sábado, 29 de agosto de 2020

Governador afastado

Na noite do dia 01 de abril de 1964 o presidente do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade, em sessão indevidamente convocada, declarou – sem ouvir o colegiado - vaga a presidência da República. Jango estava no Rio Grande do Sul, de onde Brizola o instigava a resistir ao golpe. Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil, levou ao Congresso carta do presidente informando seu paradeiro, que foi lida em plenário, mas ignorada. Auro de Moura Andrade, depois de declarar criminosamente vaga a Presidência da República, atravessou a Praça dos Três Poderes, acompanhado de outros golpistas, para empossar o deputado Ranieri Mazzilli na presidência, que teve como Ministro Chefe do Gabinete Civil o político iguaçuano Getúlio Moura.

Mas a farra durou pouco. No dia 09 de abril um grupo de militares autointitulados Comando Supremo da Revolução editou um ato institucional mostrando quem tinha as armas e a quem os golpistas deveriam obedecer. A presidência de Ranieri Mazzilli foi para o brejo. Consumado o golpe empresarial-militar uma noite caiu sobre o país e as instituições. Políticos e militares nacionalistas, juízes, promotores de justiça, advogados, líderes sindicais e professores foram cassados sumariamente. Aqueles que não se dispunham a colaborar com o regime foram perseguidos. No dia 11 de abril o Congresso Nacional, num gesto de boa vontade com os donos das armas, elegeu o Marechal Castelo Branco para a presidência da República.

O Marechal Castelo Branco era do Grupo da Sorbonne e dos tenentistas, militares que gostavam de livros e cultura. Costa e Silva era o líder da ‘linha dura’ e enfrentava o próprio presidente. Editoriais de jornais conservadores instigavam o judiciário a participar das perseguições a pretexto de combater a corrupção. E muitos magistrados, ao arrepio da ordem jurídica, ouviram e seguiram o Canto das Sereias, tornando-se colaboracionistas do regime.

Em Goiás, o general Riograndino Kruel iniciou perseguição ao Governador Mauro Borges. Sobral Pinto impetrou habeas corpus preventivo em favor do Governador ameaçado de impeachment e prisão. As apurações haviam sido feitas em inquérito policial militar. Dr. Sobral alegou que provas haviam sido forjadas e que o governador deveria ser processado e julgado somente após pronunciamento da Assembleia Legislativa, uma vez que tinha direito a foro especial e assim dispunha a Constituição.

O STF deferiu a liminar. Mas, o general descumpriu a ordem. O presidente do STF, Ministro Ribeiro da Costa, alertou que se as ordens do STF não fossem cumpridas ele entregaria as chaves à sentinela de plantão. O Marechal Castelo Branco determinou cumprimento. A linha dura e os editoriais dos jornais não perdoaram o STF por garantir o primado da Constituição. O ministro Victor Nunes Leal propôs que o regimento interno do STF fosse alterado para manter Ribeiro da Costa na sua presidência até a aposentadoria compulsória que se avizinhava. Para contentar a linha dura o Marechal Castelo Branco decretou intervenção em Goiás e afastou o governador. Mas, o judiciário cumprira o seu papel. Quando a linha dura deu um golpe interno nos tenentistas e decretou o AI-5 os ministros que apoiaram Ribeiro da Costa foram cassados.

Ulisses Guimarães quando da promulgação da Constituição em 1988 declarou: “A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério”. Defender o primado da Constituição, sem colaboracionismo com governos, é defender as liberdades públicas, diante das ameaças da cadela do fascismo que sempre está no cio.

 

Publicado originariamente no dia 29/08/2020 no jornal O DIA. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2020/08/5979323-joao-batista-damasceno--governador-afastado.html

 

domingo, 23 de agosto de 2020

Em determinadas circunstâncias eu prefiro o preso a quem o condena.



Que tal pararmos com esta bobagem de analisar a probidade das pessoas pelo fato de já terem sido presas ou não?

Nos últimos 18 anos, dos 4 ocupantes da presidência da República o único que nunca foi preso é exatamente quem foi livrado pela Justiça Militar. Esta é uma demonstração da seletividade do sistema.

Que tal pararmos de legitimar o etiquetamento que o sistema põe em quem não lhe agrada.

Em determinadas circunstâncias eu prefiro o preso a quem o condena.























sábado, 15 de agosto de 2020

Dossiês contra a democracia: não passarão!

O imbróglio envolvendo as instituições brasileiras decorrente da elaboração de dossiês que trata brasileiros como inimigos a serem rotulados e perseguidos somente é compreensível se entendermos o papel das instituições e dos agentes que compõem o grupo social que sobreviveu nos escombros, não removidos, do regime empresarial-militar que enlutou o Brasil de 1964 a 1985.

No presente momento, a hegemonia sobre as instituições democráticas, decorrente do processo eleitoral viciado pelas fake News e atuação marginal de membros do Poder Judiciário, Ministério Público, polícias e Forças Armadas, reúne pelo menos três grupos específicos: um grupo com a racionalidade do mundo capital e que tem buscado reformas supressoras dos direitos do mundo do trabalho, bem como entregar as riquezas nacionais; um outro grupo formado por aqueles que se opuseram à abertura política e colocaram bombas pelo país até que uma delas explodiu no colo de um terrorista fardado e matou seu companheiro no Riocentro. O Exército protegeu o terrorista, que era capitão, e o promoveu até se reformar no posto de coronel; um terceiro grupo é de aloprados capazes de ver Jesus na goiabeira, discursar sobre a terra plana ou duvidar da existência do coronavírus, mas capaz de fazer tratamento com cloroquina ou ivermectina. Este grupo, aceita até tratamento com ozônio, mesmo negando a existência do vírus que chama de fake News chinesa.

O grupo da linha dura, descendente daqueles que decretaram o AI-5 é preocupante, porque não atua sob os holofotes da democracia. Os generais Geisel e Golbery em suas obras disseram que a abertura política era necessária para evitar que o país chegasse a uma guerra civil entre grupos clandestinos. Mas temendo a supremacia dos comunistas e dos nacionalistas que pudessem pretender transformações sociais, cuidaram de eliminar aqueles que seriam considerados inimigos do regime, antes que se fizesse a abertura política. Assim se montou a Operação Radar para eliminá-los. Tentou-se limitar o mundo do trabalho a pretender emprego, renda e possibilidade de consumo.

A linha dura do regime empresarial-militar teve que se esconder depois do Caso Riocentro. Mas, não se desarticulou. Ao contrário, passou a tramar dos escombros e da penumbra. Tendo perdido a batalha nas ruas, nas urnas e no meio acadêmico – por incapacidade de oferecer qualquer proposta à sociedade - sua pretensão no presente momento é destruir o que não tem condições de vencer. Daí os ataques à cultura, à educação, ao ideário de justiça, ao Estado de Direito e tudo o mais que expresse civilidade.

A Constituição diz que o Brasil se constitui num Estado Democrático e de Direito e que o STF é dela o guardião. E por isso o ataque também ao STF. A República do Brasil tem por um dos seus fundamentos o pluralismo político. A Constituição é antifascista. 

Os dossiês elaborados por um deputado paulista e por um membro do Ministério Público no Estado do Rio Grande do Norte é expressão daqueles que atuam dentro das instituições democráticas contra a democracia. As atuações contra os Policiais Antifascistas precisam ser repudiadas. Trata-se de mapeamento por aqueles que pretendem eliminar o pensamento democrático para realizarem os objetivos que não conseguiram alcançar nos Anos de Chumbo. A serviço dos interesses imperialistas um deputado entreguista forneceu o dossiê, com dados pessoais de brasileiros, ao governo dos Estados Unidos. Não são nacionalistas. Não defendem a nação e os interesses do povo brasileiro. São patrioteiros, capazes de chorar diante de qualquer pedaço de pano colorido, mas atentam contra a soberania nacional. Miguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, quando acossado pelos fascistas exclamou: “Vocês vencerão! Porque têm a força. Mas, não convencerão, porque lhes falta razão!”. Unamuno tinha razão. A força pode se impor esporadicamente, mas não tem condições de se estabelecer em definitivo, porque a humanidade caminha é para a frente; para a civilidade.

 

terça-feira, 11 de agosto de 2020

JUÍZA PATRÍCIA ACIOLI E A NECROPOLÍTICA

Na noite do dia 11/08/2011, precisamente há nove anos, foi executada a juíza Patrícia Acioli, por agentes do Estado, com armas do Estado e munição fornecida do Estado.

Os autores dos disparos são homicidas. Mas, são partícipes – uns no sentido penal, outros no sentido político - todos os que contribuíram para o desfecho: O comando da PM que nomeou para o batalhão de São Gonçalo um oficial desafeto da juíza, o comandante que incentivou os homicidas, os agentes públicos que opinaram pela negativa da escolta que ela demandava, bem como os que decidiram retirar sua escolta.

Depois de trabalhar todo o dia 11 de agosto de 2011, dia do advogado e do magistrado, Patrícia chegou em casa para o descanso, mas os homicidas a esperavam.

É emblemático que os homicidas da juíza Patrícia Acioli tenham escolhido o dia da instalação dos cursos jurídicos no Brasil para praticar o crime. Não se tratou apenas de mais uma execução praticada pelo Estado. O que se pretendeu foi demonstrar que estavam assassinando o Estado de Direito no Brasil e que nem mesmo as instituições do Estado estão a salvo da barbárie. O que recentemente foi feito por outros grupos paramilitares, do mesmo viés e grupo social, com o STF tem neste episódio o seu prenúncio.

Morta a juíza, parcela da imprensa tentou lhe assassinar a reputação. No dia 13 a manchete do maior jornal do Rio de Janeiro detratava a juíza. Mantive correspondência com o jornalista autor das matérias. Ele disse-me que era um crime passional praticado por pessoa que indicava e que apostava todas as fichas no que dizia. Um canalha!

Guardo a correspondência que tive com ele. Seguiu-se uma guerra editorial. O jornal O DIA apostava que não era crime passional e uma jornalista que cobria o assunto, quando viu o caminho que as investigações apontavam, se referindo ao outro jornal que continua a divulgar fake News disse-me: - Vamos ver quem vai piscar primeiro!

Realizada busca e apreensão no Batalhão de São Gonçalo, e identificadas as armas das quais partiram os disparos, escrevi ao jornalista que apostara todas as fichas. Ele jamais me respondeu.

Guardo a correspondência mantida com ele. Canalha! Não teve a dignidade de se retratar e reconhecer que errara na avaliação. Não teve a dignidade de dizer que perdera as fichas apostadas. Seu jornal não teve a dignidade de reconhecer que errara, pois na verdade tentava encobrir a falta daqueles que retiraram a segurança da juíza.

Hoje completam nove anos do assassinato da justiça. Muitas outra vidas foram ceifadas pela necropolítica.  A decisão do STF que restringiu as operações policiais durante a pandemia reduziu em 70% as mortes na cidade do Rio de Janeiro.

É preciso repensar a política de segurança no Brasil. É preciso repensar a política de segurança no Estado do Rio de Janeiro. Com menos ações policiais todos os índices de morte, violência e criminalidade diminuíram no Estado. Por que será?


Mais informação:

http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/08/juiza-assassinada-sofreu-emboscada-e-levou-21-tiros-diz-delegado-no-rio.html

 

https://extra.globo.com/casos-de-policia/patricia-acioli-juiza-linha-dura-com-grupos-de-exterminio-de-sao-goncalo-morta-na-porta-de-casa-2438304.html

sábado, 1 de agosto de 2020

"Terrivelmente evangélicos", terrivelmente contra os direitos



A ocupação das instituições brasileiras no presente momento, sem preocupações republicanas, apoiada por um povo “terrivelmente evangélico”, desvela um embate que permanece no Brasil desde épocas remotas. “Entre a Cruz e a Espada” era a alternativa perversa de subordinação aos ‘Senhores de Engenho’ ou aos padres no Brasil-Colônia. Para reduzir o poder da Igreja, Marquês de Pombal expulsou os jesuítas do Brasil em 1759. Após a independência, Dom Pedro I outorgou a Constituição de 1824 “em nome da Santíssima Trindade”. A ‘Questão Religiosa’ opôs parcela da Igreja a Dom Pedro II e contribuiu para a Proclamação da República.

O Estado brasileiro se afirmou a trancos e barrancos em oposição aos poderes tradicionais do patriarcado e do clero. Getúlio Vargas golpeou os coronéis instituindo o voto feminino em 1932. Mas, reforçou o poder da Igreja, pois os padres passaram a cabalar o voto das fiéis nos confessionários.

O judiciário não ficou de fora. Os crucifixos nos tribunais foram naturalizados e desconsiderado o desrespeito aos praticantes de outros credos. Em 1949 o STF considerou ilegítimo o funcionamento público da Igreja Católica Apostólica Brasileira, porque competia com o clero de fidelidade romana, e ratificou o ato da polícia que os proibira.

O poder dos padres no interior do Brasil era abusivo, pois se consideravam donos das cidades. Ainda se encontram pelo interior cemitérios ‘administrados’ pela Igreja, à custa do erário, com divisão entre a área nobre destinada aos ‘fiéis do padre’ e outra aos praticantes dos demais credos. A perseguição aos ‘crentes evangélicos’ sempre foi implacável. Em 1952, em Varre-Sai/RJ, o padre instou o delegado a proibir um culto público, sob o fundamento de que a praça era terra de São Sebastião, portanto particular da Igreja. E enquanto badalava o sino para atrapalhar o culto alheio, seus seguidores dispersaram os “excomungados” com bombas de pólvora e pedradas. Em Santo Antônio de Pádua/RJ, a Igreja ajuizou ação reivindicando as áreas públicas do município. O processo está no Museu da Justiça. Na década de 50, em Santa Margarida/MG, o padre Galdino dissolvia cultos públicos dos ‘crentes evangélicos’ a bala. Para realizá-los era necessária autorização e segurança da polícia, que nem sempre estava disposta a atender.

O protestantismo europeu é racional, data da Idade Moderna e é o fundamento do capitalismo. Uma das teses luteranas tratava da separação da Igreja e do Estado.

O ‘evangelismo pentecostal’ no Brasil advém do sul escravista dos EUA. Daí sua aversão aos cultos de matriz africana. Dissemina preconceitos fundados em sua origem e em leituras descontextualizadas de trechos de suas bíblias. Mas serviu para elevar pessoas humildes da condição de meros expectadores da missa a ‘protagonistas da palavra’. O ‘evangelismo pentecostal’ apesar de rude, retrógrado e primitivo deu voz a quem não a tinha. Assim, meros ‘repetidores de ladainha’ tornaram-se ‘cidadãos com fala’, pregadores, testemunhas de milagres e doutrinadores sobre costumes. É uma espécie de cidadania fake, porque permite a fala, mas não assegura direitos.

Protestantes, evangélicos, pentecostais e neopentecostais são correntes diferentes do cristianismo não católico. Oprimido, perseguido e ressentido este povo “terrivelmente evangélico”, sem valores republicanos e sem concepção do que seja o Estado de Direito, é a massa de manobra ideal para os donos do poder. E por não exercitarem a dúvida que propicia o conhecimento, apegam-se - com a certeza da fé - a lutas imaginárias entre o bem o mal. Sob a ordem de seus pastores atuam como ovelhas integradas num rebanho e cerram fileiras ao lado do que acreditam ser o bem, ainda que seja o que destruirá seus direitos e seu país. Se não mudarmos o rumo da história nos tornaremos uma Somália.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 01/08/2020. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2020/07/5962103-joao-batista-damasceno---terrivelmente-evangelicos---terrivelmente-contra-os-direitos.html