domingo, 29 de setembro de 2024

Presunção de inocência também vale para acusações de cunho sexual


 Não é possível corroer tal direito em nome de uma superproteção a mulheres que se dizem vítimas de ofensas relacionadas a seu gênero ou sexualidade

atribuição ao ex-ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos), logo exonerado, de condutas de importunação e assédio sexual sugere uma advertência.

Não é possível se prosseguir corroendo a garantia da presunção de inocência em nome de uma superproteção a mulheres que se dizem vítimas de ofensas relacionadas a seu gênero ou sexualidade.

Sustenta-se que sua palavra seria inquestionável, sempre verdadeira e suficiente até mesmo quando sob anonimato. Assim advogam-se condenações sem processo, simplesmente desprezando o princípio "nulla poena sine judicio" ("nenhuma pena sem lei"). O processo se tornaria uma farsa, pois, antes mesmo de seu início, já se teria estabelecido a verdade, a ser veiculada por uma acusação incontestável.

Já nas primeiras eras de elaboração do direito questionava-se não apenas a solitária palavra de autoproclamadas vítimas, mas a própria palavra de uma só testemunha. É lição do direito romano: "testis unus, testis nullus" ("testemunha única, testemunha nula"). Mas, há lição mais recente, consagrada com os direitos humanos fundamentais: dispõe a garantia da presunção de inocência que a acusação não passa de hipótese a ser ou não comprovada. Como os demais elementos trazidos pela acusação, a palavra da apontada vítima nada mais é do que uma versão do alegado fato, sujeitando-se a questionamentos e dúvidas que, submetidos ao contraditório, serão ou não desfeitos. Antes e no curso do processo não há verdade, toda palavra de qualquer apontada vítima sempre sendo questionável. Verdade sobre a alegada prática de um crime só é algo possível de ser reconhecido se e quando acontecer condenação definitiva ao final de processo regularmente desenvolvido.

O discurso que não se acanha em violentar a presunção de inocência, pretendendo tornar inquestionável a palavra de mulheres vítimas, apela para uma suposta posição de fragilidade e opressão em que estariam. Mas, no processo penal, vítimas não são frágeis ou oprimidas. Estão sim alinhadas com o Estado, com o Ministério Público, com a acusação; isto é, com o lado forte da relação ali estabelecida, visando impor o poder punitivo —poder dado ao Estado de, através da imposição da pena, deliberadamente infligir sofrimento a autores de condutas criminalizadas.

A Lei Maria da Penha estabelece que, após o registro do boletim de ocorrência por violência doméstica, o caso deve ser remetido ao juiz em,  

ofrer o peso desse poder. Esclarece o jurista italiano Luigi Ferrajoli: "O direito penal, em seu modelo garantista, equivale à lei do mais fraco que, se no momento do crime é a vítima, no momento do processo é sempre o réu, cujos direitos e garantias são —essas sim— leis do mais fraco".

Constrangimentos ao livre exercício da sexualidade, desigualdade entre os gêneros ou quaisquer outras relações hierarquizadas e discriminatórias jamais poderão ser superados com o sacrifício de direitos fundamentais. Ao contrário. Direitos fundamentais, como a garantia da presunção de inocência, pilar do Estado democrático de Direito, hão de ser sempre reafirmados. Só assim poderemos ter sociedades mais iguais e mais justas.

Maria Lucia Karam, Juíza-auditora na Justiça Militar Federal e defensora pública no Rio de Janeiro; foi juíza de direito no TJ-RJ.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/09/presuncao-de-inocencia-tambem-vale-para-acusacoes-de-cunho-sexual.shtml

Para punir o homem não basta a palavra da mulher. Para protegê-la, sim!


 Companheiros, aqui é Tânia Mandarino, advogada.

Advogada de mulheres em situação de violência doméstica e também advogada de mulheres e homens em situação de falsas denúncias.

De antemão, quero deixar claro: eu não estou aqui defendendo nem Silvio Almeida nem Anielle Franco, porque as investigações dirão o que de fato aconteceu. Eu não boto minha mão no fogo por nenhum dos dois.

Eu estou gravando este áudio, porque tenho ouvido tanta besteira nos grupos, tanta besteira, que quis vir aqui contribuir, mesmo sob o risco de ser cancelada pelo identitarismo vigente que está causando esse estrago no país.

Bem, vamos lá, quero ser rápida para não cansar.

A palavra da mulher tem prevalência absoluta, mas nunca, jamais, para o efeito de condenação do suposto assediador, ou importunador, como é o caso da ministra Anielle.

Pela Lei Maria da Penha, quando a mulher fala, a palavra dela deve ser levada em consideração. É para efeitos de medida protetiva.

O que é uma medida protetiva? É uma medida para acautelar o direito, tirar a mulher da situação de risco que ela está relatando.

Aí, vai ser conforme o caso: afastamento do suposto agressor do lar, proibição de aproximação dela, da sua família, das suas testemunhas, por um raio de 200 a 500 metros e outras proibições. Para isso, basta a palavra da mulher.

— Ah, Tânia, aí, quer dizer que o homem já foi condenado?

Claro que não. Se a protetiva é só uma medida cautelar, para o homem ser condenado vai ter que ser aberto um inquérito e vai ter, sim, que apresentar provas.

Não é porque eu, Tânia, recebo uma medida proteção do meu agressor ou suposto agressor, que ele foi condenado como agressor, sem provas. Isso não existe no Direito brasileiro.

Então, a bem da verdade, para reestabelecimento da ordem jurídica inclusive no país, para que as pessoas não fiquem ensinando Direito errado nos grupos a pretexto só de solidariedade com as mulheres.

Primeiro, a palavra da mulher em situação de violência doméstica tem especial prevalência, assim como a palavra da criança, sim, quando ela diz que está sendo abusada. E imediatamente elas devem ser protegidas.

No caso da ministra Anielli, ela não está em situação de violência doméstica, ao que me parece, a não ser que eles tenham tido um caso. Daí, sim, configura violência doméstica. E nem tampouco ela é uma criança.

Ainda também não está em situação de assédio sexual, porque o ministro Silvio Almeida não é superior hierarquicamente a ela.

Portanto, pensem bem antes de dizer que basta a palavra da mulher para o homem ser punido, como eu acabei de ouvir agora. Eu não encontro isso em nenhuma regra do ordenamento jurídico brasileiro.

Por isso, estou vindo aqui me manifestar, coisa que demorei para fazer, mas realmente está muito difícil.

No caso em questão, por mais que você queira ser solidária com esta ou com aquela figura, é preciso de provas. Não basta a palavra da mulher; não, senhor e não, senhora.

Só as provas dirão se a pessoa acusada realmente cometeu aquilo e deve ser responsabilizada criminalmente, no caso por importunação, não por assédio, repito.

Ou se houve uma falsa denúncia que também deve ser responsabilizada criminalmente pelo artigo 339 do Código Penal.

Qualquer dúvida, fico à disposição. Com toda a minha solidariedade ao Brasil, ao governo federal, que está enfrentando esta questão abjeta pela forma como vazou.

E nós penando aqui, em ano eleitoral, sabe, sofrendo por causa de uma questão tão idiota, que foi colocada de uma forma ridícula para uma ONG, é isso.

Querem me cancelar, fiquem à vontade. Abraços.

Tânia Mandarino

Fonte: https://www.viomundo.com.br/contramare/tania-mandarino-para-punir-o-homem-nao-basta-a-palavra-da-mulher-para-protege-la-sim.html

terça-feira, 24 de setembro de 2024

‘A Esquerda Não é Woke’: Filósofa explica origens da política identitária; entenda o termo

 

‘A Esquerda Não é Woke’: Filósofa explica origens da política identitária; entenda o termo

No centro do argumento de Susan Neiman está a tese de que a verdadeira genealogia do wokismo encontra-se em pensadores alheios à vibrante tradição intelectual da esquerda defendida por ela; conheça o movimento woke ou identitário

 

Por Eduardo Wolf

26/03/2024

O que une um personagem da República de Platão, o pensador pós-moderno francês Michel Foucault e o teórico nazista alemão Carl Schmitt? Pouca gente dirá que a resposta seja a esquerda woke ou identitária. Pois é isso – e muito mais – que o leitor encontrará de surpreendente no livro da filósofa americana Susan Neiman.

Em A Esquerda Não é Woke, que a Editora Âyiné publica agora no Brasil, a autora não ouviu os muitos alertas de amigos (de esquerda, como ela) para que não mexesse nesse vespeiro e decidiu pegar a fera pelos chifres: reivindicar para a esquerda a herança da tradição Iluminista, erguer mais uma vez a bandeira do universalismo e rechaçar as tendências da esquerda contemporânea que atendem pelo nome de woke. Ao fazê-lo, Neiman produziu um livro acessível, de leitura fluente e não acadêmico, ainda que sem abrir mão de sua palpável erudição e aguda capacidade analítica

No coração de seu argumento está a tese de que a verdadeira genealogia do wokismo encontra-se em pensadores alheios à vibrante tradição intelectual da esquerda defendida por ela.

A filósofa americana Susan Neiman, autora de 'A Esquerda Não é Wonke'

A filósofa americana Susan Neiman, autora de 'A Esquerda Não é Wonke' Foto: James Starrt/EditoraÂyiné

É nesta genealogia que, para a surpresa de muitos bons leitores, a figura de Trasímaco, o jovem amoralista que na República afirma que a justiça é simplesmente uma conversa-fiada para enganar os tolos, aparece lado a lado de Michel Foucault – que, na visão da autora, é apenas uma versão renovada e academicamente mais brilhante do mesmo amoralismo sofístico antigo.

Para que possamos compreender melhor como a explicação de Susan Neiman está estruturada, vale a pena recuar um pouco e reconhecer terreno em que se está pisando ao falar de woke ou identitarismo.

Ao longo dos anos 2010, tornou-se gradativamente dominante no cenário político americano um tipo de discurso à esquerda no espectro político que mais e mais centrava-se nas identidades (raças e gêneros sobretudo, mas não apenas), relegando a segundo plano velhas e costumeiras questões de classe social, situação econômica e cidadania política – tradicionais pautas da esquerda, que as lia pelas lentes da inclusão e do igualitarismo.

Ora, qual o problema desse protagonismo das identidades? Em si mesmo, nenhum, responde Neiman. Pelo contrário, todos reconhecem na linguagem das emoções que o chamado movimento woke ou identitário emprega aquela mesma linguagem das emoções que tradicionalmente definia a esquerda – a saber, “empatia pelos marginalizados, indignação com a situação dos oprimidos, determinação na busca de que os erros históricos sejam corrigidos”.

Ocorre que, a despeito das genuínas boas emoções que estão na origem do woke; apesar da bondade e correção de suas intenções, seus defensores, na verdade, aderiram a conceitos, teorias e visões de mundo abrangentes que, na verdade, são a antítese de tudo aquilo que a esquerda deveria buscar. Em suma, têm a teoria errada para os propósitos certos.

Neiman dedica o primeiro capítulo a mostrar que a esquerda deveria se manter fiel à tradição do universalismo, a tudo aquilo que temos de comum e que pode unificar lutas, reivindicações e realizações humanas. Com isso, afirma que se deve rechaçar o tribalismo que caracteriza a atual política identitária encontrada em nomes tão diversos como Judith Butler e Ibram X. Kendi, um tribalismo que “não apenas reduz os múltiplos componentes de nossas identidades a um só: ela essencializa o componente sobre o qual temos menos controle”, o gênero ou a raça.

No segundo capítulo, autora sustenta que a esquerda deveria se manter fiel à crença na justiça, que apesar de todas as falhas, não deveria ser percebida como mero exercício hipócrita do poder, pois se não há justiça de fato, pouco nos resta além do amoralismo aterrorizante de Foucault, para quem só o que há é o poder em estado bélico permanente, que ocasionalmente, “assume a forma de paz e de Estado”, fazendo da “paz uma forma de guerra, e do Estado um meio de travá-la”.

Que esse raciocínio ecoe teses do nazismo de Carl Shmitt e tenha sido encampado como retórica de parte da esquerda para afirmar que toda a história humana nunca foi mais do que um amontoado de casos de puro poder cinicamente travestido de justiça, direitos, democracia ou paz, é algo assustador.

Capa do livro A Esquerda Não é Woke, de Susan Neiman

Capa do livro A Esquerda Não é Woke, de Susan Neiman Foto: Editora Âyiné

À defesa do universalismo e da distinção real entre justiça e poder Neiman acrescenta, no terceiro capítulo, a convicção no progresso que sempre animou os ideias iluministas, bem como um amplo espectro ideológico no século 19, com destaque para o pensamento de Karl Marx. Contra a aposta iluminista, é novamente Foucault quem se destaca como guru da esquerda woke, resumindo a história da humanidade a uma mera substituição de violências, “prosseguindo, assim, de dominação em dominação”.

Universalismo, justiça, progresso: todos esses princípios, argumenta Neiman, podem ser compartilhados pelos liberais e pela esquerda de matriz iluminista a que se filia a autora. Nenhum deles define a esquerda woke. E a razão apresentada pela filósofa é que as fontes intelectuais da política identitária não são iluministas, muito menos de esquerda.

O pós-moderno Foucault comparece, na leitura de Neiman, até mesmo como possível porta-voz do neoliberalismo, e o escândalo da autora com o interesse da esquerda nas posições tribalistas reacionárias de Carl Shmitt transparece a cada linha. Como explicar, então, que tenham enfeitiçado a esquerda? A resposta de Neiman é simples: as críticas de ambos ao liberalismo serviram como uma luva a certas parcelas da esquerda.

É possível que esse diagnóstico de Neiman não seja tão convincente: o problema da esquerda woke seria precisamente não ser de esquerda. O woke repousaria sobre uma teoria “de direita”. Isso não diminui o interesse do livro, que apresenta um caso forte para a recusa do identitarismo como forma de fazer política.

Se o que deverá ser feito em seu lugar há de se nortear pelos ideais socialistas de Neiman, ou, quem sabe, pelas convicções de justiça da tradição do liberalismo político de seu orientador em Harvard, John Rawls – bem, essa é já outra questão.

 

Fonte: ‘A Esquerda Não é Woke’: Filósofa explica origens da política identitária; entenda o termo - Estadão (estadao.com.br)

sábado, 21 de setembro de 2024

Monarquia e República: maridos, esposas e amantes

 

Nas monarquias os casamentos eram assunto de Estado. Não raro príncipes e princesas casavam-se sem se conhecerem e por procuração. Foi assim com D. Pedro I nos casamentos com D. Leopoldina, arquiduquesa filha do imperador Francisco I da Áustria, e com D. Amélia de Leuchetenberg. Cumprido o dever de ter filhos para assegurar a sucessão hereditária dos títulos de nobreza ou linha de sucessão ao trono, no caso das realezas, as relações extraconjugais na aristocracia não eram problema. A vida da nobreza era vivida protocolarmente para a perpetuação dos títulos e poderes. A vida da nobreza e realeza, na corte, era um ritual.

Norbert Elias, no livro “A Sociedade de Corte” descreve os rituais da realeza na Corte de Luís XIV: Por volta das 08h00 o rei era acordado pelo primeiro criado de quarto, que abria as portas para os pajens. Um entrava para supervisionar os serviços ao rei, outro se dirigia à cozinha para providenciar o café da manhã e outro ficava na porta para controlar a entrada, de acordo com o privilégio de acesso.

O acesso ao rei era hierarquizado, num total de seis grupos: primeiro a esposa, os filhos legítimos, netos, príncipes e princesas de sangue, o médico e o primeiro cirurgião. O segundo grupo era composto pelos altos funcionários a serviço do rei. O terceiro grupo era dos senhores da nobreza. O quarto grupo era composto pelo capelão, pelos ministros, conselheiros de Estado, oficiais da guarda pessoal e marechais da França. O quinto grupo era composto por senhores e senhoras da nobreza a quem o rei concedia o favorecimento da entrada em seus aposentos e que o fidalgo do quarto deixava entrar. O sexto grupo não entrava pela porta principal do quarto, mas por uma porta traseira e era composto pelos filhos ilegítimos, suas famílias, os genros e outras pessoas que não tinham função pública.

Embora na mais baixa hierarquia, pertencer a este grupo significava um grande privilégio, pois tinham permissão para entrar a qualquer hora nos aposentos do rei, a não ser que estivesse em Conselho ou tivesse em algum trabalho especial com seus ministros. Como não havia outro grupo para entrar, podiam permanecer até que o rei os dispensasse ou saísse para outras atividades.

O ingresso nos aposentos reais decorria de meticulosa exatidão organizacional. Cada movimento era determinado pelo cerimonial e revelava um grau de prestígio e simbologia da divisão de poder. Mesmo a esposa do rei, incluída no primeiro grupo e, portanto, detentora do maior prestígio do ponto de vista formal, não poderia permanecer quando o segundo grupo era autorizado a entrar. O rei podia tudo ou quase tudo. Norbert Elias diz que “A disposição do quarto de dormir do rei – que não era só de dormir – tem estreita relação com esse estado de coisas”.

A amante do rei não estava incluída na hierarquia de acesso aos aposentos reais. Não constava no cerimonial. Oficialmente inexistia. Portanto, podia ingressar a qualquer hora, pela porta dos fundos. A impossibilidade de definição e delimitação de seu papel na Corte lhe proporcionava ilimitadas possibilidades.

Na França o ritual foi estabelecido por Luís XIV e foi desaparecendo junto ao enfraquecimento do poder monárquico e ampliação do ideário republicano que culminou na Revolução Francesa, cujo lema era “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.

Nas monarquias a esposa do rei é nominada de rainha consorte e marido da rainha é príncipe consorte. Mas não têm poderes políticos ou militares. O marido da rainha da Inglaterra Elizabeth II, Philip, nas cerimônias oficiais, não podia sequer andar ao lado da soberana. Em todas as aparições públicas ele andava um passo atrás dela. Se fosse o contrário, talvez não faltasse quem visse machismo ou misoginia.

Mesmo sem funções políticas ou militares, nas monarquias os cônjuges têm atribuições formais. Diversamente nas repúblicas. A igualdade de todos perante a lei não permite hierarquias sociais ou nas relações com o poder público. Nas repúblicas, os cônjuges dos chefes de governo não têm funções estatais a serem desempenhadas. Num Estado de Direito a lei é que atribui e delimita as atribuições. Se não há lei que atribua funções aos cônjuges dos chefes de governo não há papel institucional a ser desempenhado.

Os casos nos quais os cônjuges assumiram publicamente função de Estado para a qual não foram eleitos resultaram em problemas: o protagonismo escancarado da emblemática Hilary Clinton irritou a sociedade estadunidense a tal ponto que quase levou Bill Clinton ao impeachment, do qual se livrou por um empate na votação, mas não foi reeleito; o presidente argentino Carlos Menen teve que editar um decreto proibindo a entrada da mulher, Zulema Yona, na Casa Rosada e disto resultou um divórcio escandaloso; Imelda Marcus, esposa do ditador Ferdinand Marcus, das Filipinas, acabou no exílio junto com o marido. Mesmo Nelson Mandela teve problema em seu governo em razão da atuação de sua mulher Winnie Mandela. Pode até ocorrer exercício de poder, por meio de influência do cônjuge, mas não às escâncaras. Com exceção de Evita Peron, que foi santificada em vida, todas as demais sobreposições de relações familiares com assuntos de Estado acabaram em desastre institucional ou político.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 21/09/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/09/6920906-joao-batista-damasceno-monarquia-e-republica-maridos-esposas-e-amantes.html

 

 


segunda-feira, 16 de setembro de 2024

BEIJO ROUBADO, IMPORTUNAÇÃO E ASSÉDIO SEXUAL

 

Eu tinha apenas seis anos quando me matriculei no pré-primário. Foi antes da edição da Lei 5692/71, editada pelo General-presidente Emílio Garrastazu Médici e seu ministro da Educação Jarbas Passarinho. Eu fora para a escola com algumas noções ensinadas por minha mãe. Já conhecia o alfabeto e distinguia algumas sílabas.


Fiquei apaixonado pela professora. Uma linda mulher que naquele ano de 1969 usava uns vestidos tubinho, sem mangas, com meio palmo acima do joelho. Lindos joelhos e começo de coxa. E os braços? Inácio, no conto “Uns braços”, de Machado de Assis, só os via de D. Severina.


Eu via braços e parte da perna. Machado escreveu no conto que “há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam”. Mas a falta de qualquer possibilidade de correspondência logo me levou ao desencanto com a professora. Afinal, eu tinha apenas seis anos e não quinze como o personagem machadiano.


No ano seguinte, primeiro ano do primário, havia na sala uma menina muito bonita e boa aluna, como eu também o era. Seu nome, Maria José. As carteiras eram duplas e eu me sentava na primeira carteira da fileira central, de frente para o quadro. No meio do ano o coleguinha que se sentava ao meu lado se mudou, pois seu pai morrera. Na falta do meu colega, Maria José passou a se sentar ao meu lado. Aquele semestre foi de encanto.


Eu estava apaixonado novamente. No penúltimo mês do ano fiz aniversário e ela me deu um lápis de presente. Um lápis que tinha borracha no topo. Maria José e  eu éramos um chamego só. No final do ano a professora pediu que escrevêssemos alguma coisa para um outro colega da sala. Aprendemos naquele exercício que podíamos nos comunicar pela língua escrita. Escrevi uma cartinha para a Maria José. Falei do quanto ela era especial e do quanto gostava dela.


A professora recolheu as cartas, levou para casa, as corrigiu e na aula seguinte, tal como se fosse funcionária dos Correios, entregou a carta a cada destinatário. Quando entregou minha carta à Maria José, a professora olhou para mim e esboçou um sorriso. Aquele “namoro” estava aprovado até pela professora! Pensei. Cada destinatário foi chamado a ler o que recebera e Maria José o fez, com muita timidez. Depois, sentada ao meu lado, me disse algo assim: “Você não deveria ter escrito isto. Agora todo mundo está sabendo”.


Ao mesmo tempo em que acolhia a repreensão pela indiscrição, estava em êxtase. Maria José assumira que estava namorando comigo. Nós nos falávamos baixinho, no ouvido do outro. Era delicioso sentir, no ouvido, o sopro com palavras que saíam da boca de Maria José. Eu também falava no ouvidinho dela. Um dia, depois de lhe falar alguma coisa, dei um passo em falso. Minha boca que deveria ter se limitado a se aproximar do ouvido de Maria José, lhe estalou um beijo no rosto. Ela ficou vermelha e fechou a cara. Uns colegas começaram a zombar de nós: “Estão namorando! Estão namorando!”. Hoje seria ‘bullying’. O beijo não fora consentido; fora roubado. Esta expressão era usada naquele tempo.


Depois da aula e de ir à sua casa, Maria José atravessou a praça, chegou à minha casa e contou para minha mãe o que eu fizera. E foi embora. Sentada numa máquina de costura da marca Singer minha mãe me chamou e pediu explicação. Além de ter exposto Maria José perante a turma numa carta contendo assunto que deveria ser íntimo e sigiloso, ter-nos exposto perante os colegas que faziam ‘bullying’, dizendo que estávamos namorando, ainda tive que expor, para minha mãe, meus sentimentos e a grosseria que cometera. Mas o fiz. A cara de minha mãe não era de aprovação. Mas também não continha censura. Se não havia orgulho pelo comportamento indevido havia respeito pelo sentimento que o filho expressava e demonstrava ser capaz, porque amar é uma aptidão que se adquire ao ser amado. Nem todo mundo aprendeu a fazê-lo e por isso o mundo está a cada dia mais violento.


Acho que minha mãe sabia o que era amor. Ela apenas me explicou que não se rouba beijo e que isto pode ser ofensivo às meninas. Minha mãe me disse que o corpo de uma pessoa é dela e que não pode ser invadido. Disse que eu era apenas uma criança e que ao crescer saberia quando as meninas querem o que os rapazes também querem. E só quando os dois adultos querem, este tipo de coisa pode acontecer. Meu desejo de ser adulto não era para dirigir ou poder viajar sozinho, mas vivenciar o querer recíproco. Minha mãe mandou-me pedir desculpas à Maria José, o que fiz na aula seguinte. Mas ela nunca mais quis intimidade comigo. Nunca mais cochichou no meu ouvido, nem eu no dela. Passei a ser tratado como um garoto abusado que a expôs por duas vezes. Eu avançara o sinal e ela se assustou comigo. E não me perdoou.


Carlos Drummond de Andrade no poema “Lira do amor romântico Ou a eterna repetição” escreveu “Atirei um limão n’água e caiu enviesado. Ouvi um peixe dizer: Melhor é o beijo roubado”. Somente mais tarde Drummond, em “Boca de Luar” escreveu: “E que gosto pode ter beijo roubado, se até o que não é roubado costuma ser insípido quando as duas partes não se movem pelo mesmo impulso de doação e devoração?” O pintor francês, Jean-Honoré Fragonard pintou “O beijo roubado”, por volta de 1790, que se encontra no Museu Hermitage de São Petersburgo, na Rússia. A personagem do quadro lembra Maria José.


Quem quiser sair do mundo da Literatura ou das Artes e entrar no mundo do Direito tem a disposição longa discussão se, hoje, o beijo roubado constitui crime de estupro, assédio sexual ou importunação sexual. Muito antes que lei fosse feita para tal repressão aprendi, com Maria José, que tal roubo não tem gosto. Porque gostoso é a reciprocidade dos desejos mútuos. Até uma criança de sete anos sabe o que é importunação. Por isso a desculpa de que ocorrem maus entendidos não são críveis.


Claro que beijo roubado não é estupro. Não há privação da liberdade da vítima, nem imposição de comportamento a ela. Mas há outros crimes definidos no Código Penal, dentre os quais assédio sexual e importunação sexual.


O assédio sexual é crime no Brasil, definido no artigo 216-A do Código Penal como “constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”.


A pena prevista é de detenção de um a dois anos. Portanto, sem a prevalência da condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função não há que se falar em assédio sexual.


Mas entre pessoas do mesmo nível hierárquico pode ocorrer abusos sexuais, dentre os quais importunação sexual definida legalmente no art. 215-A como “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. A pena é de reclusão, de um a 5 cinco anos, se o ato não constitui crime mais grave.


Assim, entre pessoas que não haja hierarquia ou ascendência por cargo, emprego ou função não há que se falar em assédio sexual, mas pode haver importunação sexual ou outros crimes contra a dignidade sexual. A ideia de que pode existir assédio sexual horizontal, ou seja, sem que haja hierarquia entre o autor do crime e a vítima é parte de discurso que se constrói à margem da lei. E, no Direito Penal não se admite interpretação extensiva, embora tal princípio não esteja sendo preservado na atual quadra da história jurídica do país.


O que me tem me espantado não é apenas a criatividade para o encarceramento, com acusação de um crime mais grave quando o que ocorre é crime de menor ofensividade. O que me tem impressionado atualmente não são as atitudes inapropriadas ou inadequadas, assédio moral, assédio sexual ou importunação sexual, mas o tempo que certas mulheres adultas, socializadas em bailes funk, empoderadas por ascensão social, levam para afastar o “ofensor” ou mesmo para denunciá-lo.


Maria José, com seus sete anos não só demonstrou sua insatisfação comigo como, no mesmo dia, procurou a autoridade própria para me estabelecer os limites: minha mãe. Nem precisava, ela já o havia feito e já havia deixado claro que não toleraria beijo roubado. Mas não deixou passar uma noite. E tinha sete anos! Igualmente não pediu a intervenção de mais ninguém. Não sei como a mãe dela soube e rindo me chamava de genro e até meu pai, conversando com o pai dela, riam, tal como os homens costumam fazer, sem entender o desastre que aquele desenlace provocado pela publicidade significava para mim.


Mais tarde aprendi que a comunicação, imprescindível para expressar o consentimento não precisa ser escrita ou verbal, e - também - se faz por outras linguagens. As expressões corporais também podem ser indicativas de desejo e consentimento.


Já escrevi, que o primeiro livro que li foi “A Moreninha” de Joaquim Manoel de Macedo e sempre me lembro do personagem Augusto, embaixo da cama, vendo os pés de D. Clementina. Também li a obra quase completa de Nelson Rodrigues e dela depreendi que há desejos diversos.


Chico Buarque escreveu uma letra que é só desejo, sem dizer o que é:


O que será que será

Que andam suspirando pelas alcovas

Que andam sussurrando em versos e trovas

Que andam combinando no breu das tocas

Que anda nas cabeças, anda nas bocas

Que andam acendendo velas nos becos

Que estão falando alto pelos botecos

Que gritam nos mercados que com certeza

Está na natureza, será que será

O que não tem certeza, nem nunca terá

O que não tem conserto, nem nunca terá

O que não tem tamanho

O que será que será

Que vive nas ideias desses amantes

Que cantam os poetas mais delirantes

Que juram os profetas embriagados

Que está na romaria dos mutilados

Que está na fantasia dos infelizes

Que está no dia a dia das meretrizes

No plano dos bandidos, dos desvalidos

Em todos os sentidos, será que será

O que não tem decência nem nunca terá

O que não tem censura nem nunca terá

O que não faz sentido

O que será que será

Que todos os avisos não vão evitar

Porque todos os risos vão desafiar

Porque todos os sinos irão repicar

Porque todos os hinos irão consagrar

E todos os meninos vão desembestar

E todos os destinos irão se encontrar

E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá

Olhando aquele inferno, vai abençoar

O que não tem governo, nem nunca terá

O que não tem vergonha nem nunca terá

O que não tem juízo

O que será que será

Que todos os avisos não vão evitar

Porque todos os risos vão desafiar

Porque todos os sinos irão repicar

Porque todos os hinos irão consagrar

E todos os meninos vão desembestar

E todos os destinos irão se encontrar

E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá

Olhando aquele inferno, vai abençoar

O que não tem governo, nem nunca terá

O que não tem vergonha nem nunca terá

O que não tem juízo”.


O desejo pode não ter juízo, mas tem que ser exercitado com limite. O parâmetro apropriado é o consentimento mútuo. E isto é civilidade. Não vivemos no Estado de Natureza. É a cultura que nos ensina o limite para nossas condutas, mesmo que o desejo não o tenha. Nossa cultura sempre foi farta em reconhecer os limites da adequação, chegando muitas vezes ao moralismo, excessivamente ‘pudorento’.


Em suas cartas aos coríntios, São Paulo nos mostra que era um santo que amava. A quem não sabemos. Talvez nas cartas a São Timóteo, de Éfeso, haja uma pista. Mas amava. Ele escreveu: “O amor é paciente. O amor não é ciumento, não exalta a si mesmo, não é orgulhoso. O amor não é malcriado, não procura seus interesses, não se irrita facilmente, não guarda mágoas. O amor não se alegra com o mal, mas se alegra com a verdade. O amor tem sempre confiança e esperança e se mantém firme”. E conclui: “Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino”. Menino com mãe aprende mais cedo.


Nada do que li foi tão relevante quanto à pequena conversa com minha mãe. Ela me ensinou, sem censura, a respeitar as mulheres e a esperar que elas me dessem o beijo ou me ofertassem a face ou a boca para serem beijadas. Aprendi que não se rouba beijo. E que qualquer comportamento ou abordagem indevida não era expressão de amor, mas de violência sobre o corpo alheio.


Não é verdade que os assédios nas relações de trabalho, sejam sexuais ou morais, são geracionais. Até uma criança de sete anos compreende quando foi indelicada ou abusiva, ainda que não se possa cobrar dela a ética da responsabilidade pela falta de compreensão das consequências da conduta.


Assédio, em suas distintas modalidades, é relação de poder. O assédio sexual não é tema a ser tratado no campo da sexualidade. Assim como, também, o assédio moral, tais práticas estão no campo da consciência conservadora do Brasil e no autoritarismo. Não só o autoritarismo do patriarcado propicia assédio moral ou sexual, pois mulheres alçadas a situação de poder também podem cometê-los. Assédio é relação imprópria de exercício de poder e pode ser praticado por pessoa de qualquer raça, gênero ou orientação sexual.


A ideia de que os homens precisam ser reeducados para conviver com as mulheres é coisa de quem está querendo vender curso e ganhar algum “capilé” com conversa fiada. Todos sabemos que colocar as mãos entre as pernas de uma mulher ou “patolar” um homem, como fazia uma treinadora desportiva carioca com seus atletas, é abusivo. O juízo sobre a ilicitude destas práticas é universal. Um homem ou uma mulher até podem cochichar no ouvido de outra pessoa, se ela admitir ou retribuir. Mas se a pessoa não admite não se pode reiterar. A insistência, notadamente com frases de conotação sexual, sempre foi inadmitida e desde 2018 é crime de importunação sexual.


Os homens, quando o fazem e dizem não verem maldade na importunação estão mentindo para si mesmos. E as mulheres também. E com as mulheres tem um agravante. Quando assediam e o homem as rejeita partem para a injúria homofóbica, tal como se o homem hétero cis, por ser hétero, tivesse que sexuar com qualquer mulher que o deseje. E muitos caem nesta armadilha, em razão do machismo que permeia as relações sociais e não lhes permite dizer não. Não é raro ouvir em conversas masculinas que, para um homem, “todas merecem uma vez, algumas duas vezes e poucas três vezes”.


O mundo não mudou. Tais comportamentos sempre foram considerados inadequados. Talvez tenha havido alguma mudança em três campos: 1) as mulheres passaram a denunciar; 2) os homens descobriram que não têm que “dar umazinha” com qualquer mulher que lhes queiram; 3) alguns comportamentos antes apenas inadequados ou antissociais, hoje, configuram crime.


Mostrar-se interessado é diferente de intrometer-se no corpo de uma pessoa ou insistir quando a abordagem já foi negativa. O respeito à falta de reciprocidade há de ser um parâmetro de civilidade. Cantou, a outra pessoa não aceitou, contabiliza no perdido e siga!


O assédio sexual ou moral não é sexo. É prática de poder por quem não reconhece os limites para seu exercício, seja em razão da hereditariedade aristocrática, não raro da aristocracia rural que vigeu no Brasil até o advento do século XX, ou por nunca o ter exercido.


Quem não foi socializado para o exercício do poder ou para comer melado, quando pode exercer ou comer se lambuza.

Publicado originariamente em https://www.criativos.blog.br/ no dia 16/09/2024.