Não é possível corroer tal direito em nome de uma superproteção a mulheres que se dizem vítimas de ofensas relacionadas a seu gênero ou sexualidade
A atribuição ao
ex-ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos), logo
exonerado, de condutas de importunação e assédio
sexual sugere uma advertência.
Não é possível se prosseguir corroendo a garantia da presunção de
inocência em nome de uma superproteção a mulheres que se dizem
vítimas de ofensas relacionadas a seu gênero ou sexualidade.
Sustenta-se que sua palavra seria inquestionável, sempre
verdadeira e suficiente até mesmo quando sob anonimato. Assim advogam-se
condenações sem processo, simplesmente desprezando o princípio "nulla
poena sine judicio" ("nenhuma pena sem lei"). O processo se
tornaria uma farsa, pois, antes mesmo de seu início, já se teria estabelecido a
verdade, a ser veiculada por uma acusação incontestável.
Já nas primeiras eras de elaboração do direito questionava-se
não apenas a solitária palavra de autoproclamadas vítimas, mas a própria
palavra de uma só testemunha. É lição do direito romano: "testis unus,
testis nullus" ("testemunha única, testemunha nula"). Mas, há
lição mais recente, consagrada com os direitos humanos fundamentais: dispõe a
garantia da presunção de inocência que a acusação não passa de hipótese a ser
ou não comprovada. Como os demais elementos trazidos pela acusação, a palavra
da apontada vítima nada mais é do que uma versão do alegado fato, sujeitando-se
a questionamentos e dúvidas que, submetidos ao contraditório, serão ou não
desfeitos. Antes e no curso do processo não há verdade, toda palavra de
qualquer apontada vítima sempre sendo questionável. Verdade sobre a alegada
prática de um crime só é algo possível de ser reconhecido se e quando acontecer
condenação definitiva ao final de processo regularmente desenvolvido.
O discurso que não se acanha em violentar a presunção de
inocência, pretendendo tornar inquestionável a palavra de mulheres vítimas,
apela para uma suposta posição de fragilidade e opressão em que estariam. Mas,
no processo penal, vítimas não são frágeis ou oprimidas. Estão sim alinhadas
com o Estado, com o Ministério Público, com a acusação; isto é, com o lado
forte da relação ali estabelecida, visando impor o poder punitivo —poder dado
ao Estado de, através da imposição da pena, deliberadamente infligir sofrimento
a autores de condutas criminalizadas.
A Lei Maria da Penha estabelece que, após o registro do
boletim de ocorrência por violência doméstica, o caso deve ser remetido ao juiz
em,
ofrer o peso desse poder. Esclarece o jurista italiano Luigi
Ferrajoli: "O direito penal, em seu modelo garantista, equivale
à lei do mais fraco que, se no momento do crime é a vítima, no momento do
processo é sempre o réu, cujos direitos e garantias são —essas sim— leis do
mais fraco".
Constrangimentos ao livre exercício da sexualidade, desigualdade
entre os gêneros ou quaisquer outras relações hierarquizadas e
discriminatórias jamais poderão ser superados com o sacrifício de direitos
fundamentais. Ao contrário. Direitos fundamentais, como a garantia da presunção
de inocência, pilar do Estado democrático de Direito, hão de ser sempre
reafirmados. Só assim poderemos ter sociedades mais iguais e mais justas.
Maria Lucia Karam, Juíza-auditora na Justiça Militar
Federal e defensora pública no Rio de Janeiro; foi juíza de direito no TJ-RJ.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/09/presuncao-de-inocencia-tambem-vale-para-acusacoes-de-cunho-sexual.shtml