Pode parecer surpreendente que os
juízes sejam contra a edição de uma lei visando a punir os abusos de
autoridade. O que parece estar sendo desconsiderado pelos juízes é que, se
editada, a lei será aplicada por eles mesmos, ainda que o acusado seja outro juiz. Quando
a lei a eles se destinam não confiam nos julgamentos dos seus
pares? Juizes são bons tão somente na aplicação da lei para os
outros? O temor da magistratura com a edição da Lei de Abuso de Autoridade
é demonstrativo de que os juízes sabem como são feitos os julgamentos, conhecem
as tramas que envolvem as investigações, as acusações, os processos e a
formação de juízo sobre os fatos e os acusados. Por isso os juízes têm medo dos
juízes. Sou juiz e também tenho medo.
Os juízes estão certos. O Direito Penal
não resolve nada. A questão é que, no Brasil, virou a panaceia para todos os
males e tem sido usado em todos os conflitos relacionais. Com a edição de uma
Lei de Abuso de Autoridade e o encarceramento se pretende resolver questões da
estrutura autoritária da sociedade brasileira. A lógica de quem pensa o Direito
Penal e o Sistema de Justiça para resolver problema de abuso de autoridade é a
mesma de quem acredita que a violência somente se combate com `tiro na cabecinha´,
ou seja, para acabar com um tipo de violência seria necessária uma violência
maior de outro tipo.
O Direito Penal vem sendo usado abusiva
e indevidamente. De conflito no campo decorrente da estrutura fundiária, a
conflitos de interesses decorrentes de relações de consumo ou exercício de
necessidades fisiológicas em vias públicas onde inexiste banheiro público, tudo
tem sido submetido ao sistema de justiça penal.
Os laços de sociabilidade e civilidade
não se estabelecem a partir do Direito. Muito menos do Direito Penal. Não somos
homicidas em série porque o Código Penal nos puniria. Mas, porque somos humanos
e nos reconhecemos como tal, assim como aos outros. O Direito Penal é
inadequado na maioria das vezes, também por ser o mais rigoroso. Além disto,
impõe `punições não previstas em lei´ como a estigmatização e a humilhação do
acusado. É o ramo do Direito mais sujeito aos riscos de cometer injustiças
irreparáveis. O Direito Penal, mesmo diante de leis claras orientadas por
princípios objetivos, é sempre abstrato e subjetivo, com aplicação carregada de
preconceitos.
De decisão judicial se recorre. Não se
pune quem decidiu. O trabalho dos juízes não pode ficar sujeito a ameaças do
Direito Penal. A independência judicial é fundamento da atividade dos juízes,
assim como a responsabilidade institucional, a imparcialidade e o compromisso
com a realização substancial da ordem jurídica. As decisões judiciais devem
estar sujeitas a revisões a fim de reparar possíveis erros. O princípio da
inocência precisa ser reafirmado em nome da sociabilidade. E esta concepção
deve ser estendida a todos os cidadãos e a todos os que são acusados. A repulsa
dos juízes à Lei do Abuso de Autoridade deve servir como reflexão de que todos
erramos e de que o Direito Penal somente deve ser aplicado como último recurso
diante de um conflito. Jamais em primeiro lugar.
Não foi a falta de lei de abuso de
autoridade que propiciou as ilegalidades na Lava Jato. Todos sabemos que
condução coercitiva de quem não fora intimado e desatendera intimação,
interceptação de conversa telefônica quando cessada a autorização, divulgação
de conversa telefônica e outras violações ao sigilo profissional, bem como
recebimentos - em conflito de interesses com os objetivos institucionais que
deveriam orientar as atuações funcionais -, a pretexto de palestras, pagos por
quem tinha interesse no resultado de causa, são ilícitos. Mas, havia instâncias
que respaldavam as ilegalidades.
A Lei do Abuso de Autoridade poderá não
atingir quem incida nas ilegalidades que pretende evitar e seja protegido. Mas,
poderá ser fundamento para perseguições a quem não atenda a interesses escusos,
ainda que ao final se conclua pela improcedência do que abusivamente se acuse.
As penas não estão somente nas sentenças, mas sobretudo nos processos a que são
submetidos os `indesejáveis´.