterior". Nesse caso
é funcional o sempre complacente apoio da mídia, dada a convergência
contingente dos interesses.
O que isso oculta? Há algum fio condutor nas ações
de Siro Darlan? Algo, um princípio, a que todas elas possam ser reconduzidas,
critiquem-se ou não os métodos que ele emprega?
Uma correta estratégia analítica, do meu ponto de
vista, passa pela identificação do contexto no qual se insere a trajetória de
Siro. Definir este contexto é um projeto maior que o de relembrar a biografia
dele, mas também inclui recapitular essa biografia.
Siro Darlan torna-se conhecido na década de 90 por
lutar pela implementação dos direitos de crianças e adolescentes vulneráveis,
objeto prioritário de várias formas de exclusão/criminalização: da midiática,
operada de modo incansável, cotidianamente, pelas grandes empresas de
comunicação social, à concreta, sob a forma das ações de grupos de extermínio,
com protagonismo inegável das políticas públicas que persistiram (e persistem,
na maior parte do tempo) em tratar as instituições "sócio-educativas"
como presídios juvenis.
Ver as coisas assim importa em circunscrever o
comportamento de Siro ao campo das políticas infanto-juvenis. Nada mais
equivocado.
A luta que protagoniza, simbolizada na defesa dos
direitos de crianças e adolescentes, em sua maioria negros, pobres, meninas
grávidas, quase todos oriundos de alguma periferia real ou igualmente
simbólica, exprime uma postura de contestação a uma ordem social
reconhecidamente injusta, que se manifesta também em outros campos, que são
objeto de sua atenção:
a) no Judiciário, que durante a ditadura revelou-se
em grande medida servil aos desmandos dos poderosos de ocasião, quer por
convicção (autoritária) de muitos dos seus membros, quer por medo ou
simplesmente porque outros integrantes do poder acreditavam que não era dever
seu opor resistência à ditadura de dentro do Judiciário;
b) no amplo terreno de conflitos demarcado pelas
políticas de "minorização", isto é, de conversão das maiorias populacionais
(os mesmos pobres, negros, mulheres, os que professam credos de origem africana
etc.) em minorias políticas, algo que, diga-se de passagem, diz muito daquilo
que Wacquant denomina de "imenso trabalho histórico de eufemização
jurídica, política e cultural constitutivo do estabelecimento de um regime
formalmente democrático, fruto de dois séculos de lutas sociais - (brotar com
clareza a face oculta) do Estado como organização coletiva da violência visando
a manutenção da ordem estabelecida e a submissão dos dominados";
c) no setor da incriminação de adultos. Muito antes
do fenômeno mais recente do "grande encarceramento", Siro Darlan
lutava contra aquilo que se observava a olho nu: a desumana repressão penal e a
predileção seletiva do sistema.
Siro Darlan foi um dos pioneiros, na esfera do
Judiciário, no que se refere ao diálogo com movimentos sociais. Também a
abertura a setores discriminados, cuja voz pretende-se sufocada, como o pessoal
do funk, tem em Siro um ator de vanguarda. Esteticamente estar ao lado de
funkeiros, sambistas, "menores infratores" apenas fazia sentido ao
establishment, em se tratando de juiz, na hipótese de obedecer ao padrão
consagrado para a figura da autoridade, encarnada pelo magistrado: a condição
de alguém dotado de uma superioridade ética com disposição "paternal"
para fazer o bem.
O figurino do Siro não cabe nesse traje vertical da
autoridade autocrática... a vestimenta judicial dele é horizontal, permeável,
dialogal... há um Outro que Siro reconhece, ainda que movido por sua ideologia
católica.
A percepção dessa trajetória auxilia na compreensão
do conjunto de atitudes - judiciais e extrajudiciais, todas públicas - de Siro
Darlan. Vistas em perspectiva, o exótico e censurável muda de lugar:
transfere-se dele para os que abusam do poder, quer ao pretender a manutenção
do status quo, quer ao defender benefícios corporativos que toda a sociedade
critica, porque muito claramente contradizem princípios republicanos.
No início das batalhas, nos 90, Siro encontrou uma
sociedade com o olhar autoritário treinado... seu comportamento destoava do que
se esperava das autoridades judiciárias, era incompatível com o espírito da
magistratura... espírito que havia inspirado o judiciário entre 1937 e 1985!
Siro é coerente e por isso hoje continua na
contramão.
A recaída conservadora no Brasil e fora daqui é
inegável. A intolerância e o individualismo são os valores mais cultivados. O
selfie está na moda, não apenas como proposição estética. Os grupos mais
organizados tratam de proteger-se a si próprios e a solidariedade social é
desvalorizada sob o argumento de que "se deve ensinar a pescar" e não
"dar o peixe", como se as coisas fossem simples assim e a
meritocracia pudesse ter lugar em um ambiente tão desigual. Que falta faz o
Betinho, irmão do Henfil. A única ação afirmativa aceitável é a "ação
afirmativa carcerária" (Wacquant).
O moralismo, que reduz as questões complexas e as
ações estratégicas à dicotomia rasa verdade vs. mentira, estrutura novas
modalidades do velho autoritarismo e fundamenta novas e expansivas formas de
vigiar e punir. É Wacquant novamente quem nos lembra da manipulação de
conceitos como o do "'respeito ancestral' outrora observado em relação às
figuras ('o pai, o professor, o prefeito, o tenente, o colega da oficina, o
funcionário da repartição')" para justificar empreitadas punitivas em tese
aptas a realizar o sonho (pesadelo) de homogeneização social... devemos ser
todos iguais... mesmo sendo diferentes.
Não é de estranhar, portanto, a reação a Siro
Darlan. Não é de causar espanto sequer as formas que toma. Maquiavel não é
novo... mas claro que sempre se pode optar pelas "razões de estado" e
ignorar o valor ético que em uma democracia há de presidir as ações dos
governantes.
Há suavidade no conhecido... o conflito é temido.
Não creio que haja futuro para uma democracia dócil, porque a docilidade no
caso equivale à sujeição de muitos a poucos e leva o nome de dominação.
Há pouco mais de uma década candidatei-me à
presidência da associação de magistrados do Rio de Janeiro. Alguns me
advertiram que o fato de ser apoiado por Siro Darlan levaria à minha derrota.
Levei a questão a uma reunião e deixei claro que poderia até perder com o Siro,
mas em hipótese alguma ganharia sem ele.
Continuo onde sempre estive... não por amizade, que
nutro por Siro, mas como na história de Aristoteles, sou ainda mais amigo da
lutas sociais e estas, sem dúvida, na história que será escrita sobre a
magistratura fluminense, passam necessariamente por Siro Darlan.
*Geraldo Prado, Professor (UFRJ) e desembargador aposentado (TJ/RJ).