sábado, 26 de fevereiro de 2022

Polícia, perícia e laudos falsos


 

O Ministério Público fluminense solicitou peritos paulistas para esclarecer a mais letal operação da Core, órgão da Polícia Civil, que resultou em 28 mortes no Jacarezinho. Os órgãos de perícia no Rio de Janeiro são subordinados à polícia. Em São Paulo a Superintendência da Polícia Técnico-Científica é órgão autônomo e independente. O Estado de São Paulo designou profissionais de balística, biologia, bioquímica, física e química para analisar as roupas e corpos das vítimas e foram produzidos de 95 laudos.

Os laudos permitiram o pedido de arquivamento de quatro dos 12 inquéritos instaurados. Mas um deles reforçou as suspeitas do Ministério Público de que houve execução de pessoa que estava encurralada e desarmada.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil no caso das chacinas da favela Nova Brasília, de 1994 e 1995, e recomendou que sejam independentes os órgãos de perícia técnica. Eu atuei perante a Corte Interamericana no caso julgado e busquei explicar como funcionam os órgãos de perícia no Brasil. Citei a falta de independência e narrei até mesmo o caso de um promotor do júri em Nova Iguaçu que era sócio do comandante local da PM numa distribuidora de bebidas.

O promotor que pediu auxílio dos peritos paulistas fundamentou sua solicitação na falta de independência dos órgãos fluminenses de perícia. Desponta no horizonte membros do MP preocupados com a política de extermínio de pretos e pobres no Rio de Janeiro, diversamente de períodos passados em que membros da instituição se associavam a policiais.

O promotor do caso aponta que um laudo complementar do local do crime, produzido pela perícia fluminense, foi mal feito e visava apenas a tentar desconstituir a opinião do Ministério Público que via indícios de homicídio. Tratou-se, segundo o promotor, de um inquérito defensivo, para defender os autores do crime. Para apurar o que de fato aconteceu é importante que a perícia seja independente, disse o promotor.

O Rio de Janeiro é um dos oito estados onde a perícia ainda é subordinada à própria polícia. É uma anomalia institucional ver o órgão subordinado e controlado investigando o órgão superior e controlador. No Rio de Janeiro, o perito de local da Delegacia de Homicídios é lotado na delegacia, subordinado ao delegado. Somente no Rio de Janeiro e no Ceará acontece esta subordinação do perito ao delegado.

No Estado de Santa Catarina, em 2005, foi estruturado o Instituto Geral de Perícias (IGP), com autonomia funcional e administrativa, vinculado diretamente à Secretaria de Segurança Pública e composto pelo Instituto de Análises Forenses (IAF), pelo Instituto de Criminalística (IC), pelo Instituto de Identificação Civil e Criminal (II) e pelo Instituto Médico-Legal (IML), com Academia de Perícia (Acape) e Corregedoria próprias. A estrutura organizacional e modelo de gestão foram constituídas de diretorias autônomas, não subordinadas à polícia. No ano passado, o Instituto Geral de Perícias (IGP) foi transformado em Polícia Científica. Assim, ao lado da Polícia Militar e Polícia Civil aquela unidade da federação tem uma polícia destinada a perícias.

A perícia forense é fundamental para a elucidação de uma ocorrência. Os falsos laudos impedem o devido processo legal. O problema é histórico. O ex-médico-legista, Harry Shibata, cujo nome consta diversas vezes no relatório dos mortos e desaparecidos políticos a partir de 1964, é acusado de assinar falsos laudos necroscópicos de presos políticos assassinados pela ditadura empresarial-militar. Em sessão da Comissão da Verdade no Rio de Janeiro, Lígia Jobim, filha do embaixador José Jobim, discutiu com o perito fluminense Roberto Blanco, porque o laudo elaborado por ele foi usado para reforçar a falsa versão de suicídio pelo diplomata. Em tempos passados uma perita fluminense levantou a suspeita de que um laudo elaborado por uma perita de voz a serviço do Ministério Público poderia conter falsidade.

Sem autonomia administrativa e independência funcional os laudos periciais podem ser produzidos dissociados da realidade. Isto é ruim para um processo específico, mas o pior efeito é retirar a credibilidade e legitimidade do sistema. Uma Comissão da Verdade dos Autos de Resistência no Rio de Janeiro pode apontar os problemas relacionados à perícia técnica e o mal funcionamento das instituições do sistema de Justiça, bem como lançar luzes sobre o caminho a trilhar.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 26/002/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/02/6347212-joao-batista-damasceno-policia-pericia-e-laudos-falsos.html

A orla não é lugar para violência

O lutador de jiu-jitsu que imobilizou o congolês Moïse alegou que apenas reagiu a uma tentativa de agressão. Outro partícipe do fato disse que bateu repetidas vezes com uma madeira para “extravasar a raiva”. Diversos são os instrumentos utilizados para a violência, mas as vítimas costumam ter as mesmas características: pretos e pobres odiados por existir.

O brutal assassinato de Môïse nos chocou, resultando manifestações no Rio de Janeiro e em outras cidades. Perguntei a um morador do Jacarezinho se alguma criança chega à adolescência na favela sem presenciar uma cena daquelas. A resposta foi que se trata de violência cotidiana. Se todos sabemos que cotidianamente pessoas são brutalmente assassinadas nas favelas e periferia, o que indignou a classe média no brutal assassinato de Moïse? A resposta possível é que a violência está liberada contra pretos e pobres, desde que não seja feita na sala da Casa Grande.

O que indignou as consciências foi a prática da violência na orla, espaço reservado para o lazer e o bem estar de um setor privilegiado da cidade dividida. Nas favelas e bairros da periferia, mesmo as chacinas praticadas pelos agentes do Estado não geram comoção.

A morte de dezenas de pessoas num mesmo dia no ano passado pela Core, no Jacarezinho, não causou qualquer indignação nos setores que estão alvoroçados com o bárbaro crime na orla. O Jacarezinho, que o líder comunitário Rumba Gabriel diz ser o mais antigo quilombo do Rio de Janeiro, voltou a ser ocupado pelas forças policiais e a violação aos direitos dos moradores não causa comoção, nem manifestação. Na terça-feira passada, dia 8, Rumba narrou o que é o cotidiano de moradores de favelas em encontros com os agentes do Estado.

Este é o seu relato: “FAVELAS BOA TARDE! Muito triste o que está acontecendo no meu Quilombo Jacarezinho. Virou uma terra sem Lei. Os batalhões ditos especiais da PM, estão fazendo o que querem no nosso território. A cultura do ódio nascida em alguns gabinetes que prestaram homenagens a milicianos, agora se encontra por aqui: invasões em domicílios, roubos de televisões, notebooks, etc, como se o pobre não tivesse condições de ter. Neste último domingo, uma amiga me pediu ajuda para localizar um policial do Choque que havia levado a sua chave. Neste mesmo domingo prenderam um amigo que foi à padaria apenas para comprar pão. Mas ele é negro, logo chamaram-no de traficante. Sábado passado uma multidão estava presente no Quiosque da Morte na Barra da Tijuca. Cheguei a sonhar que todo movimento negro viria para o grande Quilombo Jacaré. Todo mundo falando bonito. Parecia uma disputa de quem falaria com mais perfeição para que no final fosse aplaudido. Cheguei a dizer que falar ali era mole. Queria ver falar aqui onde o coro come e ninguém vê. Onde filho chora e mãe também não vê. Hoje quando acordei, notei que a porta da cozinha estava aberta. Eles sabem que na minha casa tem câmera. Então, com certeza foram pelos fundos onde não tem! Esperaram eu sair e quando me dirigia para fazer compras, covardemente ao perceberem que eu não entrei nos becos onde poderiam me agredir sem que ninguém visse e coisas piores poderiam acontecer, esperaram eu passar pela rua principal. Com sangue nos olhos e ódio no coração. Me deram uma ESCARRADA! Graças a Deus consegui me manter frio e calmo. Aprendi isso com o meu Cristo guerreiro. Só perguntei o porquê de tanto ódio de mim. Ele respondeu: - FODA-SE!”.

Rumba tocou na questão. Quando de uma chacina em Irajá, um grupo de juízes foi ao Conjunto Habitacional Amarelinho, no mesmo bairro, para se encontrar com moradores e familiares das vítimas. Dentre eles estava o juiz Siro Darlan. Na verdade, desembargador. Outro grupo, igualmente preocupado com a violência policial, se reuniu para uma conversa sobre o assunto no Amarelinho da Cinelândia. Cada grupo se encontrou num Amarelinho, expressando as distintas concepções de interação: uns com a realidade concreta; outros com as considerações abstratas sobre o que vitimou aquelas pessoas.

A violência que vitimou Môïse foi praticada por quem a vivencia cotidianamente na periferia, que a naturaliza e desumaniza o outro. Os que falam em caminhões na orla, em situações ocasionais, igualmente precisam ouvir nas favelas e periferias, onde a violência é cotidiana. Quinta-feira passada, dia 10, o desembargador Siro Darlan compareceu ao Quilombo do Jacarezinho onde se encontrou com moradores vitimados pela violência cotidiana e do Estado. Outros Siros são necessários para que a pior das violências não perpetue: a indiferença.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 12/02/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/02/6336524-joao-batista-damasceno-a-orla-nao-e-lugar-para-violencia.html