O Judiciário, no Brasil, é um poder do Estado. Existe
para a realização substancial e não apenas formal do Direito. Aos juízes são
asseguradas as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade
de vencimentos, para que possam atuar como contrapoder na garantia dos direitos
de quem os detenha, ante violações pelo poder político (civil ou militar) ou
poder econômico, expresso pelas corporações.
Mas, juízes vêm confundindo seus papéis
institucionais. Alguns oriundos de fileiras policiais ou militares, ou
conviventes em tal parcela da sociedade, colocam-se como “combatentes a serviço
do bem”, quando têm o papel de árbitros das demandas e realizadores dos
direitos e garantias fundamentais.
Decretada a intervenção na
governadoria do Estado do Rio de Janeiro e subtraída do governador a
competência para nomear o secretário de segurança e organizar os serviços, foi
nomeado pelo poder interveniente um general para gerir a área. O interventor
poderia ser qualquer pessoa, militar ou civil. Mas o Presidente da República
optou por nomear um general. Não se trata de intervenção militar, pois quem
intervém é o Presidente da República e não o general.
A nomeação de um general
para interventor não desnatura o ato e não a torna intervenção militar, apesar
do disposto no parágrafo único do art. 1º do Decreto 9288/2018. O interventor,
autoridade político-administrativa por força da designação, haveria de cumprir
o plano da intervenção que o decreto, inconstitucionalmente, não explicitou.
Na lacuna do decreto de intervenção, onde falta explicitação
do que fazer e “condições de execução”
exigidos pelo art. 35 da Constituição, logo um general de pijama pôs-se
a falar. O general de pijama, em meio à polêmica sobre o possível uso de
mandados difusos (abrangentes a ponto de não identificar as moradias a serem
vasculhadas), sugeriu que juízes “sejam levados” para as operações das
forças de segurança durante a intervenção no Rio de Janeiro. Na opinião do
general de pijama, os magistrados deveriam estar presentes para conceder ou
negar mandados de busca e apreensão individuais ou coletivos no terreno e
durante a ação.
Depreendeu-se da entrevista do general de pijama o que
Exército fez no Haiti com pretos e pobres, quando o Brasil teve a ousadia de
prestar serviço sujo para as potências estrangeiras naquele país e a leviandade
de se achar capaz de ocupar assento no Conselho de Segurança da ONU.
O general de pijama defendeu que o Judiciário dê
respaldo a ações mais duras das forças de segurança, inclusive para que
militares pudessem atirar para matar ao avistar suspeitos “da mesma forma como
ocorria na missão da ONU”, disse.
Para concluir, o general de pijama falou que estava na
hora do Judiciário se tomar de patriotismo e favorecer a ação de quem está “do
lado da lei”.
O que o Brasil fez ao mandar tropas para o Haiti foi reprimir pretos e pobres em condições de
miserabilidade e treinar para atuação nas favelas brasileiras, reprimindo população
com as mesmas características físicas, sociais, culturais e econômicas, ou seja,
pretos, pobres, favelados e semialfabetizados. Os horrores praticados no Haiti,
em “missão de paz” (Minustah),
estão relatados em livros. Mas, a pior ocorrência foi o suicídio do General-de–divisão
Urano Teixeira da Mata Barcelos, ante o sofrimento que vivenciava “no terreno e
durante as ações”.
Contaminados por um tipo de visão do mundo, oriundo da
sociologia estadunidense, que identifica a classe social a partir da renda,
escolaridade e consumo, juízes – que se acreditam classe dominante – editaram
nota se colocando à disposição das forças da lei, no contexto da intervenção, para
colaborar com o sucesso do duro trabalho que será empreendido, disseram.
O que define o papel de classe de uma pessoa é o seu
poder sobre os meios de produção, de onde decorre o seu poder político com o
qual gerencia os seus interesses.
Juízes que se avaliam pela renda, escolaridade e
consumo ignoram a real estatura de suas funções e deixam de se considerarem
poder do Estado e se convertem em colaborados de agentes administrativos
militares, ou seja, assumem posição subalterna demonstrando que “as garantias
legais nem sempre podem suplantar as fraquezas humanas” (Leal, Victor Nunes.
Coronelismo Enxada e Voto. 1948:158).
Há magistrados e membros do MP que ostentam em redes sociais posse de
fuzis, que teriam sido empregados em treinamento, o que poderia (se não se
tiver autorização para o emprego) expressar infração ao disposto no art. 16 da
Lei 10.826 de 22/12/2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de
armas de fogo e munição e sobre o Sistema Nacional de Armas/Sinarm. Desde
27/10/2017 a posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (fuzis
ostentados, por exemplo) é considerado crime hediondo. Mas, não se pode pensar
que o approach de magistrados e membros do Ministério Público com o
Exército, colocando-se à disposição para apoio, se destine a obtenção de autorização
para brincar com tais armamentos. A grandeza que se exige da função de um
magistrado é incompatível com tamanha pequenez.
O Brasil é o terceiro país com o maior número de
encarcerados do mundo, seja em números absolutos ou proporcionais à população.
Um movimento de combate à impunidade, se avaliasse o perfil de quem é preso,
torturado, condenado, tem a casa revirada sem mandado ou com mandados difusos
expedidos por juízes predispostos a enxergarem os pobres como cidadãos de segunda
categoria, veria que o problema do Brasil é a seletividade do sistema de
justiça; não a impunidade.
Todos ao longo da vida cometem algum tipo de crime.
Seja o sapateiro que vende o sapato não procurado pelo cliente para se
ressarcir do custo do conserto ou quem colhe uma flor numa reserva ambiental. A
distinção está entre os que cometem crimes e os que são etiquetados como
criminosos. Não houvesse seletividade no Sistema de Justiça, um magistrado que
estivesse ao lado de um colega em treinamento com fuzil, sem autorização legal,
lhe daria voz de prisão pela prática do crime hediondo.
O sistema penal de justiça no Brasil se converteu em
tábua de salvação para os que querem manter o status quo e impedir
reformas estruturais que possam, efetivamente, fazer justiça. Assim, o Direito
Penal – concebido modernamente – como uma contenção do poder punitivo do
Estado, se converteu em medida de contenção dos anseios dos pobres, povos
periféricos, excluídos do acesso à justiça. Não há justiça social. A única
justiça que os pobres alcançam é a justiça criminal; ou melhor, são alcançados
por ela.
Mas, a seletividade que atinge os moradores de
periferia também é capaz de atingir Juízes, quando se manifestam em prol dos
excluídos. Os juízes que se manifestaram contra o impeachment suportaram
representação visando a processo administrativo disciplinar; os que se
manifestaram favoravelmente não foram incomodados, ainda que alguns tenham
vestido a toga para manifestar apoio à quebra do sigilo telefônico da então Presidenta
da República e outros tenham ido às manifestações pelo impeachment e
depois decidido causas contra os que eram atingidos pelo golpe.
Juízes estão abdicando do seu papel de poder do Estado
e se contentando com o padrão renda-escolaridade-consumo. Estão abdicando da
parcela de poder lhes deferida pela ordem constitucional e se contentando com o
consumismo que caracteriza os funcionários bem pagos do estamento burocrático
do Estado. Daí o apego aos “penduricalhos” e ameaça de greve para manter o
auxílio moradia (AMor), de flagrante inconstitucionalidade. Este e outros “penduricalhos”
foram concedidos em substituição à revisão do subsídio que deveria ter sido
feita anualmente, desde o ano de 2005, por índice geral, na mesma data e que,
igualmente, atendesse aos interesses de todos os servidores públicos e
aposentados do setor público.
Os tribunais, ao invés de exigir a revisão anual dos
subsídios dos magistrados, com igual índice e na mesma data para todos os
agentes públicos, preferiam o “jeitinho” de garantir a reposição apenas aos
magistrados – por meio de “penduricalhos” - em contrariedade à Constituição que
veda qualquer gratificação ou outra
espécie remuneratória (art. 39, §
4º) e que revogou todos os dispositivos da LOMAN (LC 35/79) com ela
incompatíveis.\
Se o Poder Judiciário de dispõe a ser colaborador ou
auxiliar na execução de políticas públicas, quem haverá de dirimir os conflitos
de interesses entre os executores de tais medidas e os cidadãos que tenham seus
direitos atingidos?
Não se pode negar aos juízes o direito de manifestação
do pensamento. E isto é também garantido constitucionalmente. Mas, a manifestação
político-ideológica há de estar no campo abstrato. Se o juiz deseja se
manifestar sobre caso concreto não pode ser censurado. Mas, estará de antemão
se autodeclarando suspeito, por parcialidade, para julgar o caso concreto sobre
o qual se manifestou.
Juízes que se manifestam sobre casos concretos e se
colocam à disposição de uma das partes, oferecendo apoio, perdem a qualidade de
julgadores isentos. E isto pode ser danoso à sociedade que demanda um
judiciário independente e capaz de exercer seu papel como contrapoder em
proveito de quem tenha direitos violados, por agentes do Estado, da classe ou de
fragmento de classe que utilizam os serviços estatais para gerenciamento de
seus interesses econômicos.
O Judiciário, na nossa ordem jurídico-constitucional,
é poder independente e exerce parcela da soberania do Estado. Sua atribuição
constitucional é incompatível com o papel de colaborador ou auxiliar na
execução de políticas públicas. O papel do Poder Judiciário no Brasil é maior
que o pretendido por aqueles que, sem visão institucional, o querem
amesquinhar.