“Sobre as manifestações contra a política de criminalização da periferia,
contra as remoções para obras da Copa e contra as ocupações militares das
favelas, um querido amigo escreveu que as entidades que as convocaram julgam
“que o tráfico era menos danoso”. Quando jornalistas, intelectuais e
governantes tomam como referência a violência do tráfico, e não a ordem
jurídica e social justa, para analisar a ação do Estado, acabam por justificar
as atrocidades praticadas por este.”
Sobre as
manifestações contra a política de criminalização da periferia, contra as
remoções para obras da Copa e contra as ocupações militares das favelas, um
querido amigo escreveu que as entidades que as convocaram julgam “que o tráfico
era menos danoso”. Quando jornalistas, intelectuais e governantes tomam como
referência a violência do tráfico, e não a ordem jurídica e social justa, para
analisar a ação do Estado, acabam por justificar as atrocidades praticadas por
este.
Durante o período
escravagista no Brasil havia uma discussão entre aqueles que pugnavam por uma
“escravidão mais humana”. Discursos e sermões foram proferidos contra os
maus-tratos que alguns senhores dispensavam às pessoas reduzidas à escravidão.
Outros falavam sobre a alimentação adequada para o escravo. Mas havia aqueles
para quem não existe tratamento digno à pessoa escravizada, pois não há
dignidade humana compatível com a escravidão. Destes se diziam viverem nas
nuvens, tal como o condor, maior ave voadora do mundo, que vive nos Andes.
Castro Alves —
integrante da geração ‘condoreira’ — sintetizou a grandeza de olhar o mundo de
cima ou para as coisas que realmente têm importância: “Eu sou pequeno, mas só
fito os Andes”. Dela também fez parte Gonçalves Dias, que influenciou a
formação do conceito de brasilidade, repercutiu na formação do pensamento social
latino-americano e tem no poeta Pablo Neruda um dos seus notáveis herdeiros. O
que melhor temos no Brasil, formado a partir da Revolução de 1930, se reporta a
esta corrente de pensamento, passando pela Semana de Arte Moderna de 1922.
O Brasil que deu
certo não se fez entre a opção de como tratar o escravo ou como humanizar o
coronel em seu mando local. O Brasil que deu certo repudiou a existência da
escravidão, a truculência do coronel e as exterioridades de uma elite
aparentemente ilustrada que, em belos discursos, e em várias línguas, fingia
estar preocupada com os problemas sociais.
Neste momento há
juristas, jornalistas, apresentadores de TV, religiosos, prefeitos,
governadores, ministros e até a Presidência da República em concordância quanto
à necessidade de repressão a manifestantes no exercício de direito
constitucional, na apologia das atuações policiais, na autorização da ocupação
de bairros pobres e favelas pelo Exército. O repúdio ao que se faz no presente
não é desejo de retornar ao passado igualmente danoso aos excluídos.
Neste momento, ser
um ‘condoreiro’ é olhar a grandeza dos Andes, representado pelos princípios
humanitários que hão de nos orientar na formação de uma sociedade justa, humana
e igualitária. Mas há quem prefira olhar para os Alpes da Suíça, país das
contas numeradas e sede da Fifa.
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 08/06/2014,
pag. 16. Link: http://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2014-06-08/joao-batista-damasceno-entre-os-alpes-suicos-e-os-andes.html