sábado, 31 de dezembro de 2022

AMANHÃ SERÁ UM OUTRO DIA

 

O poeta Thiago de Mello expressou na forma escrita uma das mais emblemáticas expressões do sentimento de quem se sente oprimido. É o poema, que também nomina um livro seu, “Faz escuro mas eu canto”, assim versado: “Faz escuro mas eu canto, porque a manhã vai chegar. Vem ver comigo, companheiro, a cor do mundo mudar. Vale a pena não dormir para esperar a cor do mundo mudar. Já é madrugada, vem o sol, quero alegria, que é para esquecer o que eu sofria. Quem sofre fica acordado defendendo o coração. Vamos juntos, multidão, trabalhar pela alegria, amanhã é um novo dia”.

O mundo do trabalho, acuado pelo capital que gera fome, desigualdades, miséria, desamparo, desemprego e redução da renda da classe trabalhadora, resiste com a certeza de que amanhã será um outro dia.

Thiago de Mello expressou o sentimento daqueles que almejam o dia seguinte, mas também daqueles que – certos do futuro que construirão – levantam cedo para suas atividades produtivas e escreveu: “Madrugada camponesa. Faz escuro ainda no chão, mas é preciso plantar. A noite já foi mais noite, a manhã já vai chegar”.

Pouco importa se o trabalhador acorda de madrugada para semear ou se é operário que acorda para ladrilhar. Sair da cama e encarar o batente é assunto urgente. É expressão da vida no mundo do trabalho. Em sua constante luta pela sobrevivência os componentes do mundo do trabalho almejam justiça. Daí ser comum ouvir que “amanhã será um outro dia”.

A frase está contida na expressão do também poeta Chico Buarque, que assim se expressou na música “Apesar de você”: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. Eu pergunto a você onde vai se esconder da enorme euforia? Como vai proibir quando o galo insistir em cantar? Água nova brotando e a gente se amando sem parar! Quando chegar o momento, esse meu sofrimento vou cobrar com juros, juros. Todo esse amor reprimido, esse grito contido, este samba no escuro. Você que inventou a tristeza, ora, tenha a fineza de desinventar. Você vai pagar e é dobrado, cada lágrima rolada nesse meu penar.

Tanto o poema de Thiago de Mello quanto a música de Chico Buarque que - segundo dizem - é também autor de Roda Viva, expressam a certeza no futuro, sem o que não cantaríamos no escuro, nem acordaríamos - quando ainda escuro - para semear ou ladrilhar. É a certeza de que amanhã será um outro dia, que a noite já foi mais noite mas a manhã já vai chegar, o que nos embala a declamar: “Faz escuro, mas eu canto”.

Foi com estarrecimento que entrei na mostra itinerante da 34ª Bienal de São Paulo, exposta no Museu de Arte do Rio (MAR), e constatei que o título 'Faz Escuro mas eu canto' não era creditado ao seu autor. Embora o curador da mostra no MAR, Jacopo Crivelli Visconti, cite Thiago de Mello num texto ao lado de outros textos, não está a Bienal eximida de citar o autor no título da exposição e na ficha técnica. O MAR cede o espaço e a organização é da Bienal. A esta cabe a responsabilidade pelo creditamento autoral.

Vários textos são expostos na mostra, mas em apenas um há referência ao poeta amazonense. Num deles, o presidente da Fundação Bienal de São Paulo explica que o objetivo da mostra é ampliar o acesso dos diferentes públicos pelo país e que por isso estavam realizando mostras itinerantes, com recortes da Bienal de São Paulo. E mais. Diz que as mostras itinerantes apostam na arte e no seu impacto positivo no campo da Educação e da Cidadania. Mas como falar em cidadania se o elementar dever de nominar o autor da obra juntamente dela é desatendido?

A lei é clara. O nome do autor da obra deve estar explicitamente citado junto dela. Texto, foto, pintura, assim como toda obra, devem ser creditados aos autores. Thiago de Mello expressou as dores, as lutas e as certezas de vitória do mundo do trabalho. O que os responsáveis pela exposição devem fazer é lhe dar o crédito devido. Assim como a classe trabalhadora que tudo produz deseja o que é seu, o poeta igualmente tem o direito de ver-se nominado em sua obra. Mais que direito autoral é o direito à dignidade de quem colocou parte da sua vida num poema e nas lutas que travou em prol da dignidade da pessoa humana.

Em seu texto, exposto na mostra, Visconti escreveu sobre a arte como um campo de resistência. Apesar das trevas que se abateram sobre tudo o que expressa cultura, civilidade e amor nos últimos anos, a certeza de amanhã será um outro dia é que nos animou a cantar, a resistir e a esperançar, mesmo no escuro.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 31/12/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/12/6547670-joao-batista-damasceno-amanha-sera-um-outro-dia.html

sábado, 17 de dezembro de 2022

Badernaço em Brasília

 

Em novembro de 1986 um badernaço em Brasília chocou o país. Acabara de ser eleita a Assembleia Nacional Constituinte. O presidente José Sarney, em fevereiro, por decreto, havia congelado os preços do varejo, mudado a moeda de Cruzeiro para Cruzado e cortado três zeros do seu valor nominal

Foi um golpe eleitoral. Não se regula procura e oferta por decreto. A situação econômica do país era caótica e nos supermercados faltava tudo: queijo, ovos, carne, óleo e até papel higiênico. O fracasso do Plano Cruzado foi retumbante. Para animar os eleitores o presidente ordenou que a Polícia Federal fosse a campo e confiscasse os bois que encontrasse.

A Polícia Federal que fora instituída pela ditadura empresarial-militar, e que atuara tanto na repressão aos opositores do regime quanto no exercício da censura, se esmerava para mostrar bons serviços no momento de redemocratização. Daí que se mostrou disposta a prender o gado. Passada a eleição o presidente decretou o Plano Cruzado II, com medidas impopulares, dentre as quais aumento de tarifas públicas, reajuste de impostos, liberação dos reajustes de preços e arrocho salarial. A inflação galopava.

Sentindo-se enganada eleitoralmente e diante das medidas econômicas que pioravam sua qualidade de vida a sociedade foi tomada de indignação. As centrais sindicais e organizações da sociedade civil começaram a se manifestar. Uma manifestação em Brasília partiu da Rodoviária, no Plano Piloto da capital, com o intuito de seguir para o Congresso e, depois, para o Ministério da Fazenda. A passeata seguiu sem ser incomodada.

Uma barreira policial que havia sido montada não impediu a passagem dos manifestantes, nem lhes causou embaraço. Trabalhadores, sindicalistas e donas de casa chegaram a acreditar que tal comportamento se devesse aos novos ares democráticos que o país acreditava estar respirando.

Chegando ao Congresso um cordão de isolamento feito pelo Exército impediu a aproximação à Praça dos Três Poderes. Igualmente não puderam ir ao Ministério da Fazenda entregar cartas de protesto ao então ministro da Fazenda. Os manifestantes iniciaram retorno à Rodoviária, mas um grupo deu início a depredações, agressões e incêndios de carros e ônibus. Do carro de som, o presidente da CUT deu por encerrada a manifestação e os trabalhadores se retiraram da Esplanada dos Ministérios.

Mas um grupo permaneceu e manteve o quebra-quebra, atingindo os próprios policiais que antes havia possibilitado a passagem. Além dos prejuízos materiais, o distúrbio terminou com quase uma centena de feridos, incluindo alguns policiais com gravidade. Posteriormente a imprensa publicou fotografias de ônibus do Exército deixados no caminho, recheados de papelão para facilitar o incêndio, bem como identificou militares das Forças Armadas dentre os incendiários. Mais que uma revolta popular foi um ato de terrorismo de Estado.

A tigrada já vinha dando demonstrações ostensivas de que não tolerava a redemocratização. O Caso Riocentro o demonstrou. Tais atos eram forma de admoestação para salvaguardar algumas sinecuras, bem como negociar perdão por atos antidemocráticos posteriores à lei da anistia de 1979. Havia a crença de que a anistia pacificaria o país e que a torrente democrática arrastaria os vermes e ratos para os esgotos e que a civilidade prevaleceria em definitivo sob a luz do sol. Mas nos porões escuros e nos esgotos subterrâneos os ratos se fortaleceram, se reproduziram e ressurgem como zumbis.

As forças políticas envolvidas no processo de redemocratização subestimaram o poder de permanência da tigrada. A chamada normalidade democrática, que vigeu nas zonas urbanizadas das cidades, notadamente a Zona Sul do Rio de Janeiro, não se estendeu às periferias e favelas.

Convivendo e trabalhando na Baixada Fluminense por algumas décadas, não vislumbrei por lá o sopro democrático, nem a efetiva regularidade institucional. Se durante a ditadura o Capitão Zamith era capaz de tudo na Baixada Fluminense, no período da chamada “normalidade democrática”, com instituições em funcionamento formal, outros algozes das liberdades públicas surgiram. Mas todos enfiados até o pescoço no aparato repressivo do Estado, que não foi desmontado na redemocratização.

Nesta semana novo badernaço ocorreu em Brasília, sem qualquer atuação efetiva do aparato estatal para impedir os atos de vandalismo. Depredações, incêndios, tentativa de invasão da sede da Polícia Federal, bloqueio de vias expressas e intimidações a cidadãos que estavam em vias públicas levaram pânico à cidade. Setores da mídia noticiam que o GSI, Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, pode “estar por trás dos atos terroristas que que apavoraram Brasília na noite de segunda-feira (12)”.

Se os atos de terrorismo são praticados para negociar benesses e anistia não podemos contemporizar. Tal como num assalto a mão armada somente podemos contemporizar para evitar o mal maior, que seria a perda de nossa vida. Mas, em seguida havemos de reclamar o que nos é de direito e buscar as responsabilizações devidas.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 17/12/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/12/6541704-joao-batista-damasceno-badernaco-em-brasilia.html



sábado, 3 de dezembro de 2022

A transitória derrota do mundo do trabalho

 

A Idade Média na Europa foi tomada pelo conceito de que o mundo era imutável e que tudo se fazia no tempo da natureza. O imobilismo tomava conta da realidade. Tratava-se de uma sociedade estratificada onde se dizia que os religiosos rezavam por todos, os nobres lutavam por todos e os trabalhadores trabalhavam por todos.

O desenvolvimento de técnicas de produção implicou aumento da produção de comida e formação de estoques. A consequência foi o aumento da população de ratos e, posteriormente, a difusão da peste bubônica. Terça parte da população morreu. A centralidade da religião foi colocada em dúvida e as pessoas passaram a começar a questionar as relações entre as causas e efeitos dos fenômenos. Não subsistiu a ideia do determinismo no qual até então se acreditava.

A racionalidade penetrou nas relações sociais e nos pensamentos e tudo passou a ser objeto de tentativa de compreensão. O progresso técnico foi avassalador. Tudo passou a ser objeto de estudo. Com a maçã que caiu de uma árvore, Isaac Newton formulou a teoria que explica a Lei da Gravidade. Outros pensadores formularam outros estudos. Com isto surgiu o tear, dinamizando a indústria têxtil, além de outras máquinas.

O aumento da técnica liberou mão de obra no campo, que era absorvida nas fábricas das cidades. A ampliação das técnicas passou a implicar, também, a dispensa de mão de obra nas cidades. A precarização da vida dos trabalhadores resultou em jornadas de trabalho de 16 a 18 horas, fome, desamparo, ausência de moradias e doenças. Logo os trabalhadores viram que o progresso estava sendo apropriado por alguns em seu desproveito e começaram as rebeliões e revoltas.

Na Idade Moderna, o mundo estava dividido entre as potências que o globalizaram, a partir das Grandes Navegações. O colonialismo, embora tratado como atuação dos portugueses e espanhóis, serviu a todos os países europeus. A Inglaterra dinamizou sua indústria com o ouro das Minas Gerais que Portugal lhe fornecia. Nos Países Baixos se concentravam os rentistas, banqueiros que ganhavam dinheiro financiando empreitadas para espoliação do mundo. A França nunca respeitou o tratado que dividira o Mundo Novo entre Portugal e Espanha e tomou suas possessões. O mundo tinha donos e os povos estavam a eles submetidos.

Depois de muitas revoltas e rebeliões, os trabalhadores descobriram que o poder político era usado para manutenção dos interesses da classe dominante. Os trabalhadores descobriram que as sociedades são constituídas por classes sociais e que a uns cabe o trabalho e a outros a apropriação do trabalho social que a estes proporciona o enriquecimento.

No século XIX, os trabalhadores ensaiaram a entrada na esfera política para defesa de seus interesses e passaram a pretender a tomada do próprio Estado para que políticas públicas fossem por eles editadas em seus próprios interesses e não apenas aos das classes ricas. A luta dos trabalhadores para a tomada do poder desde o século XIX deu origem aos partidos políticos, ao direito ao voto, à redução da jornada de trabalho, às garantias sociais, à proteção na velhice, além de outros direitos sociais.

A luta dos trabalhadores por direitos foi uma luta contra os princípios do liberalismo que diz deixar todos em igualdade de disputa para que, por seus próprios meios, atinjam seus objetivos. Mas desconsidera-se a desigualdade originária. O liberalismo acentua a miséria, pois a disputa sempre favorece os mais fortes. Enquanto o mundo do trabalho cuida da sua subsistência, o capital soberanamente administra os aparatos que lhe ampliam o poder político para a defesa dos seus interesses econômicos.

Foi no século XX que os trabalhadores mais se organizaram e tomaram a iniciativa para ampliar sua participação política e empreenderam a luta anticolonial, a luta pela libertação da humanidade, a luta pela emancipação dos povos oprimidos, a luta pela emancipação feminina com direito e voto e à participação política, a luta contra o racismo e muitas outras que acabaram por orientar a carta de princípios conhecida como Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana.

O temor de que tudo perdessem levou as classes ricas a buscar contentar os trabalhadores com alguns direitos. Assim, após a 2ª Guerra Mundial foi instituído o Estado do Bem-Estar Social. Foi a Era de Ouro da história do mundo do trabalho. Os erros cometidos que levaram a um a revés na luta dos trabalhadores por seus direitos e emancipação, notadamente após a queda do Muro de Berlim, são apresentados como triunfo do mundo do capital e derrota definitiva do mundo do trabalho.

Já não se temem as condutas do mundo do trabalho e os direitos estão sendo subtraídos e a vida, precarizada. Mas tais erros não são fundamentos para o primado de uma nova ordem que apenas semeia desigualdade, insegurança, miséria e desamparo. A humanidade sempre se reinventou e haverá de se reinventar.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 03/12/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/12/6533408-joao-batista-damasceno-a-transitoria-derrota-do-mundo-do-trabalho.html