sábado, 25 de setembro de 2021

Juízes, democracia e cidadania em tempos sombrios


Consumado o golpe empresarial-militar de 1964 os juízes no Brasil receberam pressão de setores da imprensa e do próprio Judiciário que os conclamavam a interpretar as leis de acordo com a vontade do regime. Mas juízes têm as garantias formais da inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de seus vencimentos a fim de que possam exercer suas funções com independência, sem subordinação a interesses internos ou externos.

A independência judicial, com liberdade de interpretar as leis e aplicá-las adequadamente, bem como formular juízos sobre provas produzidas, não é um privilégio deferido aos juízes. Ser independente é um dever funcional dos juízes. É um atributo para o cargo. Sem independência funcional a magistratura perde a sua razão de existir, pois se mostraria incapaz de garantia dos direitos daqueles que são oprimidos, seja pelo poder econômico ou pelo poder político.

No primeiro ano do regime empresarial-militar a independência judicial foi testada por aqueles que não queriam cumprir suas decisões. O presidente do STF ameaçou entregar as chaves à sentinela de plantão se ordem de habeas corpus não fosse cumprida. Em 1967 foi editada uma nova Constituição. Mesmo com a feição do regime que se instituíra, era um marco que deveria ser obedecido por aqueles que a editaram, mas que insistiam em atuar à sua margem.

A fim de fugir aos marcos legais, em dezembro de 1968 foi editado o Ato Institucional nº 5 (AI-5) que suprimiu o direito ao habeas corpus, instituiu o arbítrio e possibilitou a cassação de juízes que não fossem colaboracionistas. Já nos primeiros dias do mês de janeiro de 1969 três ministros do STF foram cassados: Victor Nunes Leal, Hermes de Lima e Evandro Lins e Silva. Os ministros foram afastados por seus apegos à legalidade constitucional e por suas formas de atuação independente.

Preparando processo para a abertura política e devolução do poder dos juízes de dizer do Direito, mas sob controle do regime, o general-presidente Ernesto Geisel fechou o Congresso em abril de 1977 e reformou, por decreto, a Constituição, notadamente no que se referia ao Poder Judiciário. Mas não foi só. No último dia do seu mandato, em 14/03/1979, editou a Lei Complementar 35, pela qual ampliou o poder disciplinar sobre a atuação dos juízes.

Vivemos tempos sombrios. A magistratura está sob ataque de formas diversas. Fogos de artifício sobre o STF, ataques midiáticos, representações, tentativas de impeachment de ministros do STF em decorrência do exercício de suas funções etc. Por diversos modos tenta-se minar a independência judicial. O que está em questão são as prerrogativas da magistratura. O acossamento a uns pode ser um sinal aos demais magistrados que insistam no exercício do dever de independência funcional. O enfraquecimento da magistratura independente e comprometida com a realização substancial da justiça implica no próprio enfraquecimento da democracia e dos direitos próprios de uma sociedade cidadã.

O mundo passa por momento no qual já não se disfarçam a subtração de direitos e a apropriação do que é público. As riquezas se concentram, a fome e a miséria se alastram. As reformas que se fazem já não o são para garantir os direitos fundamentais do mundo do trabalho, mas para reduzi-los em proveito de uma ordem que não haverá de semear senão a desordem.

Muitos dos ataques que se fazem à magistratura e aos magistrados têm sido resultado do desempenho de suas funções. Aqueles que passarem sem arranhões pela tormenta que nos atinge certamente serão perguntados no futuro se foram omissos ou se estavam cumpliciados com os algozes das liberdades e dos direitos ou se apenas tiveram sorte de não serem atingidos.


Publicado originariamente no jornal O DIA em 25/09/2021. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/09/6242080-joao-batista-damasceno-juizes-democracia-e-cidadania-em-tempos-sombrios.html

 

sábado, 11 de setembro de 2021

Tolerância com o intolerável


O Brasil vive momento singular. Em toda nossa história, mesmo os setores mais arcaicos sempre se posicionaram em favor da racionalidade, da Cultura, do progresso, da fraternidade e da ajuda humanitária aos desvalidos. Claro que tais discursos sempre estiveram permeados de boa dosagem de cinismo e hipocrisia. Mas, nenhum grupo jamais discursou em favor da barbárie, da eliminação física de seus semelhantes ou da incivilidade.

A elite política no Brasil sempre se mostrou comprometida com a Cultura e a Educação. Mesmo com formação limitada a pouca ilustração, ninguém jamais se orgulhou de ter opinião sobre assunto que não tinha conhecimento. Ao contrário, quem não tinha conhecimento buscava embasar sua opinião em ponto de vista alheio, pois o ancoramento em discurso de autoridade legitimada legitimava o interlocutor.

Durante o Império, os filhos da aristocracia eram bem formados. Embora vivessem do produto da escravidão, seus discursos eram em favor da liberdade. Ninguém se orgulhava da ignorância nem batia no peito para defender o indefensável. O escritor José de Alencar inseriu a questão indígena na literatura brasileira, a qual inaugurou. O Guarani e Iracema são obras clássicas deste período. Embora defendesse a escravidão o fazia escondido. As Cartas a Favor da Escravidão foram publicadas sob pseudônimo e os organizadores das várias versões de suas obras completas omitem estas Cartas, consideradas vergonhosas.

Da proclamação da República à Revolução de 1930 a elite política era formada por bacharéis e os presidentes tiveram a melhor formação dentre outros de nossa história, ainda que suas bases políticas fossem o Brasil arcaico da economia cafeeira. Sob o manto da hipocrisia e do jeitinho construímo-nos fundados no imaginário da terra abençoada por Deus, da cordialidade positiva e do país do futuro. Com a certeza na frente e a história na mão vivíamos com a arte de viver da fé, mesmo sem saber fé em que. Mas, o Brasil mudou.

Durante a ditadura empresarial-militar órgãos públicos militares e civis, foram transformados em centros de tortura, estupros, assassinatos, esquartejamentos e desaparecimentos de brasileiros considerados inimigos do regime. Mas ninguém discursava defendendo o que fazia nos porões. Os discursos eram em favor da democracia e da liberdade. A redemocratização do país se operou sob o comando dos mesmos setores que haviam instituído o arbítrio e a truculência.

O empresariado industrial, comercial e de comunicação que haviam custeado a repressão vestiram nova roupagem e passaram a defender a democracia. Uma nova esquerda, festiva e conciliatória, foi incensada pelos artífices da transição para substituir a esquerda tradicional, que tinha bases fundadas nos interesses concretos do mundo do trabalho.

Os nacionalistas, principais atingidos durante a ditadura, foram chamados de jurássicos e deslegitimados. A ditadura editou lei isentando os seus agentes de responsabilidade pelas truculências que praticaram contra o povo brasileiro. Mesmo sem as ofensas físicas aos brasileiros, a ditadura já teria sido terrível, pois plantou as bases para a inviabilização do Brasil como país soberano. As atrocidades eram apenas o meio para atingimento deste fim, a serviço do capital estrangeiro.

Com a redemocratização convivemos tolerantemente com os que praticaram intolerância durante a ditadura empresarial-militar. E estamos pagando o preço. Por não terem sido responsabilizados acreditam que podem nos chantagear e que há a possibilidade de repetirem a história.

O Judiciário se negou a rever a lei da anistia e considerou legítima uma lei promulgada pelos algozes da liberdade em benefício próprio. Pelo Brasil, juízes continuaram a ser constrangidos pelo poder local, às vezes sob as vistas grossas dos tribunais que os haveriam de apoiar. Mas, a conciliação era considerada o melhor caminho e a um juiz acossado era oferecida uma remoção “para não gerar polêmica”.

Os assassinatos da juíza Patrícia Acioli e da vereadora Marielle Franco foram recados ao Judiciário e ao Legislativo do que são capazes os filhotes dos porões. Pelo Brasil a fora há outros casos. Essas milícias, elevadas ao poder nacional, hoje acreditam poder constranger o Supremo Tribunal Federal (STF). Em nome da conciliação e da cordialidade toleramos até hoje o intolerável. Mas, as instituições precisam se colocar em seus lugares e inadmitir sejam desrespeitadas, sob pena de ficarem impedidas de exercer seus papéis, imprescindíveis para as liberdades públicas. Não podemos tolerar o intolerável.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 11/09/2021. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2021/09/6232290-joao-batista-damasceno-tolerancia-com-o-intoleravel.html