sábado, 18 de junho de 2022

Judiciário e seus magistrados: Valois, prata da casa

Em meio à barbárie que significou 56 mortos numa rebelião num presídio em Manaus (AM), no ano de 2017, com cabeças decepadas, pessoas esquartejadas e corpos carbonizados, um juiz se destacou: Luis Carlos Valois. Trata-se de um magistrado desses que honram a magistratura. É um intelectual com severas preocupações, poder de respostas aos problemas que vivenciamos, integridade ética, capacidade profissional e preciosos livros publicados. A quantidade de mortos poderia ter sido maior, não fosse o atendimento ao chamado para negociar o fim da rebelião num complexo penitenciário.

A vara titularizada pelo Valois tinha, em 2017, 17 mil processos e para processar todo o acervo, apenas cinco funcionários. Ele próprio já oficiara ao tribunal informando a impossibilidade de manter o regular andamento dos processos sem que condições adequadas lhe fossem fornecidas. Não sei o que pensou o tribunal. Mas os presos jamais lhe imputaram responsabilidade, pois sabem que ele faz o possível para lhes assegurar os seus direitos, mesmo com as dificuldades encontradas.

Quem acompanhou aquela tragédia no presídio em Manaus e buscou conhecer os motivos da rebelião não encontrou dentre as reclamações dos presos o trabalho do juiz. Ao contrário, os presos o reconhecem como alguém que faz o que está ao seu alcance. Dentre as reinvindicações não havia pedido sobre processo. Não se reclamou do trabalho da Justiça. Até os presos sabiam que o juiz cumpria seu papel e dele não havia o que reclamar.

Naquele ano intensificou-se no Brasil a cultura do ódio, inclusive ao preso. “Bandido bom é bandido morto”, diziam “cidadãos de bem” sem se reconhecerem apologistas de homicídio. Valois não estava de plantão. Não foi testemunhar a barbárie porque quis, mas porque precisavam dele. Salvou vidas, mas foi duramente atacado até mesmo por alguns dos seus colegas da magistratura, do tipo que mais se comprometem a garantir a ordem que garantir direitos.

Numa Vara de Execuções Penais o trabalho do juiz se destina ao preso. É o executor da pena imposta. E tal execução tem regra. O Brasil tem uma lei que disciplina a relação do Estado com a pessoa encarcerada, que é a Lei de Execuções Penais (LEP) e cujo descumprimento coloca o Estado brasileiro no mesmo patamar de ilegalidade daqueles que condena por descumprir outras leis.

Valois busca retirar o Estado da ilegalidade que o STF já declarou como “estado de coisas inconstitucional” e por isso é alvo de críticas por aqueles que não concebem que o Estado não pode subtrair do condenado outros direitos que não aqueles que a lei autoriza sejam afetados, dentre os quais a liberdade de ir e vir. Quando o Estado descumpre a lei que editou perde a superioridade ética que o legitima a julgar aqueles que a descumprem. Colocando-se à margem da lei que edita o Estado se torna marginal a ela.

Como juiz de execução o juiz Luis Carlos Valois tem compromisso de fazer valer a norma de que a existência do juiz da execução penal só se legitima se for para garantir os direitos previstos na LEP. Os presos em Manaus (AM) jamais reclamaram da Justiça ou do juiz. Suas reinvindicações eram outras. Sabem que o juiz faz o que pode (e deve) com os poucos recursos colocados à sua disposição.

Em outra rebelião os presos condicionam o fim do motim à presença do juiz Valois. A revolta decorria da qualidade da comida e queriam sua presença para intermediar com a direção carcerária e dela obter a promessa de que não mais lhes seriam servidas refeições estragadas. De novo não lhe pouparam de críticas.

É estranho que no patamar civilizatório no qual dizemos nos encontrar um juiz seja alvo de crítica por ser depositário da confiança daqueles que julga. É estranho que os juízes devam ser temidos pelo mal que podem causar e não respeitados por suas capacidades de fazer justiça.

Há quem deseje sejam os juízes vingadores e não justos; que sejam expressão do ódio que incendeia os corações e mobiliza parcela da sociedade nestes tempos estranhos. O que se tem demandado é o herói vingador, parcial e incompetente, com suas próprias razões. Mas Valois trata os presos como seres humanos, qualidade da qual pretendem destituí-los para lhe suprimir todos os direitos, inclusive o direito à vida. E por reconhecer valor humano em quem se pretende desumanizar é destinatário de considerações depreciativas.

Luiz Carlos Valois é um dos juízes mais cultos que conheço. Também se caracteriza por seu humanismo, compromisso com os excluídos e por sua eticidade. Dele espero que tenha força para atravessar, com serenidade, estes tempos sombrios e que continue a lutar por uma sociedade justa, humana e igualitária. Afinal, os que lutam por Justiça por algum tempo são bons. Mas os que lutam a vida inteira são imprescindíveis.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 18/06/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/06/6424852-joao-batista-damasceno-judiciario-e-seus-magistrados-valois-prata-da-casa.html

domingo, 12 de junho de 2022

Armas não letais que matam

 

Não foi apenas a morte de um homem dentro de uma viatura transformada em câmara de gás que marcou o protagonismo da Polícia Rodoviária Federal (PRF) no noticiário dos últimos dias. A chacina da Vila Cruzeiro, com a morte de 23 pessoas, assim como em outros casos de igual natureza, expôs o que anda fazendo a PRF fora das estradas.

Tais atuações, com resultado de mortes, tem levado a sociedade brasileira a indagar o que está acontecendo com a PRF. No imaginário social, a PRF ainda guarda a lembrança do Vigilante Rodoviário e do cão Lobo, fiel escudeiro e companheiro de patrulhas do inspetor Carlos, notabilizados em filmes pela fidalguia com a qual ajudavam os motoristas em tempos nos quais a qualidade dos veículos era duvidosa e as estradas bem piores que as atuais.

Em se tratando de carreira funcional, a PRF é exemplar. Trata-se de uma classe horizontalizada, sem a hierarquização que engessa as demais carreiras policiais. Mas, o que a PRF tem feito não mais corresponde ao imaginário, nem está em consonância com a ordem jurídica. A Constituição da República é clara: “A Polícia Rodoviária Federal, órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais”. Portanto, a Constituição delimitou o âmbito territorial da atuação da PRF, ou seja, as rodovias federais. E nenhuma lei ou ato normativo pode ampliar tais poderes, sob pena de inconstitucionalidade.

Ao invés de se manter no âmbito das estradas federais e da legalidade a PRF tem saído pelo acostamento e adentrado em caminhos marginais e vias urbanas. Duas portarias de ex-ministros da Justiça da atual Presidência da República mudaram as atribuições da PRF e permitiram a integrantes da corporação participar de operações conjuntas com outros órgãos.

Em 11 de fevereiro passado, agentes da PRF, em conjunto com agentes do Bope, já haviam atuado na Vila Cruzeiro com o objetivo declarado de capturar suposta quadrilha especializada em roubos de carga e prender um tal de Chico Bento. Naquela incursão, oito pessoas foram mortas. Em outubro do ano passado, pelo menos 25 pessoas foram mortas em uma ação conjunta da PRF com a PM de Minas Gerais, em Varginha, no sul do estado.

Ao arrepio da Constituição, o site da PRF anuncia que sua atuação não está limitada ao texto constitucional, pois “a PRF tem sob sua responsabilidade a segurança viária e a prevenção e repressão qualificada ao crime em mais de 75 mil quilômetros de rodovias e estradas federais em todos os estados brasileiros e nas áreas de interesse da União”.

Mas não só em áreas que considera de interesse da União atua a PRF. Em 18 de março de 2018, quatro dias depois do assassinato da vereadora Marielle Franco, um policial rodoviário compareceu ao bar Bip Bip, tradicional reduto boêmio em Copacabana, na Zona Sul do Rio, e depois de beber umas e outras começou uma discussão com o dono do bar, Alfredinho, de 74 anos. Alfredinho, que morreu menos de um ano depois, foi detido e levado para a 14ª Delegacia Policial, no Leblon. O tumulto foi criado por um agente da PRF que criticava Alfredinho em razão de uma placa que homenageava a vereadora assassinada. Policial armado e bêbado fazendo arruaça em bar não é novidade para quem já tenha trabalhado na periferia e tido o dissabor de julgar tais casos. A surpresa foi a presença de viaturas da PRF deslocadas para Copacabana onde estava o agente transgressor.

O ovo da serpente que eclode foi colocado na chocadeira pelas sucessivas concessões feitas ao sistema repressivo desde a redemocratização. O aparato repressivo herdado da ditadura empresarial-militar não foi desmontado. Ao contrário, escondeu-se nos esgotos das instituições no aguardo do momento para atuar à luz do dia, o que faz hoje.

Muitos foram os incentivos que, ironicamente, governos populares deram aos porões. Eu trabalhava em Nova Iguaçu quando lá foi instalada uma fábrica de armas que se diziam não letais. A morte de Genivaldo nos dá dimensão da letalidade, assim como os jornalistas que perderam a visão em decorrência de tiros de bala de borracha, disparados enquanto cobriam manifestações, sabem o quanto são lesivas. A ampliação do aparato repressivo não é substitutiva de outros métodos de violência antes empregados, pois se incorporam.

As armas de menor letalidade ampliam o aparato repressivo e os lucros. Elas precisam ser distribuídas aos agentes e usadas, pois têm prazo de validade. Assim, potencializam ainda mais a violência. Ferem, cegam e matam. E também atendem aos interesses dos que se enriquecem com a venda, e às vezes, dos encarregados das aquisições.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 04/06/2022, pag. 14. Disponível no link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/06/6415499-joao-batista-damasceno-armas-nao-letais-que-matam.html