domingo, 22 de outubro de 2023

Pela paz! Pela dignidade da pessoa humana!

 

A proposta apresentada pelo Brasil no Conselho de Segurança da ONU, visando ao estabelecimento de um caminho humanitário ante as ocorrências na Faixa de Gaza, foi aprovada por 12 dos seus membros e teve duas abstenções. Abstiveram a Rússia e o Reino Unido. Mas foi vetada pelos Estados Unidos. O horror das guerras atinge sobretudo aqueles que nela não estão envolvidos, especialmente as crianças, as mulheres e os doentes. A proposta brasileira era de estabelecimento de uma pausa humanitária na Faixa de Gaza.

O Conselho de Segurança da ONU, atualmente presidido pelo Brasil, é o órgão da entidade cuja função é zelar pela manutenção da paz e da segurança internacional. A Rússia exigia um cessar-fogo e a condenação aos ataques contra o hospital de Al Ahli, em que mais de 500 pessoas morreram atingidas por um míssil. Os EUA se opuseram. O Conselho de Segurança é o único órgão do sistema internacional capaz de adotar decisões obrigatórias para todos os 193 Estados-membros da ONU. Ele pode autorizar intervenção militar para garantir a execução de suas resoluções.

O Conselho é composto por 15 membros, sendo cinco membros permanentes com poder de veto: Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia e China. Os demais dez membros são eleitos pela Assembleia Geral para mandatos de dois anos. Uma resolução do Conselho de Segurança é aprovada pela maioria qualificada de nove votos. Um voto negativo de um membro permanente configura veto a uma decisão. As abstenções ou votos contrários dos membros não permanentes não configuram veto.

O Brasil tem todas as credenciais para contribuir com o estabelecimento da paz no Oriente Médio. É o país com a maior população de origem árabe no mundo. Quando a Família Real chegou ao Brasil em 1808, um árabe que residia na Quinta da Boa Vista cedeu sua casa, a melhor da cidade, para D. João VI e nela foi instalado o Palácio de São Cristóvão. Em 1876, D. Pedro II esteve no Líbano e no Oriente Médio e formulou convite para imigração de parte da população que sofria as agruras do Império Turco-Otomano, em estado terminal.

A história do Oriente Médio no final do século XIX, ainda dominado pelo Império Turco-Otomano desde a queda de Constantinopla em 1453, é emblemática, assim como a história do povo judeu. Ambos vivenciaram as perseguições dos que rejeitam os pobres. O assassinato do Czar Russo Alexandre II, em 1881, foi acompanhado de severas perseguições ao povo judeu no Leste Europeu. Os eventos ficaram conhecidos como Pogrons. A palavra tornou-se internacional após a onda de pogromm que varreu o sul da Rússia entre 1881 e 1884, que levou à emigração massiva dos judeus daquela região. De acordo com registros históricos, a imigração judaica da Rússia aumentou drasticamente naqueles anos, totalizando cerca de dois milhões nas quatro décadas seguintes.

Pogrom é uma palavra russa que significa causar estrago ou destruir violentamente. O termo se refere aos violentos ataques físicos da população do Leste Europeu contra os judeus, sobretudo no império russo. Tais ataques eram incentivados ou tolerados pelos agentes do Estado. O primeiro lugar onde tal tipo de incidente desumano ocorreu foi em 1821 em Odessa, na Ucrânia. Daquela região, precisamente da Bessarábia, veio para o Brasil, nos anos 20 do século XX, Berta Gleiser Ribeiro, ainda menina, trazida juntamente com sua irmã Genny Gleiser, pelo pai de ambas, Motel Gleiser. Perseguidas no país de origem a mãe de Berta suicidou-se. O pai, que migrara para arranjar trabalho no Brasil, voltou ao país de origem e trouxe as filhas. Mas Genny, adolescente, foi expulsa do Brasil por sua militância pelos direitos humanos. Libertada pelos marinheiros quando o navio atracou na França, o pai – que não sabia da libertação – foi ao encontro da filha, mas acabou preso e morreu num campo de concentração nazista. Genny participou da Resistência Francesa e depois da guerra migrou para os EUA. Berta, ainda criança, viveu sozinha no Brasil. Conheceu Darcy Ribeiro em 1943, casou-se com ele e morreu em 1997.

Nos seus melhores momentos o Brasil sempre foi acolhedor, tanto de judeus quanto de árabes. O Estado de Israel foi criado na gestão do primeiro presidente da ONU, o brasileiro Osvaldo Aranha, que atuava com forte apoio dos Estados Unidos. Ainda durante o Estado Novo, Osvaldo Aranha compunha a Sociedade dos Amigos da América, demonstrando seu viés estadunidense. Mais que razões humanitárias, foi a migração de judeus pobres do Leste Europeu para a Europa e EUA o que incentivou a criação do Estado de Israel.

Não se pode confundir o que faz a direita israelense com o povo israelense. Pesquisas indicam que o povo israelense desaprova o que o seu governo está fazendo. Da mesma forma não se pode confundir os palestinos com o braço armado do Hamas e suas brigadas. Mesmo o Hamas tem um braço político e uma entidade filantrópica não envolvida nos conflitos. Somente os que lucram com a guerra não querem a paz. O Brasil se rege pelos princípios da prevalência dos direitos humanos, defesa da paz e solução pacífica dos conflitos, dentre outros. Tais princípios e sua atuação ao longo da história tornam o Brasil um país credenciado para a proposição da paz entre os povos.

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 21/10/2023, pag. 11.


domingo, 8 de outubro de 2023

Os 35 anos da Constituição

Anteontem, dia 05, a Constituição da República completou 35 anos. Trata-se da mais democrática e avançada Constituição de todas as que o Brasil já teve. As anteriores foram a de 1824, outorgada com D. Pedro I; a de 1891, após o golpe militar que proclamou a República; a de 1934, após a Revolução de 30; a de 1937, após o golpe que instituiu o Estado Novo; a de 1946, após a destituição de Getúlio Vargas pelos militares e a de 1967, editada sob a pressão das baionetas e com prazo certo para promulgação, após o golpe empresarial-militar de 1964. A de 1969, embora com o nome de emenda constitucional, foi uma nova Constituição editada após a edição do AI-5, quando os ministros militares deram um golpe militar dentro do golpe empresarial-militar em andamento. Finalmente, após longo processo para a redemocratização, tivemos eleições para uma Assembleia Nacional Constituinte, em 1986.

A estrutura da Constituição da República brasileira de 1988 é a da Constituição portuguesa de 1976, decorrente da Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974. Tal como os portugueses que saíam da ditadura salazarista, mantida por Marcelo Caetano após a morte de Salazar, também saímos da ditadura empresarial-militar e fizemos uma Constituição tentando realizar justiça social e evitar os crimes cometidos contra a sociedade, contra a democracia e contra cidadania pelos que assaltaram o poder em 1964.

De todas as Constituições brasileiras é a única que eleva a dignidade da pessoa humana a fundamento da República, tal como a Constituição portuguesa, que, da mesma forma, consagra tal valor em seu artigo primeiro. O artigo segundo da Constituição portuguesa expressa que a República Portuguesa é um Estado de direito democrático.

Os militares que assaltaram o poder em 1964 tinham a concepção de que a democracia pode ser autoritária e que para ser democrática basta que tenha assentimento popular. Buscando tal assentimento os meios de comunicação foram censurados e a opinião pública manipulada, as liberdades foram suprimidas e os nacionalistas foram presos, torturados, mandados para o exílio, banidos, mortos ou desaparecidos. Mas mesmo assim a sociedade reagiu e, em 1974, impôs à ditadura uma grande derrota.

A Assembleia Nacional Constituinte editou uma Constituição com os olhos voltados para o horror de quem vivenciou as instituições sob a sola dos coturnos. A sociedade civil e os Constituintes buscaram se preservar dos horrores praticados nos quartéis, transformados em centros de tortura. O método do qual resultou a morte sob tortura e desaparecimento do corpo do pedreiro Amarildo, na sede da UPP da Rocinha, é parte do entulho deixado por aquele período.

Com a Constituição de 1988, o Judiciário foi constituído como efetivo poder do Estado, com efetivas garantias para realização dos valores nela consagrados. Uma outra instituição que em toda a sua existência não tinha poderes efetivos, diante dos demais poderes, foi o Ministério Público. Criado por Campos Sales, instituidor do arranjo institucional denominado Pacto Coronelista, o Ministério Público foi concebido pelo primeiro ministro da Justiça republicano como instituição persecutória para o enquadramento das oligarquias opositoras. A ideia, em 1988, foi que fosse o órgão controlador de eventuais desvios dos demais poderes.

Desde sua instituição, o Ministério Público nunca fora autônomo. As ações diretas de inconstitucionalidades somente poderiam ser propostas por seus chefes institucionais, que eram nomeados ou demitidos, livremente, pelo presidente da República ou governadores de Estado. Assim, muitas leis inconstitucionais jamais tiveram suas incompatibilidades com a Constituição declaradas.

Na Primeira República, o Judiciário sequer assumiu os poucos poderes que tinha; não assumiu seu papel de dizer o Direito e realizar justiça. Estava vinculado às oligarquias. João Mangabeira, em 1949, por ocasião do centenário do nascimento de Rui Barbosa, disse que o Judiciário foi o poder que mais falou na República, por não ter realizado o seu papel.

Victor Nunes Leal, em sua tese, da qual resultou o livro 'Coronelismo, Enxada e Voto', igualmente não foi elogioso ao Judiciário. Nomeado para o STF em 1960, em seus poucos anos como ministro, contribuiu decididamente para a afirmação do Estado de Direito. E por sua concepção altiva é que foi cassado quando editado o AI-5, com o qual os gorilas fardados estenderam sobre o país o manto da obscuridade.

Hoje, o Judiciário é um garantidor da cidadania e tem legitimidade democrática para sua atuação. Não é necessária interpretação imprópria, como alguns fazem do art. 142 da Constituição, para vislumbrar os poderes constitucionais do Judiciário. Eles estão expressos. A ausência de voto popular não lhe retira a legitimidade democrática. Isto porque realiza a vontade expressa pelos representados, titulares do poder. O Poder Constituinte editou as políticas a serem implementadas e aos representantes do povo cabe elaborar as leis para fundamentar a realização do Direito e da Justiça.

O Judiciário tem a incumbência de implementar a ordem jurídica democrática, garantir os direitos e liberdades individuais e impulsionar a implementação dos programas constitucionais visando à justiça social. Crítica se pode fazer ao Judiciário se exorbita de seu papel de realizador do Direito e da Justiça determinados pela ordem jurídica. Falha apenas quando deixa de realizar seu papel institucional

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 07/10/1998, pag. 11. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/10/6720070-os-35-anos-da-constituicao.html