sábado, 16 de novembro de 2024

Execução de Marielle: a conta não fecha

 

Marielle tomou posse como vereadora no dia 01/01/2017. A intervenção federal na área de segurança pública no estado do Rio de Janeiro foi decretada em 16/02/2018. Marielle foi executada no dia 14/03/2018, no 27º dia após a decretação.

Intervenção federal é um mecanismo de exceção presente na Constituição da República que permite a suspensão temporária da autonomia de um estado federado para que o Governo Federal assuma o governo estadual, no todo em parte dele, a fim de resolver questão que comprometa gravemente a ordem, quando este demonstre incapacidade de resolver. É medida de exceção, tal como o estado de sítio e o estado de defesa. O decreto de intervenção deve determinar a duração, a forma de execução e nomeação de um interventor. Entra em vigor quando o decreto presidencial é aprovado pelo Congresso Nacional.

É estranho que uma intervenção aprovada no final de fevereiro de 2018, visando a solucionar o problema da segurança pública no estado do Rio de Janeiro, tenha sido desafiada pelo assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson, sem que o interventor, general Braga Netto, sequer tenha recebido os familiares das vítimas. Mais estranho ainda é se acreditar que Marielle tenha sido morta por questão imobiliária, assunto do qual jamais se ocupou com veemência, e que o “matador de aluguel” tenha feito o serviço fiado.

Após a decretação da intervenção, Marielle assim se pronunciou nas redes sociais: “Sabe o nome cotado para Sec. Seg? Richard Nunes? A MARÉ CONHECE! Comandou a ocupação das Forças Armadas na Maré, entre dez de 2014 e fev de 2015, mês, de barbaridades. Uma delas quando os soldados atiraram contra o carro q estava Vitor Santiago, hj sem uma perna e paraplégico”.

Da Tribuna da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro Marielle fez o seguinte pronunciamento: “Eu vivi na Maré a intervenção militar por quatorze meses. Os favelados e faveladas sabem exatamente o que é o barulho do tanque na sua porta. O fundamental é que ecoa nas redes sociais, ecoa em outros espaços e fica esse burburinho. Onde é que vai ser realmente a intervenção? Quem sabe aonde a ponta do fuzil vai ser apontada? Aí me desculpem, não é o que vocês chamam de partido de esquerda, fazendo de maneira pejorativa referência ao PSOL. Sim! O PSOL é contra. Mas a Defensoria Pública é contra, o Ministério Público é contra, vários órgãos... Por que afinal de contas, quem vai vigiar? A quem vai prestar contas, por exemplo, o tão ilibado Exército Brasileiro com relação às suas intervenções militares nas favelas? Porque na Maré durou mais de 14 meses e custou mais de seiscentos milhões. Sem contar a vida das pessoas. O Matheus, hoje a família do Vitor com ele na cadeira de rodas, as mortes que existiram... A quem é prestado conta? A que custo é esse debate da intervenção?”.

E leu nota com o seguinte teor: “O comandante do Exército, em face da gravidade, entende que a solução exigirá comprometimento”. Comentando disse: “Até aí tudo bem! Comprometimento temos de várias formas, de cada um com seu processo ideológico, a sua responsabilidade”.

Em continuidade da leitura prosseguiu: “...sinergia, sacrifício dos poderes constitucionais”. E comentou: “Eu quero saber se os legisladores dessa casa e do estado do Rio de Janeiro, por exemplo, os deputados estaduais estão tranquilos com a retirada de direitos? Que processo democrático é esse?” E concluiu a leitura: “...sacrifício dos poderes constitucionais, das instituições e eventualmente da população”.

Analisando a nota lida disse: “Ora, eu quero saber quem vigia os vigias? Eu quero saber qual é a responsabilidade dos legisladores, que não estão atentando para a gravidade do momento em que se fala da intervenção federal, da intervenção militar. Mas a gente não passou agora por um problema que deveria ter sido uma intervenção direta, nessa situação na cidade do Rio de Janeiro, com a última chuva da quinta-feira? A situação de calamidade, onde se apresenta que no último ano, por exemplo, não ocorreu a prevenção do que deveria ser feito. Eu prefiro ficar com o processo democrático no qual as nossas diferenças estão colocadas, mas o processo de verdade e coerência se mantém, do que uma autocracia em um lugar que será destinado e orientado por outro governador que não o governador eleito”.

O golpe que se ensaiou no Brasil no dia da diplomação do presidente Lula, em 12 de dezembro de 2022 ou sua forma tentada no dia 08 de janeiro de 2023, há muito estava sendo costurado. A prisão do presidente Lula, em 2018, com fundamentos políticos explicitados pelo The Intercept Brasil, a intervenção no Rio de Janeiro e o atentado à Marielle faziam parte de um plano para a eventualidade de não se conseguir emplacar projeto de poder contrário à democracia e aos direitos do mundo do trabalho.

A mídia, em 1981, no caso da bomba do Riocentro, desvelou o atentado à abertura democrática, mostrando que militares do Exército colocavam bombas para alarmar a população e justificar o fechamento do regime. Ao invés da clareza com que se pronunciava Marielle, que fazia cair as máscaras e promovia o fortalecimento das instituições democráticas, foi feita opção pelas versões oficiais, difundidas por quem estava comprometido com o processo.

Publicado originariamente no dia 16/11/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/11/6952703-joao-batista-damasceno-execucao-de-marielle-a-conta-nao-fecha.html


sexta-feira, 1 de novembro de 2024

De Glauber a Silvio Tendler: arte e resistência

 

Em visita ao cineasta Silvio Tendler entabulamos uma conversa sobre o período da transição da ditadura empresarial-militar para a democratização do país, sobre a eleição a de 1982, que pela primeira vez elegia governadores desde 1965, e sobre a eleição de 1986, que elegeu a Assembleia Nacional Constituinte da qual decorreu a Constituição de 1988. Em 1984 Silvio lançara o documentário ‘Jango’, sobre o Governo João Goulart, vice-presidente do Brasil nos governos JK e Jânio Quadros e presidente de 1961 a 1964. O filme ‘Jango’ tinha o sugestivo slogan: "Como, quando e porque se derruba um presidente" e levou mais de meio milhão de espectadores às salas de cinema, tornando-se o sexto documentário de maior bilheteria da história do cinema brasileiro. O quarto filme de maior bilheteria também foi dirigido pelo Sílvio e foi ‘Anos JK”, que levou 800 mil pessoas aos cinemas.

Rememorando o período da ditadura empresarial-militar, falamos da censura, das atrocidades praticadas contra os que ousavam pensar um Brasil soberano, sobre Glauber Rocha e Darcy Ribeiro. Inadvertidamente falei do discurso de Darcy Ribeiro, que conheci, mas com quem não convivi, diante do caixão do emblemático cineasta Glauber Rocha, em agosto de 1981. Trata-se de um dos discursos mais impactantes que já ouvi. Darcy, chorando, se despediu assim do amigo:

“...sua breve vida, sem pele, com a carne exposta, capaz de gozo é certo, não é Glauber? Mas mais capaz de dor, da nossa dor. Uma vez, eu não vou esquecer nunca, Glauber passou a manhã abraçado comigo chorando, chorando, chorando compulsivamente. Eu custei a entender. Ninguém entendia que Glauber chorava a dor que nós devíamos chorar, a dor de todos os brasileiros. O Glauber chorava as crianças com fome, o Glauber chorava este país que não deu certo, o Glauber chorava a brutalidade, o Glauber chorava a estupidez, a mediocridade, a tortura que ele não suportava... Chorava, chorava, chorava! Os símbolos de Glauber são isso. É um lamento, é um grito, é um berro. Essa é a herança que fica de Glauber, fica de Glauber pra nós a herança de sua indignação. Ele foi o mais indignado de nós. Indignado com o mundo tal qual é, assim. Indignado, porque mais que nós, também Glauber podia ver o mundo que podia ser! Que vai ser Glauber! Que há de ser! Glauber viveu entre a esperança e o desespero, como um pêndulo louco”.

Silvio se voltou para mim e exclamou: “Fui eu quem filmou isso!” Claro que foi. Está no seu documentário ‘Glauber, o filme: Labirinto do Brasil’, que faz parte de um conjunto denominado ‘Quatro Baianos Porretas’, sobre Castro Alves, Carlos Marighella, Glauber Rocha e Milton Santos. Todos – tal como Sílvio Tendler - preocupados com o Brasil, com o povo brasileiro, com as liberdades e com a fome que sempre ameaçou os lares dos mais pobres.

O último filme que o Silvio Tendler produziu e dirigiu foi o documentário exibido durante a mostra de cinema do Rio de Janeiro, no mês passado, sobre a trajetória de Leonel Brizola. O documentário não esgota as facetas daquele líder popular e de seus projetos. Cada assunto abordado talvez merecesse um filme, suficiente para transformar os muitos feitos de Brizola numa série.

O documentário intitulado ‘Brizola, Anotações Para Uma História’ é uma narrativa do seu nascimento, em 1922, até sua morte, em 2004, com suas muitas causas abraçadas e lutas enfrentadas. Nas anotações para a história consta a fábrica de escolas, denominadas ‘brizoletas’, custeadas por bônus adquiridos pela população. De origem pobre e órfão, Brizola sabia a importância da educação para interromper o ciclo de pobreza ou empobrecimento. De tudo o que o Brizola fez tem um pouco no documentário. Um momento épico é aquele no qual os ‘gorilas fardados’ tentaram impedir a posse de Jango em 1961. Brizola empunhou uma metralhadora, formou a Rede da Legalidade conclamando o povo à resistência, venceu e empossou Jango na presidência. Assim, impediu que os militares entreguistas consumassem o golpe que tramavam desde quando levaram Getúlio Vargas ao suicídio em agosto de 1954 e o adiou para 1º de abril de 1964. Sílvio tudo documentou.

Inexiste “se” na história, pois esta é o que efetivamente ocorreu. Mas se os militares que levaram Vargas ao suicídio, que tentaram impedir a posse de JK, que por duas vezes tentaram golpe contra este e que tentaram impedir a posse de Jango tivessem sido punidos e excluídos das Forças Armadas e não anistiados, teríamos história diferente. O golpe empresarial-militar naturalizou a tortura nos quartéis, a violência e a criminalidade organizada em forma de esquadrões da morte, grupos de extermínio e justiceiros, legando-nos as atuais milícias. Patrícia Acioli e Marielle Franco são parte do que faz o terrorismo de Estado. Os que se opõem à barbárie correm risco de eliminação física ou eliminação política, tal como o risco que corre o outro Glauber indignado: o deputado Glauber Braga, sujeito à cassação por seus pares que com ele se incompatibilizam. A democracia é o poder do povo; é a razão da maioria, com respeito à minoria. Quando a maioria circunstancial tenta eliminar a minoria que dela diverge não é democracia; é fascismo.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 02/11/2024, pag. 12. Disponível no link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/11/6945474-joao-batista-damasceno-de-glauber-a-silvio-tendler-arte-e-resistencia.html


sexta-feira, 18 de outubro de 2024

PALHAÇADA ELEITORAL NÃO É CULTURA

O curto período para as campanhas eleitorais, e o modo como são feitas, retira do campo das decisões o que realmente interessa aos interesses sociais. Já se disse e se escreveu que voto é marketing e que o resto é política. O eleitoralismo é marketing. Institutos de pesquisa são contratados para analisar o pensamento médio do eleitorado e o que os candidatos devem dizer, mesmo que não corresponda às suas convicções. Nas eleições deste ano determinados candidatos utilizaram os resultados de pesquisas e a inteligência artificial para formular seus programas de governo. Nem mesmo seus programas foram por eles elaborados. Elegemos representantes que não estão obrigados a cumprir quaisquer das suas propostas de campanha, ainda que registradas ou sejam parte do programa dos respectivos partidos. Um dos pensadores que mais impactaram o pensamento mundial disse no século XIX que o Estado era o gerente dos interesses do capital. Mas hoje o capital já não demanda o gerenciamento pelo Estado. O neoliberalismo dispensa o gerenciamento dos seus interesses pelo Estado, salvo o seu aparato repressivo para conter as condutas dos que são privados dos bens indispensáveis à vida com dignidade.

As nulidades que se apresentam como candidatos, em muitos casos, decorrem do desprezo a que a classe dominante destina aos agentes públicos. Somente o aparato repressivo ainda tem algum valor. Mesmo assim é preciso relembrar que o contingente de agentes privados de segurança no Brasil supera em muito as forças públicas. E mesmo estas, em alguns casos, estão subordinadas a interesses privados, como é o caso do Projeto Segurança Presente no Rio de Janeiro, custeado e controlado pela iniciativa privada. Não analisaremos aqui o papel das forças paramilitares que foram denominadas de “milícias” por uma notável jornalista do Rio de Janeiro. A palavra que antes tinha outro significado hoje designa um tipo de atuação cujo paralelo somente se encontra, no Brasil, nas hordas de cangaceiros que atuavam no Nordeste brasileiro até o advento da Revolução de 30. Milícia é, hoje, uma modalidade de cangaço urbano, com as adaptações aos novos meios de chantagem e extorsão. As milícias e ordenanças do tempo do Brasil Colonial, eram subordinadas aos interesses dominantes. Em si, não eram poder como o são hoje. As milícias, hoje, atuam a partir de dentro do Estado. Não estão à margem dele; em relação a ele não são marginais; são paraestatais.

Mas nem tudo está perdido. A sociedade respira e culturalmente resiste a tempos difíceis. O documentário de Sílvio Tendler, “Brizola, Anotações Para Uma História” estreado na semana passada, levou os expectadores à emoção e à esperança, porque os problemas brasileiros têm solução. Igualmente o monólogo de Othon Bastos “Não Me Entrego, Não!” e o de Pedro Cardoso, “O Recém-nascido”, ambos em teatros no Shopping da Gávea, nos dão a dimensão de que a cultura pode ser uma fonte inspiradora para que busquemos retomar o destino do Brasil em nossas mãos.

Othon Bastos, com 91 anos, faz um monólogo de uma hora e meia, onde narra sua vida de artista, suas grandezas e suas derrotas. Ao final, para delírio da plateia, conclui em tom vibrante: “Eu não desisto, não!”. Pedro Cardoso, um artista que é a antítese do personagem Agostinho, taxista na série A Grande Família, com rara inteligência e compreensão de seu lugar de classe, encanta, faz rir e chorar. Em seu monólogo, expõe também nossa pluralidade e a contradição do reducionismo identitarista. O identitarismo foi importado dos EUA sob patrocínio da Ford Foundation, da Open Society Foundation, criada por George Soros, e de outras entidades interessadas na difusão do ‘pensamento entreguista’, subordinando os interesses do povo brasileiro ao capital financeiro internacional.

O eleitoralismo, a que sucumbiu a maioria das organizações que se destinam a organizar os seguimentos da opinião pública em plataformas políticas e disputar votos visando a exercer ou influir nas decisões governamentais, reduziu tais entidades ao processo eleitoral, sem a busca da formação de quadros ou formação de bloco de opinião visando à defesa dos interesses dos segmentos sociais a serem representados.

A universalização do voto foi uma bandeira desfraldada pelos trabalhadores no meado do Século XIX, pois sabiam que sem o direito ao voto estavam impedidos de participar ou influenciar na produção das leis que regulamentavam seus interesses. Conquistado o voto para os homens alfabetizados, a luta dos trabalhadores continuou no sentido de diminuir a idade para o alistamento e estendê-lo às mulheres e aos analfabetos. No Brasil o voto universal somente veio com a República, mas para os homens alfabetizados maiores de 21 anos. As mulheres somente adquiriram o direito de voto em 1932 e os analfabetos com a Constituição de 1988. Mas nada disto adianta se os partidos que dizem representar o mundo do trabalho não se dispuserem a – efetivamente – defenderem os interesses do mundo do trabalho. Tal falta de definição clara leva o eleitorado a não distinguir quem defende os interesses do capital, quem efetivamente defende os interesses do mundo do trabalho e quem apenas deseja a oportunidade de enriquecimento fácil. Daí a porta fica aberta para oportunistas e fazedores de palhaçadas. Tal como Othon Bastos, não podemos desistir, não!


Publicado originariamente no jornal O DIA, em 19/12/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/10/6937369-joao-batista-damasceno-palhacada-eleitoral-nao-e-cultura.html


terça-feira, 15 de outubro de 2024

O Dia do Professor e sua história


O Dia do Professor foi instituído pelo Decreto nº 52.682, de 14 de outubro de 1963, do presidente João Goulart, após a edição da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 4.024 de 20/12/1961).

A data para comemoração do Dia do Professor e decretação de feriado escolar é a da edição da Lei de 15 de outubro de 1827 pela qual D. Pedro I “Manda crear escolas de primeiras letras em todas as cidades, villas e logares mais populosos do Imperio”.

Ambos diplomas legais se encontram abaixo:

 

LEI DE 15 DE OUTUBRO DE 1827

 

Manda crear escolas de primeiras letras em todas as cidades, villas e logares mais populosos do Imperio.

 

     Dom Pedro, por Graça de Deus, e unanime acclamação dos povos, Imperador Constitucional, e Defensor Perpetuo do Brazil: Fazemos saber a todos os nossos subditos, que a Assembléa Geral decretou, e nós queremos a lei seguinte:

 

     Art 1º Em todas as cidades, villas e logares mais populosos, haverão as escolas de primeiras letras que forem necessarias.

     Art 2º Os Presidentes das provincias, em Conselho e com audiencia das respectivas Camaras, emquanto não tiverem exercicio os Conselhos geraes, marcarão o numero e localidades das escolas, podendo extinguir as que existem em logares pouco populosos e remover os Professores dellas para as que se crearem, onde mais aproveitem, dando conta á Assembléa Geral para final resolução.

    Art 3º Os Presidentes, em Conselho, taxarão inteiramente os ordenados dos Professores, regulando-os de 2004000 a 500$000 annuaes: com attenção ás circumstancias da população e carestia dos logares, e o farão presente á Assembléa Geral para a approvação.

     Art 4º As escolas serão de ensino mutuo nas capitaes das provincias; e o serão tambem nas cidades, villas e logares populosos dellas, em que fór possivel estabelecerem-se.

     Art 5º Para as escolas do ensino mutuo se applicarão os edifficios, que houverem com sufficiencia nos logares dellas, arranjando-se com os utensillios necessarios á custa da Fazenda Publica e os Professores; que não tiverem a necessaria instrucção deste ensino, irão instruir-se em curto prazo e á custa dos seus ordenados nas escolas das capitaes.

     Art 6º Os Professores ensinarão a ler, escrever as quatro operações de arithmetica, pratica de quebrados, decimaes e proporções, as noções mais geraes de geometria pratica, a grammatica da lingua nacional, e os principios de moral chritã e da doutrina da religião catholica e apostolica romana, proporcionandos á comprehensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Imperio e a Historia do Brazil.

     Art 7º Os que pretenderem ser providos nas cadeiras serão examinados publicamente perante os Presidentes, em Conselho; e estes proverão o que fôr julgado mais digno e darão parte ao Governo para sua legal nomeação.

     Art 8º Só serão admittidos á opposição e examinados os cidadãos brazileiros que estiverem no gozo de seus direitos civis e politicos, sem nota na regularidade de sua conducta.

     Art 9º Os Professores actuaes não seram providos nas cadeiras que novamente se crearem, sem exame e approvação, na fórma do art. 7º.

     Art 10º Os Presidentes, em Conselho, ficam autorizados a conceder uma gratificação annual, que não exceda á terça parte do ordenado, áquelles Professores, que por mais de doze annos de exercicio não interropindo se tiverem distinguindo por sua prudencia, desvelos, grande numero e approveitamento de discipulos.

     Art 11º Haverão escolas de meninas nas cidades e villas mais populosas, em que os Presidentes em Conselho, julgarem necessario este estabelecimento.

     Art 12º As mestras, além do declarado no art 6º, com exclusão das noções de geometria e limitando a instrucção da arithmetica só as suas quatro operações, ensinarão tambem as prendas que servem á economia domestica; e serão nomeadas pelos Presidentes em Conselho, aquellas mulheres, que sendo brazileiras e de reconhecida honestidade, se mostrarem com mais conhecimentos nos exames feitos na fórma do art. 7º.

     Art 13º As mestras vencerão os mesmos ordenados e gratificações concedidas aos Mestres.

     Art 14º Os provimentos dos Professores e Mestres serão vitalicios; mas os Professores em Conselho, a quem pertence a fiscalização das escolas, os poderão suspender, e só por sentenças serão demittidos, provendo inteiramente quem substitua.

     Art 15º Estas escolas serão regidas pelos estatutos actuaes no que se não oppozerem á presente lei; os catigos serão os praticados pelo methodo de Lencastre.

     Art 16º Na provincia, onde estiver a Côrte, pertence ao Ministro do Imperio, o que nas outras se incumbe aos Presidentes.

     Art 17º Ficam revogadas todas as leis, alvarás, regimentos, decretos e mais resoluções em contrario.

 

Mandamos portanto a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir, e guardar tão inteiramente como nella se cóntem. O Secretario de Estado dos negocios do Imperio a faça imprimir, publicar e correr. dada no Palacio do Rio de Janeiro aos 15 dias do mez de Outubro de 1872, 6º da Independencia e do Imperio.

 

IMPERADOR com rubrica e guarda.

Visconde de S. Leopoldo.

 

     Carta de lei, pela qual Vossa Magestade da Assembléa Geral Legislativa, que Houve por bem sanccionar, sobre a creação de escolas de primeiras letras em todas as cidades, villas e logares mais populosos do imperio, na fórma acima declarada.

Para Vossa Magestade Imperial ver.

Joaquim José Lopes a fez.

 

     Registrada a fl. 180 do livro 4º de registro de cartas, leis e alvarás.- Secretaria de Estado dos Negocios do Imperio em 29 de Outubro de 1827.- Albino dos Santos Pereira.

Monsenhor Miranda.

 

     Foi publicada esta carta de lei nesta Chancellaria-mór do Imperio do Brazil. - Rio de Janeiro, 31 de Outubro de 1827.- Francisco Xavier Raposo de Albuquerque.

 

     Registrada na Chancellaria-mór do Imperio do Brazil a fl. 85 do Livro 1º cartas, leis, e alvarás.- Rio de Janeiro, 31 de Outubro de 1827.- Demetrio José da Cruz.

 

 

Publicação:

  • Coleção de Leis do Império do Brasil - 1827, Página 71 Vol. 1 pt. I (Publicação Original)

 

Disponível no link: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38398-15-outubro-1827-566692-publicacaooriginal-90222-pl.html

 

 

DECRETO Nº 52.682, DE 14 DE OUTUBRO DE 1963

 

Declara feriado escolar o dia do professor.

 

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL, usando das atribuições que lhe confere o item I do artigo 87 da Constituição Federal, decreta:

 

    Art. 1º O dia 15 de outubro, dedicado ao Professor fica declarado feriado escolar.
     Art. 2º O Ministro da Educação e Cultura, através de seus órgãos competentes, promoverá anualmente concursos alusivos à data e à pessoa do professor.
     Art. 3º Para comemorar condignamente o dia do professor, aos estabelecimentos de ensino farão promover solenidades, em que se enalteça a função do mestre na sociedade moderna, fazendo participar os alunos e as famílias.
     Art. 4º Êste Decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

 

Brasília, 14 de outubro de 1963; 142º da Independência do Brasil; 75º da República.

 

JOÃO GOULART
Paulo de Tarso

 

Este texto não substitui o original publicado no Diário Oficial da União - Seção 1 de 15/10/1963



Publicação:

  • Diário Oficial da União - Seção 1 - 15/10/1963, Página 8665 (Publicação Original)
  • Coleção de Leis do Brasil - 1963, Página 148 Vol. 8 (Publicação Original)

 

Link: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1960-1969/decreto-52682-14-outubro-1963-458043-publicacaooriginal-1-pe.html

 

 

 

sábado, 5 de outubro de 2024

Incorruptível e baratinho

 

Trabalhei na Secretaria de Fazenda estadual (SEF) por doze anos que se somam aos mais de 30 anos na magistratura. Advoguei e exerci outras atividades ao longo da vida e no métier vi de tudo um pouco. A SEF, naquela época, era pior que a polícia daquela época. Lá, conheci um diretor que, mais que honesto, era incorruptível. Os funcionários honestos eram apontados. Não faltava quem dissesse: “Cuidado com o que se fala perto dele. Ele é dos honestos”. A honestidade era uma exceção e estigmatizada.

O diretor incorruptível desejava ser amado. Também tinha pendores literários. Fazia poemas, publicava e promovia noites de autógrafos, com coquetéis fartos. De vez em quando alguém elogiava um poema seu e ele se sentia Carlos Drummond de Andrade, de quem conhecia apenas uma parte de um poema que sempre recitava: “No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho. Tinha uma pedra. No meio do caminho tinha uma pedra.” Era amigo de todos e para lhe cair nas graças bastava fazer-lhe um elogio. Gostava de pequenos presentes, por amizade. Nunca o que fosse de elevado valor; não aceitava. Um convite para um jogo no Maracanã enchia-lhe de satisfação. Considerava um convite para jantar ou para uma viagem um pacto de amizade eterna. No Natal adorava as lembranças dos “amigos”, fosse uma garrafa de vinho barato ou qualquer pequena bugiganga. Mandaram-lhe uma gorda cesta de Natal da Lidador.

Mandou devolver. Era coisa de valor excessivo e poderia esconder segundas intenções. Se alguém lhe chegasse com uma mala de dinheiro certamente receberia voz de prisão. Mas se derretia diante de uma simples “lembrancinha”. Mulher bonita o tirava da seriedade. Houve quem contratasse umas moças que diziam ser “estudantes, modelos e atrizes” para com ele despachar. Entre sorrisos e olhares ele carimbava todos os livros contáveis, dando por concluída a fiscalização. Mas era incorruptível. Nunca ninguém duvidou que jamais recebera ou receberia qualquer vantagem capaz de enriquecimento.

Num final de ano recebeu uma garrafa de vinho personalizada. O conteúdo deveria ser intragável, naquela época de restrição às importações. Uma garrafa só. Ele a mostrava a todos. Tinha o seu nome impresso. Um vinho pessoal! O doador fazia a contabilidade para uns empreendedores que, diziam, administravam uma banca de ‘loteria zoofílica’, também conhecida como ‘jogo do bicho’. Ele gostava de samba e chorinho. Se ouvia um clássico se emocionava. Pixinguinha o levava às lágrimas. E não faltava quem lhe presenteasse, em épocas especiais, com as bolachas de vinil, onde se gravavam os clássicos do estilo. Recebia o mimo com satisfação e prova do apreço que lhe era devotado e com a felicidade de uma criança que recebe um brinquedo desejado. Mas era incorruptível! Ninguém ousava supor que pudesse receber suborno. Tal atributo era reconhecido até pelos seus desafetos.

Certa feita recebeu um convite para um ensaio numa escola de samba. Durante uma semana falou da organização da escola, da alegria na quadra, da distinção lhe conferida etc. Descobriu-se sambista e ainda mais amado. E repetiu a ida, sempre convidado. Sem saber sambar, não se intimidava em dar uns passinhos e mostrava as fotos de sua atuação, rodeado de “amigos”, dentre os quais profissionais que atuavam no campo do Direito Tributário, Contabilidade, além, claro, de contribuintes sujeitos à sua fiscalização. Era amigo de todos, mas incorruptível! A data de seu aniversário era especial e a repartição vivia clima de festa desde a manhã. Seu gabinete ostentava uma mesa farta de comidas diversas e depois das 16h00 até era permitida bebida alcóolica. Whisky era um produto caro e raro. Numa das festas presentearam-lhe com uma garrafa verde, quadrada, de um uísque nacional. A euforia ficou por conta de um detalhe: a garrafa estava fechada; lacrada. Seria aberta naquela oportunidade para todos beberem. Um assessor saiu e arrumou gelo para a degustação daquilo que, se ainda existe, deve-se vender em qualquer botequim.

Decorridos anos eu o encontrei no Centro do Rio. Eu já advogava e, de terno, derretia num calor de março. Ele já não era diretor. Paramos num bar na Avenida Rio Branco esquina com Rua do Rosário, lateral da Igreja Nossa Senhora da Conceição da Boa Morte. O bar era tão estreito que os clientes ficavam em pé na calçada e eram servidos no balcão. Enquanto éramos atendidos ele me mostrou umas fotografias e falava do carnaval no recém-inaugurado Sambódromo, projetado por Oscar Niemeyer com cálculos estruturais de José Carlos Sussekind. Aquela obra desmontara o esquema de montagem e desmontagem de arquibancadas que se faziam em todo carnaval e por isso foi tão criticada por quem se enriquecia com tal atividade. Ele não conseguira ingresso para camarote ou arquibancada. Mas como tinha “amigos”, arranjaram-lhe um colete da equipe de apoio e ficou na pista, tal como se fosse um dos trabalhadores que empregavam a força bruta enquanto os demais se divertiam. Ele ria da própria esperteza e do “jeitinho” que arrumara para assistir aos desfiles. Fiquei com pena daquele homem incorruptível. Falei disto a um contador que também o conhecia e ouvi a frase que aumentou a minha compaixão: “Ele era baratinho!”

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 05/10/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/10/6929215-joao-batista-damasceno-incorruptivel-e-baratinho.html

domingo, 29 de setembro de 2024

Presunção de inocência também vale para acusações de cunho sexual


 Não é possível corroer tal direito em nome de uma superproteção a mulheres que se dizem vítimas de ofensas relacionadas a seu gênero ou sexualidade

atribuição ao ex-ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos), logo exonerado, de condutas de importunação e assédio sexual sugere uma advertência.

Não é possível se prosseguir corroendo a garantia da presunção de inocência em nome de uma superproteção a mulheres que se dizem vítimas de ofensas relacionadas a seu gênero ou sexualidade.

Sustenta-se que sua palavra seria inquestionável, sempre verdadeira e suficiente até mesmo quando sob anonimato. Assim advogam-se condenações sem processo, simplesmente desprezando o princípio "nulla poena sine judicio" ("nenhuma pena sem lei"). O processo se tornaria uma farsa, pois, antes mesmo de seu início, já se teria estabelecido a verdade, a ser veiculada por uma acusação incontestável.

Já nas primeiras eras de elaboração do direito questionava-se não apenas a solitária palavra de autoproclamadas vítimas, mas a própria palavra de uma só testemunha. É lição do direito romano: "testis unus, testis nullus" ("testemunha única, testemunha nula"). Mas, há lição mais recente, consagrada com os direitos humanos fundamentais: dispõe a garantia da presunção de inocência que a acusação não passa de hipótese a ser ou não comprovada. Como os demais elementos trazidos pela acusação, a palavra da apontada vítima nada mais é do que uma versão do alegado fato, sujeitando-se a questionamentos e dúvidas que, submetidos ao contraditório, serão ou não desfeitos. Antes e no curso do processo não há verdade, toda palavra de qualquer apontada vítima sempre sendo questionável. Verdade sobre a alegada prática de um crime só é algo possível de ser reconhecido se e quando acontecer condenação definitiva ao final de processo regularmente desenvolvido.

O discurso que não se acanha em violentar a presunção de inocência, pretendendo tornar inquestionável a palavra de mulheres vítimas, apela para uma suposta posição de fragilidade e opressão em que estariam. Mas, no processo penal, vítimas não são frágeis ou oprimidas. Estão sim alinhadas com o Estado, com o Ministério Público, com a acusação; isto é, com o lado forte da relação ali estabelecida, visando impor o poder punitivo —poder dado ao Estado de, através da imposição da pena, deliberadamente infligir sofrimento a autores de condutas criminalizadas.

A Lei Maria da Penha estabelece que, após o registro do boletim de ocorrência por violência doméstica, o caso deve ser remetido ao juiz em,  

ofrer o peso desse poder. Esclarece o jurista italiano Luigi Ferrajoli: "O direito penal, em seu modelo garantista, equivale à lei do mais fraco que, se no momento do crime é a vítima, no momento do processo é sempre o réu, cujos direitos e garantias são —essas sim— leis do mais fraco".

Constrangimentos ao livre exercício da sexualidade, desigualdade entre os gêneros ou quaisquer outras relações hierarquizadas e discriminatórias jamais poderão ser superados com o sacrifício de direitos fundamentais. Ao contrário. Direitos fundamentais, como a garantia da presunção de inocência, pilar do Estado democrático de Direito, hão de ser sempre reafirmados. Só assim poderemos ter sociedades mais iguais e mais justas.

Maria Lucia Karam, Juíza-auditora na Justiça Militar Federal e defensora pública no Rio de Janeiro; foi juíza de direito no TJ-RJ.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/09/presuncao-de-inocencia-tambem-vale-para-acusacoes-de-cunho-sexual.shtml

Para punir o homem não basta a palavra da mulher. Para protegê-la, sim!


 Companheiros, aqui é Tânia Mandarino, advogada.

Advogada de mulheres em situação de violência doméstica e também advogada de mulheres e homens em situação de falsas denúncias.

De antemão, quero deixar claro: eu não estou aqui defendendo nem Silvio Almeida nem Anielle Franco, porque as investigações dirão o que de fato aconteceu. Eu não boto minha mão no fogo por nenhum dos dois.

Eu estou gravando este áudio, porque tenho ouvido tanta besteira nos grupos, tanta besteira, que quis vir aqui contribuir, mesmo sob o risco de ser cancelada pelo identitarismo vigente que está causando esse estrago no país.

Bem, vamos lá, quero ser rápida para não cansar.

A palavra da mulher tem prevalência absoluta, mas nunca, jamais, para o efeito de condenação do suposto assediador, ou importunador, como é o caso da ministra Anielle.

Pela Lei Maria da Penha, quando a mulher fala, a palavra dela deve ser levada em consideração. É para efeitos de medida protetiva.

O que é uma medida protetiva? É uma medida para acautelar o direito, tirar a mulher da situação de risco que ela está relatando.

Aí, vai ser conforme o caso: afastamento do suposto agressor do lar, proibição de aproximação dela, da sua família, das suas testemunhas, por um raio de 200 a 500 metros e outras proibições. Para isso, basta a palavra da mulher.

— Ah, Tânia, aí, quer dizer que o homem já foi condenado?

Claro que não. Se a protetiva é só uma medida cautelar, para o homem ser condenado vai ter que ser aberto um inquérito e vai ter, sim, que apresentar provas.

Não é porque eu, Tânia, recebo uma medida proteção do meu agressor ou suposto agressor, que ele foi condenado como agressor, sem provas. Isso não existe no Direito brasileiro.

Então, a bem da verdade, para reestabelecimento da ordem jurídica inclusive no país, para que as pessoas não fiquem ensinando Direito errado nos grupos a pretexto só de solidariedade com as mulheres.

Primeiro, a palavra da mulher em situação de violência doméstica tem especial prevalência, assim como a palavra da criança, sim, quando ela diz que está sendo abusada. E imediatamente elas devem ser protegidas.

No caso da ministra Anielli, ela não está em situação de violência doméstica, ao que me parece, a não ser que eles tenham tido um caso. Daí, sim, configura violência doméstica. E nem tampouco ela é uma criança.

Ainda também não está em situação de assédio sexual, porque o ministro Silvio Almeida não é superior hierarquicamente a ela.

Portanto, pensem bem antes de dizer que basta a palavra da mulher para o homem ser punido, como eu acabei de ouvir agora. Eu não encontro isso em nenhuma regra do ordenamento jurídico brasileiro.

Por isso, estou vindo aqui me manifestar, coisa que demorei para fazer, mas realmente está muito difícil.

No caso em questão, por mais que você queira ser solidária com esta ou com aquela figura, é preciso de provas. Não basta a palavra da mulher; não, senhor e não, senhora.

Só as provas dirão se a pessoa acusada realmente cometeu aquilo e deve ser responsabilizada criminalmente, no caso por importunação, não por assédio, repito.

Ou se houve uma falsa denúncia que também deve ser responsabilizada criminalmente pelo artigo 339 do Código Penal.

Qualquer dúvida, fico à disposição. Com toda a minha solidariedade ao Brasil, ao governo federal, que está enfrentando esta questão abjeta pela forma como vazou.

E nós penando aqui, em ano eleitoral, sabe, sofrendo por causa de uma questão tão idiota, que foi colocada de uma forma ridícula para uma ONG, é isso.

Querem me cancelar, fiquem à vontade. Abraços.

Tânia Mandarino

Fonte: https://www.viomundo.com.br/contramare/tania-mandarino-para-punir-o-homem-nao-basta-a-palavra-da-mulher-para-protege-la-sim.html

terça-feira, 24 de setembro de 2024

‘A Esquerda Não é Woke’: Filósofa explica origens da política identitária; entenda o termo

 

‘A Esquerda Não é Woke’: Filósofa explica origens da política identitária; entenda o termo

No centro do argumento de Susan Neiman está a tese de que a verdadeira genealogia do wokismo encontra-se em pensadores alheios à vibrante tradição intelectual da esquerda defendida por ela; conheça o movimento woke ou identitário

 

Por Eduardo Wolf

26/03/2024

O que une um personagem da República de Platão, o pensador pós-moderno francês Michel Foucault e o teórico nazista alemão Carl Schmitt? Pouca gente dirá que a resposta seja a esquerda woke ou identitária. Pois é isso – e muito mais – que o leitor encontrará de surpreendente no livro da filósofa americana Susan Neiman.

Em A Esquerda Não é Woke, que a Editora Âyiné publica agora no Brasil, a autora não ouviu os muitos alertas de amigos (de esquerda, como ela) para que não mexesse nesse vespeiro e decidiu pegar a fera pelos chifres: reivindicar para a esquerda a herança da tradição Iluminista, erguer mais uma vez a bandeira do universalismo e rechaçar as tendências da esquerda contemporânea que atendem pelo nome de woke. Ao fazê-lo, Neiman produziu um livro acessível, de leitura fluente e não acadêmico, ainda que sem abrir mão de sua palpável erudição e aguda capacidade analítica

No coração de seu argumento está a tese de que a verdadeira genealogia do wokismo encontra-se em pensadores alheios à vibrante tradição intelectual da esquerda defendida por ela.

A filósofa americana Susan Neiman, autora de 'A Esquerda Não é Wonke'

A filósofa americana Susan Neiman, autora de 'A Esquerda Não é Wonke' Foto: James Starrt/EditoraÂyiné

É nesta genealogia que, para a surpresa de muitos bons leitores, a figura de Trasímaco, o jovem amoralista que na República afirma que a justiça é simplesmente uma conversa-fiada para enganar os tolos, aparece lado a lado de Michel Foucault – que, na visão da autora, é apenas uma versão renovada e academicamente mais brilhante do mesmo amoralismo sofístico antigo.

Para que possamos compreender melhor como a explicação de Susan Neiman está estruturada, vale a pena recuar um pouco e reconhecer terreno em que se está pisando ao falar de woke ou identitarismo.

Ao longo dos anos 2010, tornou-se gradativamente dominante no cenário político americano um tipo de discurso à esquerda no espectro político que mais e mais centrava-se nas identidades (raças e gêneros sobretudo, mas não apenas), relegando a segundo plano velhas e costumeiras questões de classe social, situação econômica e cidadania política – tradicionais pautas da esquerda, que as lia pelas lentes da inclusão e do igualitarismo.

Ora, qual o problema desse protagonismo das identidades? Em si mesmo, nenhum, responde Neiman. Pelo contrário, todos reconhecem na linguagem das emoções que o chamado movimento woke ou identitário emprega aquela mesma linguagem das emoções que tradicionalmente definia a esquerda – a saber, “empatia pelos marginalizados, indignação com a situação dos oprimidos, determinação na busca de que os erros históricos sejam corrigidos”.

Ocorre que, a despeito das genuínas boas emoções que estão na origem do woke; apesar da bondade e correção de suas intenções, seus defensores, na verdade, aderiram a conceitos, teorias e visões de mundo abrangentes que, na verdade, são a antítese de tudo aquilo que a esquerda deveria buscar. Em suma, têm a teoria errada para os propósitos certos.

Neiman dedica o primeiro capítulo a mostrar que a esquerda deveria se manter fiel à tradição do universalismo, a tudo aquilo que temos de comum e que pode unificar lutas, reivindicações e realizações humanas. Com isso, afirma que se deve rechaçar o tribalismo que caracteriza a atual política identitária encontrada em nomes tão diversos como Judith Butler e Ibram X. Kendi, um tribalismo que “não apenas reduz os múltiplos componentes de nossas identidades a um só: ela essencializa o componente sobre o qual temos menos controle”, o gênero ou a raça.

No segundo capítulo, autora sustenta que a esquerda deveria se manter fiel à crença na justiça, que apesar de todas as falhas, não deveria ser percebida como mero exercício hipócrita do poder, pois se não há justiça de fato, pouco nos resta além do amoralismo aterrorizante de Foucault, para quem só o que há é o poder em estado bélico permanente, que ocasionalmente, “assume a forma de paz e de Estado”, fazendo da “paz uma forma de guerra, e do Estado um meio de travá-la”.

Que esse raciocínio ecoe teses do nazismo de Carl Shmitt e tenha sido encampado como retórica de parte da esquerda para afirmar que toda a história humana nunca foi mais do que um amontoado de casos de puro poder cinicamente travestido de justiça, direitos, democracia ou paz, é algo assustador.

Capa do livro A Esquerda Não é Woke, de Susan Neiman

Capa do livro A Esquerda Não é Woke, de Susan Neiman Foto: Editora Âyiné

À defesa do universalismo e da distinção real entre justiça e poder Neiman acrescenta, no terceiro capítulo, a convicção no progresso que sempre animou os ideias iluministas, bem como um amplo espectro ideológico no século 19, com destaque para o pensamento de Karl Marx. Contra a aposta iluminista, é novamente Foucault quem se destaca como guru da esquerda woke, resumindo a história da humanidade a uma mera substituição de violências, “prosseguindo, assim, de dominação em dominação”.

Universalismo, justiça, progresso: todos esses princípios, argumenta Neiman, podem ser compartilhados pelos liberais e pela esquerda de matriz iluminista a que se filia a autora. Nenhum deles define a esquerda woke. E a razão apresentada pela filósofa é que as fontes intelectuais da política identitária não são iluministas, muito menos de esquerda.

O pós-moderno Foucault comparece, na leitura de Neiman, até mesmo como possível porta-voz do neoliberalismo, e o escândalo da autora com o interesse da esquerda nas posições tribalistas reacionárias de Carl Shmitt transparece a cada linha. Como explicar, então, que tenham enfeitiçado a esquerda? A resposta de Neiman é simples: as críticas de ambos ao liberalismo serviram como uma luva a certas parcelas da esquerda.

É possível que esse diagnóstico de Neiman não seja tão convincente: o problema da esquerda woke seria precisamente não ser de esquerda. O woke repousaria sobre uma teoria “de direita”. Isso não diminui o interesse do livro, que apresenta um caso forte para a recusa do identitarismo como forma de fazer política.

Se o que deverá ser feito em seu lugar há de se nortear pelos ideais socialistas de Neiman, ou, quem sabe, pelas convicções de justiça da tradição do liberalismo político de seu orientador em Harvard, John Rawls – bem, essa é já outra questão.

 

Fonte: ‘A Esquerda Não é Woke’: Filósofa explica origens da política identitária; entenda o termo - Estadão (estadao.com.br)