terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Prisão e espetáculo

                                                                  Decapitação de São João Batista, Caravaggio.

A regra reconhecida pelo Estado Democrático de Direito é a liberdade. Excepcionalmente se admite prisão. Isto precisa ser cotidianamente lembrado ao ‘jornalismo mundo cão’, à parcela da sociedade civil sedenta de sangue e vingança e, sobretudo, aos juízes que decretam as prisões-espetáculo.

Nenhuma prisão é feita pela polícia. Toda prisão é determinada e/ou mantida pelo poder judiciário. A polícia apenas executa a ordem expedida. Portanto, toda prisão ilegal é de responsabilidade dos juízes.

No Brasil somente estão autorizadas as seguintes prisões:

1)     Prisão em flagrante, com fundamento no art. 301 do CPP que diz: Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. Tal prisão apenas subsiste até a apresentação do preso à delegacia e à audiência de custódia. Não sendo decretada a prisão preventiva a pessoa retoma seu status de liberdade.

 2)     Prisão em decorrência de sentença penal condenatória transitada em julgado. Dispõe a Constituição em seu art. 5º que: LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei. Prisão para impedir que o condenado em segunda instância participe de processo eleitoral é ilegal.

3)     Prisão provisória para investigação (temporária) ou para garantia do processo (preventiva).

Dispõe o Código de Processo Penal em seus artigos 311 e 312 que: Art.

“Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial”.

“Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado”.

Portanto, as prisões exemplares fundadas na moralidade, decretadas para promoção do espetáculo midiático e as decretadas como expressão de vingança contra quem seja considerado inimigo são ilegalidades que violam frontalmente o Estado de Direito.

O espetáculo é incompatível com a institucionalidade da ordem jurídica que se pretende democrática.

Se o que pretendemos é o linchamento, sem processo e sem respeito a institucionalidade própria do Estado de Direito, entreguemos o poder de punir aos sentimentos transitórios das multidões.

Em tempo no qual os cristãos comemoram o nascimento do seu Deus, seria adequado que cada qual, que crê em tal divindade, pensasse o que fez a turba sedenta de sangue e vingança contra quem nem mesmo o representante do Império Romano viu falta alguma.

Sou João Batista e quero manter minha cabeça colada ao corpo. Por isto, escrevo abstratamente sem qualquer alusão a fatos ou processos. Qualquer semelhança é mera coincidência.

sábado, 19 de dezembro de 2020

A Revolta da Vacina

No início do século 20, o Rio de Janeiro era foco de diversas doenças, tais como febre amarela, febre tifoide, impaludismo, varíola, peste bubônica e tuberculose. A febre amarela e a varíola eram as principais causas de mortes. As tripulações de navios com destino a Buenos Aires, que paravam para desembarque de passageiros, por medo, não desciam. O Rio de Janeiro já foi a Cidade Pestilenta. Somente mais tarde tornou-se Cidade Maravilhosa.

Em 1902 foi eleito o presidente Rodrigues Alves e nomeou Pereira Passos para prefeito, para reurbanizar e sanear a cidade, e o médico Oswaldo Cruz para diretor da Saúde Pública. Assim, iniciaram-se grandes obras, alargamento de ruas, avenidas e o combate às doenças. Tal como as grandes obras para os Jogos do PAN em 2007, Jogos Militares de 2011, Olimpíadas de 2012 e Copa da FIFA de 2014 a população pobre foi desrespeitada e seus casebres e cortiços demolidos, restando-lhe ocupar os morros e incrementar as favelas.

As demolições acentuaram a crise habitacional e encareceram os alugueis. O médico Oswaldo Cruz impôs vacinação obrigatória contra a varíola e os agentes de Saúde saíam acompanhados da polícia submetendo as pessoas à vacinação forçada. A campanha de saneamento e vacinação se realizou com extremo autoritarismo. As casas eram invadidas e vasculhadas.

Além de não ter havido qualquer campanha para esclarecer sobre a importância da vacina e da higiene, políticos, militares de oposição e religiosos fizeram campanha contra a vacina. Difundiam boatos, ironizavam os cientistas e duvidavam da eficácia do remédio. A boa fé e ignorância do povo foi largamente explorada.

No início do século 20, as pessoas se vestiam cobrindo todo o corpo. Daí que os religiosos propagaram era imoralidade expor os braços das mulheres para lhes aplicar a injeção. Os líderes religiosos costumam estar do lado errado da história. Foram eles que crucificaram Cristo. Pilatos, o governador Romano, apenas lavou as mãos diante da morte de quem deveria ter a vida preservada

Desde a Regência, em 1837, entre os reinados de D. Pedro I e D. Pedro II a vacina contra a varíola era obrigatória para crianças. No Segundo Reinado, de D. Pedro II, em 1846, foi instituída a obrigatoriedade para adultos. Mas esta obrigatoriedade não era cumprida, pois a produção da vacina em escala industrial no Rio de Janeiro somente começou no final do Império, em 1884.

Incentivados por líderes oportunistas e desconfiados com o governo por causa das remoções, a população saiu às ruas contra os agentes da Saúde Pública e a polícia entre os dias 10 e 16 de novembro de 1904. O Rio de Janeiro foi transformado numa praça de guerra com bondes derrubados e edifícios depredados. O movimento foi contido e a obrigatoriedade foi substituída por restrições a direitos para quem não se vacinasse. Somente quem comprovasse ser vacinado poderia celebrar contrato de trabalho, ser matriculado em escolas, casar e viajar.

Se a história acontece e se repete, na primeira vez é tragédia e na segunda é farsa. E a farsa não é produzida pelos opositores do governo contra os interesses da população, mas pelo próprio governo que deveria velar pelo interesse público. Mas, o STF proferiu esta semana importantes decisões. Declarou que estados e municípios podem importar vacina de países que já as aplicam, se a Anvisa, politizada, não liberar o registro no prazo, declarou válidas as restrições a quem não se vacinar e rejeitou recurso para desobrigar pais a vacinarem os filhos. As companhias aéreas já anunciam que não transportarão quem não tiver se vacinado. Outras empresas também poderão impor restrições.

Vacina é palavra derivada de vaca, de onde eram retirados líquidos imunizadores. Em 1904 as pessoas foram incentivadas a rejeitá-la porque foi difundido o boato de que quem se vacinava ficava com feições bovinas. É estranho ver no século 21 pessoas agindo com irracionalidade animal, em tempo de fácil apreensão de conhecimentos científicos, tal como gado a caminho do matadouro.


Publicado em 19/12/2020, no jornal O DIA. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2020/12/6049644-joao-batista-damasceno-a-revolta-da-vacina.html



sábado, 5 de dezembro de 2020

Sérgio Moro, uma pessoa amoral?

 

Viver eticamente implica fazer escolhas e conviver com o resultado. Isto exige uma postura lógica diante da vida com a compreensão de que tudo tem consequência. Muito do que suportamos pode decorrer, exclusivamente, da conduta de terceiros ou mesmo da natureza. Mas há o que depende de nossas escolhas. A debilidade intelectual é um fator que impede a compreensão da relação de causalidade entre uma conduta e seu efeito danoso. Mas, também é responsável pela irresponsabilidade a concepção mágica da vida, que atribui às divindades o que nos acontece.

Há quem conceba sermos fantoches nas mãos de divindades e que tudo decorre da ira ou da generosidade de seres divinos. O pensamento mágico tem como contraposição a racionalidade inaugurada no século XV e da qual decorreu o Renascimento das artes e a Revolução Industrial. Mas, tal modo de pensar não chegou ao nosso cotidiano.

Vivemos um momento de crise. O Brasil tem cerca de 15 milhões de desempregados. Os direitos dos trabalhadores estão sendo sucateados. A própria Justiça do Trabalho está sendo vilipendiada. O mundo do trabalho está sendo precarizado. A pretexto da luta contra a corrupção, grandes empresas brasileiras, que traziam divisas para o país, foram levadas à falência. As riquezas nacionais estão sendo entregues às corporações internacionais, em prejuízo do povo brasileiro cuja miserabilidade aumenta e já está explicitada nos indicadores sociais.

Neste cenário macabro, um dos protagonistas da destruição surge como beneficiário do caos que ajudou a provocar, sem que se estabeleçam relação entre suas condutas e as consequências. O ex-juiz Sergio Moro foi contratado pela empresa de consultoria estadunidense Alvarez & Marsal, na função de sócio-diretor para a área de Disputas e Investigações. Entre os principais clientes da empresa, está a Odebrecht, uma das construtoras mais afetadas pela Operação Lava Jato.

Moro era o juiz responsável por julgar as denuncias contra a companhia e prender seus diretores como condição para que uns depusessem contra outros. Sua contratação evidencia conflito de interesses. Mas, aparentemente, tal como no reino da amoralidade, o ex-juiz não vê problema em se levar uma empresa à falência e posteriormente se tornar sócio da administração da massa falida.

Lawfare é expressão que designa o uso do Direito como arma de guerra. No caso, não é exagero dizer que o ex-juiz Sergio Moro age como um soldado que tira proveito dos despojos de guerra. Numa guerra o vencedor se sente no direito de se apropriar dos bens do vencido. É o butim. Mas, a lógica da guerra é diversa da lógica da Justiça e um juiz não pode ter proveito da causa que julga. E por isso, a imparcialidade é um requisito para o exercício da magistratura. Juízes não podem ser amorais, a ponto de não conceberem limites para suas atuações. Mas, não sendo deuses, nem demônios, são capazes das mesmas condutas dos que condenam se inexistirem regras claras e eficazes órgãos de controle.

Se a Constituição, desde 2004, veda aos magistrados exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração, não é preciso norma legal para vedar que um juiz seja contratado por empresa cujas dificuldades decorram de seus julgamentos. A incompatibilidade, evidenciada pelo conflito de interesses, decorre da eticidade do próprio sistema jurídico. Mas, agora, quem tem o poder disciplinar é a OAB, onde o ex-juiz tem sua inscrição profissional como advogado.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 05/12/2020. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2020/12/6040569-joao-batista-damasceno-sergio-moro-uma-pessoal-amoral.html

domingo, 29 de novembro de 2020

Ninguém ganhou. Quem ganhou, também perdeu. E quem perdeu, perdeu feio!

O Rio de Janeiro tem, segundo os registros do TRE, 4.851.886 eleitores cadastrados e aptos a votar nas eleições de 2020. Deste total 1.720.154 (35,45%) não compareceram  no segundo turno realizado no dia 29/11/2020. É o maior índice de abstenção de todas as eleições cariocas e, também, o maior índice de abstenção dentre os demais pleitos realizados no país no mesmo dia.

De acordo com o resultado divulgado não compareceram 1.720.154 (35,45%), compareceram e votaram em branco 157.610 (3,25%) e compareceram e votaram nulo 431.104 (8,89%). Isto totaliza 2.308.868 (47,59%) eleitores que não escolheram nenhum dos candidatos que disputaram o 2º turno.

Compareceram às urnas 3.131.733 eleitores. Mas, apenas 2.543.019 votaram num dos dois candidatos.

Quando aproximadamente a metade dos eleitores não comparece, comparece e anula ou vota em branco o que está em jogo é a democracia.

O candidato eleito teve 1.629.319 votos. Isto corresponde a 33,58% do eleitorado total do município, 52,03% dos eleitores que compareceram e 64,07% dos votos válidos.

O candidato que disputava a reeleição teve 913.700 votos. Isto corresponde a 18,83% do eleitorado total do município, 29,18% dos que compareceram e 35,93% dos votos válidos.

A politica perdeu. A democracia perdeu. O fundamentalismo religioso foi fragorosamente derrotado. O candidato vencedor deve comemorar o resultado com cautela. Apenas um terço do eleitorado o escolheu e parcela desta fração o fez a contragosto. Muitos dos que nele votaram, em verdade, expressaram repúdio ao seu rival eleitoral e ao que representa. Não se trata de um candidato ‘efetivamente vitorioso’ que tenha tocado corações e mentes. Trata-se do mal menor, tal como uma marquise em dia de chuva de verão.

Fora da política não há solução para a vida social. Os poderes tradicionais que imperavam nos domínios domésticos do potentado rural do Brasil agrário e patriarcal jamais serão restabelecidos. Um país que jamais foi colonizado, pois colonizou o colonizador, e que domesticou as divindades e fez o carnaval jamais será ordenado pela religião. É preciso restabelecer a política como instância responsável. Mas, não qualquer proposta política. Há que ser política democrática. Os que pugnam pela democracia precisam se preocupar em restaurá-la, pois as aventuras das duas eleições passadas demonstram o risco a que está sujeita.


 

sábado, 21 de novembro de 2020

Cultura do estupro e dignidade sexual

O Caso Mariana Ferrer mobilizou a sociedade e outros casos foram reportados, assim como foram analisadas e discutidas as condutas dos agentes do Sistema de Justiça. A cada dia mais, ouço relatos de estupros e assédio sexual de amigas, alunas, filhas de amigos e de outras mulheres cuja dignidade sexual foi violada. As vítimas já não se sufocam no silêncio e denunciam. Talvez pela idade, pelo respeito que expresso pelas vítimas e seus familiares, pela confiança em mim depositada ou por outro motivo que desconheço, sou procurado para ouvir. Ouvir, em tais situações, é humanismo. Em nenhum caso vi as instituições funcionando adequadamente.

Temos deficiência no trato da questão. O comportamento formal e legal se exige da pessoa vitimada é incompatível com o seu estado emocional. Ao lado das medidas legais é preciso estabelecer serviço de apoio humanizado às mulheres vitimadas. Mesmo nos casos em que atuei, como juiz, tenho sérios questionamentos se fiz o que era mais adequado, ainda que tenha a consciência tranquila de que não teria como fazer diferente. Mais que nunca tenho compreendido não se poder esperar da pessoa vitimada por violência sexual comportamento padrão, nem exigir que a comunicação seja imediata. Cada pessoa vitimada se comporta de uma maneira, assim como cada uma tem um tempo para elaborar o que lhe sucedeu.

A constituição da família tradicional brasileira, na colonização, sob o regime de economia patriarcal, teve como característica a formação de uma sociedade agrária e escravocrata em que tudo era permitido ao senhor. ‘Senhor’ era título de potestade, a que muitos aspiravam, sem limites de qualquer ordem no âmbito de seus domínios. A fazenda, local onde tudo se fazia, tudo podia ser feito, inclusive o ‘apossamento’ das mulheres negras e índias, sem qualquer limitação ordenada pela ‘civilidade’. E, sob a ideologia de que o senhor rural tudo podia, nem a vítima deslegitimava a violência a que era submetida. Em não poucas famílias brasileiras ainda há quem se vanglorie da origem indígena sob o fundamento de ter alguma ascendente “pega a laço”. O ‘apossamento sexual’ era forma de subjugação do corpo de quem era tratada como objeto.

A violência sexual contra mulheres sempre foi tratada com irrelevância pelas instituições brasileiras. Na Colônia, em alguns casos, chegava-se a multa. Mas irrisória. Diversamente, a blasfêmia contra os santos ou a ‘feitiçaria amorosa’ era punida com degredo. O comportamento do colonizador era de sadismo e a prática sexual forçada, se não resultasse lesão corporal, não era considerada violência sexual. O estupro consistia numa transgressão deliberada para explicitar poder, demonstrar quem estava acima das normas e quem podia ‘profanar’ corpo alheio. Os Bandeirantes, ‘cablocos’ nascidos do estupro das índias, igualmente aprenderam a fazer apreensões de pessoas, escravizá-las e se ‘apossar’ das mulheres de outras tribos. O sadismo do conquistador transmitiu-se socialmente aos seus descendentes e se estendeu às demais mulheres, sob a forma de repressão sexual e social do pai ou do marido.

O estupro foi uma forma de desonrar os vencidos e suas mulheres, esteve presente em todas as guerras dos povos ocidentais, remanesce atualmente com os soldados estadunidenses no Oriente Médio e por agentes do Estado em incursões militares nas favelas e periferias, bem como nos presídios. Também está presente em ocorrências com jovens brancas de classe média, usuárias de drogas e chamadas de “ratinhas de favela”, ou outras em incursões para conhecimento de realidades distintas das suas, praticadas, por vezes, por quem também é cotidianamente vítima de outras violências. Além da prática sexual com violência ou ameaça, e com pessoa vulnerável incapaz de consentir, também é atentado à dignidade sexual o assédio de pessoa privilegiada em relação de poder.

A prática do estupro, não raro, envolve pessoa das relações sociais da pessoa abusada. O assédio sexual sempre decorre de abuso em relação de poder. Estupro não é sexo e não implica desejo e gozo, mas dominação sobre o corpo de outrem. A cultura do estupro e do assédio sexual é uma cultura de subjugação. A cultura do estupro é parte do passado que insiste em permanecer presente em nossa ‘conservadora modernidade’. A abominável cultura do estupro pode permear todas as classes sociais, graus de instrução, níveis econômicos e etnias. Se a educação não for libertadora o desejo dos que foram oprimidos será tornarem-se opressores.


Publicado em 21/11/2020 no jornal O DIA. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2020/11/amp/6030710-cultura-do-estupro-e-dignidade-sexual.html

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

A Senhora Carrefour Chantal Pillet: mulher e negra

 

CHANTAL PILLET, A DIRETORA EXECUTIVA DO CARREFOUR É MULHER E NEGRA. E ISTO NÃO IMPEDE O EXTERMÍNIO DOS NEGROS POBRES. A QUESTÃO É DE CLASSE SOCIAL

Há um padrão de tortura pelos seguranças no Carrefour que deve ser objeto de investigação.

Já não basta punir os casos noticiados, que são muitos.

Se não mudar o padrão de atuação muitos ainda morrerão. O perigo é que passem a matar sem possibilitar filmagem.

O primeiro caso que ouvi falar foi no Carrefour da Barra da Tijuca e o delegado era Orlando Zaccone. Os seguranças haviam pego duas mulheres furtando protetor solar, levaram-nas para a "salinha de correção" e telefonaram para os traficantes da Cidade de Deus virem buscá-las.

Havia um "acordo de colaboração" entre os seguranças do Carrefour e os traficantes da Cidade de Deus.

Uma das mulheres conseguiu fugir, se escondeu numa loja, telefonou para a polícia que ao chegar a levou para a delegacia para ser autuada pela tentativa de furto.

A outra foi levada pelos traficantes.

O delegado mandou uma equipe fazer uma ronda na Cidade de Deus. Ao verem a ação policial os traficantes liberaram a mulher, que estava em vias de execução por tortura. Ela telefonou para a amiga, que estava na delegacia, e recebeu instrução para ir também para lá.

Os seguranças foram presos e incursos nas penas do crime de tortura. Mas, o 'padrão de segurança' foi mantido pelo Carrefour.

O racismo institucional que se denuncia no caso de Porto Alegre/RS não se resolve com a ascensão de alguns negros aos postos de mando. Chantal Pillet, a diretora do Carrefour, é mulher e negra. E isto não impede a execução dos negros pobres em conflito com os interesses patrimoniais da multinacional francesa. A questão é de classe social. Papa Doc e Baby Doc, assim como os Ton-ton Macutes (todos negros) igualmente massacravam os negros pobres no Haiti.

A questão está no liberalismo e no capitalismo periférico. No liberalismo cada qual deve por seus próprios méritos atingir seus objetivos. Mas, no capitalismo periférico uma parcela da sociedade não está qualificada para produzir nem para consumir. Daí é que pode ser eliminada. No Brasil, a maioria dos componentes desta parcela “matável”, porque pobre, da sociedade é de pessoas negras. Mas, brancos pobres também são descartáveis na concepção dos senhores do capital, sejam os ocupantes dos topos das corporações da etnia que for. Estão a serviço dos interesses que os dominam e que não são permeados pelo valores que nos caracterizam como humanidade.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Inelegibilidade, trânsito em julgado e lei da ficha limpa



As decisões judiciais que, açodadamente, impõem efeito imediato às condenações por improbidade administrativa, sem esperar o trânsito em julgado se afiguram ilegais.

A lei de improbidade administrativa é clara. A sentença fundada nela somente produz efeito com o trânsito em julgado. Se sentença ou acórdão fundado na lei 8429/92 ainda não transitou em julgado não há decisão judicial a ser efetivada e seus efeitos dependem de apreciação dos recursos pendentes.

Diz a lei 8429/92 em seu art. 20: “A perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória”.

Mesmo com a excrescente da Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010), editada pelo presidente Lula quando achou que as instituições estariam a seu serviço e que não seriam atingido por ela, não cabe eficácia de acórdão proferido com fundamento na Lei 8429/92.

A Lei da Ficha Limpa não revogou o dispositivo da Lei da Improbidade Administrativa que impõe o trânsito em julgado como condição para a eficácia da condenação. Os Casos de inelegibilidade da LC 135/2010 são:

c) o Governador e o Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal e o Prefeito e o Vice-Prefeito que perderem seus cargos eletivos por infringência a dispositivo da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término do mandato para o qual tenham sido eleitos; 

d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes; 

e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes: 

1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; 

2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; 

3. contra o meio ambiente e a saúde pública; 

4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade; 

5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; 

6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; 

7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; 

8. de redução à condição análoga à de escravo; 

9. contra a vida e a dignidade sexual; e 

10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando; 

f) os que forem declarados indignos do oficialato, ou com ele incompatíveis, pelo prazo de 8 (oito) anos; 

g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição

h) os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;

.......................................................................................................................... 

j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição; 

k) o Presidente da República, o Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura; 

l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena; 

m) os que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, pelo prazo de 8 (oito) anos, salvo se o ato houver sido anulado ou suspenso pelo Poder Judiciário; 

n) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, em razão de terem desfeito ou simulado desfazer vínculo conjugal ou de união estável para evitar caracterização de inelegibilidade, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão que reconhecer a fraude; 

o) os que forem demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial, pelo prazo de 8 (oito) anos, contado da decisão, salvo se o ato houver sido suspenso ou anulado pelo Poder Judiciário; 

p) a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais tidas por ilegais por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão, observando-se o procedimento previsto no art. 22; 

q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos;

Portanto, nos precisos termos do art. 20 da Lei 8429/92 não se pode dar efeito imediato a condenação com fundamento na Lei de Improbidade Administrativa. Tal efeito somente se produz com o trânsito em julgado.

Num Estado de Direito todos estão subordinados à eficácia da lei, inclusive o próprio Estado dentre os quais o seu aparelho judiciário.

sábado, 7 de novembro de 2020

Desmonte do serviço público e do Brasil


Visando a qualificar os funcionários públicos o presidente Getúlio Vargas instituiu o Departamento de Administração do Serviço Público (Dasp), encarregado de formar a elite dirigente dos órgãos estatais e prestação de adequados serviços públicos à sociedade brasileira. Era um projeto de nação soberana em prol dos brasileiros e não um projeto ‘patrioteiro’ como o dos que vestem camiseta verde-amarela, mas choram e batem continência diante de bandeira de país estrangeiro para entregar as riquezas nacionais. 

Uma importante geração de brasileiros foi qualificada profissionalmente no Governo Vargas. O avô do deputado Rodrigo Maia e pai do vereador e ex-prefeito César Maia, Felinto Epitácio Maia, foi dirigente da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), desdobrada posteriormente em Banco Central e Casa da Moeda. Fez parte da geração de profissionais valorizados e qualificados para o serviço ao público na Era Vargas.

A relação familiar dos Maias com a burocracia estatal vem das origens no Nordeste e com o mercado financeiro perpassa gerações. Mas, o deputado Rodrigo Maia também é genro do ex-governador Moreira Franco, que era genro do ex-governador Amaral Peixoto que era genro de Getúlio Vargas. A parentela é conceito sociológico estudado no Brasil por Oliveira Vianna, talvez o mais importante intérprete do Brasil e intelectual orgânico do Governo Vargas.

Desde a formação do Brasil, os genros foram de muita importância política. Era mediante o casamento das filhas com os bacharéis oriundos das cidades que os coronéis estabeleciam relações com o governo central e a burocracia estatal. A Primeira República ficou notável pelo coronelismo, caracterizado pelo mandonismo local dos donos de terras, e o bacharelismo dos genros

A desorganização dos serviços públicos na Primeira República foi quase total e isto atendia aos interesses dos coronéis. A Era Vargas reinventou o Brasil, mas os projetos de desorganização dos serviços públicos em prol dos interesses privados foram retomados, em prejuízo da sociedade brasileira.

Grandes obras públicas do passado foram programadas e executadas por órgãos públicos e seus funcionários. As mais notáveis são as projetadas pelo funcionário público Oscar Niemeyer, em seus anos iniciais de carreira. Desde a Era JK as empreiteiras ganharam terreno e os funcionários que antes exerciam o papel foram sendo deixados de lado. E assim fizeram sucessivos governos nas diversas esferas federativas. No Rio de Janeiro, no Governo Leonel Brizola, foi diferente. Para construção dos Cieps foi montada uma ‘fábrica de escolas’, e dela saiu também o sambódromo

Neste momento, além da desvalorização dos servidores públicos, tem-se igualmente o desmonte do serviço público. A um só tempo atende-se a três interesses: os serviços públicos passarão a ser prestados por empresas privadas, que além de cobrar pelos serviços, serão subsidiadas pelo poder público, sem qualquer controle; os serviços a serem prestados à administração pública serão contratados no mercado, enriquecendo quem os presta e, os servidores públicos concursados e efetivos serão substituídos por ocupantes de cargos comissionados. Estes são imprescindíveis para as ‘rachadinhas’, pois funcionários concursados e efetivos não contribuem para os que os nomeiam e os mantém no cargo.

O desmonte do serviço público não é um acidente. É um projeto e atende, também, aos interesses do capital financeiro. O problema é que muita gente que está, com razão, desgostosa com os serviços prestados precariamente, não pugna pela sua melhoria, mas pela sua privatização. Mas, muitos não poderão pagar por eles quando forem prestados e cobrados pelo mercado. A PEC da Reforma Administrativa é o fim de um projeto de responsabilidade do Estado com a sociedade brasileira. É o fim do pouco que temos de Estado de Bem Estar Social.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 07/11/2020. Disponível no link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2020/11/6023080-joao-batista-damasceno-desmonte-do-servico-publico-e-do-brasil.html


segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Juiz não é feijão para amolecer sob pressão

Circula pelas redes sociais uma petição pública visando a pressionar o juiz Márcio de França Moreira para decidir pelo afastamento imediato de um ministro que estaria desmontando a proteção ao meio ambiente no Brasil.

Não conheço o juiz Márcio de França Moreira, não sei que tipo de ação está em suas mãos, não conheço os fundamentos do pedido e sequer sei onde atua.

Mas, juízes precisam ser convencidos da justiça da demanda, com fundamento no Direito e na racionalidade do sistema legal, e não pressionados para decidir como se deseja.

Juízes exercem função contramajoritária e não devem decidir de acordo com os desejos momentâneos da multidão. Se os julgamentos devessem se subordinar aos desejos das multidões não precisariam existir e os linchamentos seriam legítimos.

É preciso lembrar que o Cristo, histórico ou lendário, não foi condenado pela racionalidade do Estado Romano representado por Pilatos, mas pelos sentimentos da multidão inflamada pelos interesses representados por um sacerdote que, teatralmente, rasgou as próprias vestes enquanto discursava para o povo. Pilatos tinha o dever de ser contramajoritário, negar os desejos momentâneos da multidão, para afirmar os desejos permanentes de justiça.

Julgamento não é programa de auditório. Nem pode se submeter a injunções não republicanas.

Precisamos é de um Poder Judiciário transparente (que permita à sociedade acompanhar seu funcionamento), republicano (apartado de interesses escusos) e democrático (compromissado com a justiça substancial e não apenas formal).

De outro modo, a turba poderá ser convencida pelos donos dos meios de comunicação tradicionais ou novas mídias, quando contrariarmos os interesses destes, a se virar contra nós.

Mas, também, os juízes precisam estar dispostos a serem persuadidos e somente se convencerem ao final do processo. Não é ‘juiz idôneo’, mas carrasco, aquele que estabelece o veredicto antes da produção das provas das quais deveria decorrer o seu juízo sobre a demanda, assim como é pusilânime e indigno de assegurar os direitos de quem os detenha aquele que se deixa pressionar.

sábado, 24 de outubro de 2020

Responsabilidade por demanda opressiva









‘Demanda opressiva’, ‘ajuizamento de ação judicial para opressão’ ou ‘acionamento opressivo’ é fenômeno pelo qual indivíduos pertencentes a grupo social específico ajuízam simultaneamente ou em pequeno lapso temporal ações distintas em regiões diversas, fadadas ao insucesso, mas visando a causar mal estar em pessoa tratada como desafeto. Nos juizados especiais cíveis o réu deve comparecer pessoalmente para audiência de conciliação ou de instrução e julgamento, sob pena de revelia.

A revelia produz a veracidade dos fatos imputados ao réu. Por isso a presença pessoal é necessária para evitar sejam os fatos considerados verdadeiros e disso possa resultar condenação. Mas, sendo propostas ações em lugares distintos o réu não pode estar em mais de um lugar ao mesmo tempo ou quando em dias diversos tem que se deslocar por comarcas distintas, numa constante itinerância.

Para a busca de democratização do acesso ao judiciário foram instituídos os juizados especiais cíveis, onde ações com valor de até 20 salários mínimos podem ser propostas sem a necessidade de advogado. Isto serviu para favorecer o acesso indevido e os abusos de direito. Dois casos são emblemáticos no Brasil, quais seja, as ações movidas contra a jornalista Elvira Lobato e jornal Folha de S. Paulo e as ações movidas por policiais militares contra o jornal O DIA e o jornalista Cláudio Humberto.

O Código Civil diz que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem comete ato ilícito. Disto resulta dever de reparação, mesmo que seja apenas dano moral. Mas, para possibilitar reparação, o dano deve ser causado a pessoa determinada. Considerações gerais a corporações ou grupos sociais não são hábeis a causar dano ao individuo que o compõe. Quem veste a carapuça não se torna destinatário de eventual ofensa e não tem direito à reparação.

Mas, os que promovem ‘demanda opressiva’ podem ser responsabilizados civilmente. Isto porque o abuso de direito é ilícito. O exercício regular de direito é causa de exclusão de ilicitude, até mesmo de fato previsto como crime. Mas, contrariamente, o abuso de direito caracteriza conduta contrária à ordem jurídica e torna certo o dever de indenização pelo dano causado. O mesmo Código Civil que impõe o dever de reparação do dano causado a outrem, portanto pessoa determinada, diz que também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Todos têm direito de ação e os juízes têm o dever de dizer o direito. Ação é poder que tem cada pessoa de exigir de um juiz lhe resolva uma demanda. O direito de ação está previsto na Constituição e nenhuma lei pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Mas, o direito de ação deve ser exercido atendendo-se aos fins a que se destina e à boa-fé que deve ser própria das relações sociais.

Os exemplos citados acima dos jornalistas e dos jornais que foram importunados por ‘demandas opressivas’ há de servir de padrão para todos os que forem atingidos por tais abusos. Em ambos os casos houve decisão determinando a reunião de todas as ações para julgamento por um único juiz. Mas, comprovado o abuso de direito pelos ‘demandistas opressores’, as vítimas de tais condutas ilícitas podem devolver o acionamento e, na própria cidade onde forem residentes, podem demandar todos os abusadores e obriga-los a ir ao seu município para responder pela conduta ilícita na qual tenham incidido utilizando o Poder Judiciário.

A ação judicial é direito indispensável para a garantia dos direitos decorrentes da cidadania. Mas, a facilitação do acesso à justiça não pode servir para os abusos de grupos organizados que pretendam usar a justiça para importunar eventual desafeto. Em se tratando de jornalista ou artista, o que se busca por vezes, é cercear a própria liberdade de comunicação ou expressão.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 24/10/2020. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2020/10/6013495-joao-batista-damasceno-responsabilidade-por-demanda-opressiva.html

sábado, 10 de outubro de 2020

Volkswagen, tortura e ditadura empresarial-militar

O acordo celebrado pela Volkswagen com o Ministério Público Federal para reparar sua conduta durante a ditadura no Brasil encerra três inquéritos civis que tramitavam desde 2015. Mas, não encerra o assunto.

A montadora de automóveis se comprometeu, num Termo de Ajustamento de Conduta/TAC, a pagar R$ 36 milhões para iniciativas ligadas à defesa de direitos humanos, investigação de crimes praticados pela ditadura e à memória histórica. Quase metade do montante irá para a associação dos trabalhadores da empresa, visando, principalmente, aos "ex-trabalhadores da Volkswagen do Brasil - ou seus sucessores legais – que sofreram violações de direitos humanos durante a ditadura", disse a Volks.

A pedido da empresa, um historiador alemão elaborou estudo e relatório, em 2017, onde apontou que a Volkswagen 'foi leal' ao governo militar e que trabalhadores foram presos por reinvindicações aos seus direitos e que também houve torturas realizadas no âmbito da própria fábrica em Anchieta, em São Bernardo do Campo/SP. Muito mais que leal à ditadura a Volkswagen foi sócia do projeto de pilhagem do Brasil.

Em comunicado a Volkswagen anunciou que "quer promover o esclarecimento da verdade sobre as violações dos direitos humanos naquela época", e afirmou ser "a primeira empresa estrangeira a enfrentar seu passado de forma transparente" durante a ditadura. O papel de outros sócios da empreitada devem ser trazidos à luz, inclusive das empresas de comunicação cujos proprietários enriqueceram vendendo suas opiniões e formando a opinião pública em contrariedade aos interesses da sociedade brasileira. Um jornal paulista emprestava seus carros aos grupos da repressão política.

A ditadura não foi apenas militar. Foi empresarial-militar. Os militares que dela participaram agiram como milicianos a serviço do poder econômico e por isto perseguiram os que defendiam os interesses do povo brasileiro: nacionalistas, líderes populares, comunistas, socialistas, advogados e religiosos que se apiedavam com as condições de vida que se impunham aos trabalhadores e às gerações futuras.

Mas, a história é contínua. Os gorilas que assaltaram o poder, e receberam sinecuras para fazer o serviço sujo contra o Brasil, formaram discípulos que – no poder – continuam o projeto entreguista e de destruição do serviço público em prol dos interesses privados.

O Brasil que herdamos e contra os quais os interesses contrários ao povo brasileiro se levantam é o Brasil da Era Vargas. A venda do edifício A Noite, anunciada recentemente, na esquina da Praça Mauá com Avenida Rio Branco é emblemática. O prédio foi o primeiro arranha-céu e edifício de concreto armado da América Latina. Nele o ‘Polvo canadense’ instalara jornal e rádio para fazer propaganda dos seus interesses. Mas, Getúlio Vargas, após a Revolução de 30, cobrou as dívidas dos “Donos do Brasil” e recebeu prédio e rádio como pagamento. Assim, lá instalou a Rádio Nacional, pela qual houve comunicação nacional em rede. A TV Nacional que deveria igualmente entrar no ar foi entregue, após o suicídio de Vargas, a um empresário que ajudou a implantar a ditadura empresarial-militar e com dinheiro do sócio estadunidense foi ao ar em 1965. A criação da Petrobrás, com a oposição dos entreguistas, levou Getúlio ao suicídio em 1954. E agora está sendo sucateada por quem homenageia torturador.

Quando falamos da ditadura rememoramos as prisões arbitrárias, torturas, mortes em dependências militares, roubos, sequestros e desaparecimentos. Muitos familiares ainda hoje procuram os corpos de seus entes queridos ou seus paradeiros. Mas, o dano das políticas públicas implementadas, destruindo o futuro do povo brasileiro, é igualmente danoso e de mais difícil reparação.

Parabéns ao Desembargador André Gustavo Corrêa De Andrade, diretor da EMERJ

 



Parabéns ao Desembargador André Gustavo Corrêa De Andrade, diretor da EMERJ

Parabenizo o Diretor da EMERJ, Desembargador André Gustavo Corrêa De Andrade, pela homenagem ao Desembargador Nagib Slaib Filho e entronização do seu retrato na Galeria de Conferencistas Eméritos da escola, nesta data.

Fui aluno do Nagib nos anos 80 do século passado. No final daquela década, recém formado, vi nascer a EMERJ com o Desembargador Cláudio Vianna de Lima, sem lugar para funcionamento.

Em 1993 ingressei na magistratura e o desembargador Cláudio Vianna chamou-me para a Escola. As conferências eram, sobretudo, nas salas das sessões do Tribunal de Alçada Cível. Às vezes, em razão de sessões extraordinárias, as salas tinham que ser desocupadas. Os encontros, as reuniões, debates e orientações de monografias não eram remunerados. Tudo se resumia a convivência de magistrados que tinham em comum o gosto pelo saber.

Nagib preparava umas apostilas, cujos capítulos – distribuídos aos estagiários - eram os temas de debates em cada encontro. Estas apostilas, se reunidas, seriam um curso completo de Direito. Bastaria reuni-las e lhes colocar uma capa dura para se transformarem em tratado.

Naquele momento de nascedouro da EMERJ, que inspirou outras escolas de magistrados pelo país, ao lado do desembargador Cláudio Vianna, estava o Nagib, ainda que após as conferências (o desembargador Claudio Vianna dizia que não eram aulas) tivesse que rumar para Santa Cruz, Campo Grande ou algum lugar depois do fim do mundo onde era titular.

O desembargador Cláudio Vianna primava pela autonomia da Escola e, já aposentado, entrou numa treta com um desembargador poderoso do Órgão Especial que queria interferir em seu funcionamento. Para publicizar a pendenga o desembargador Cláudio Vianna publicou um artigo no Jornal do Commércio intitulado “Ingerências indevidas na Escola da Magistratura”. O diretor Cláudio Vianna perdeu – juridicamente - aquela batalha. Uma resolução do Órgão Especial deliberou que a Escola era integrante do Tribunal de Justiça e subordinada aos seus órgãos diretivos. Mas, moralmente ele foi o vencedor e todos o parabenizaram. A resolução serviu para documentar o confronto entre o saber e o poder. O caminho para a autonomia da Escola foi, assim, pavimentado.

Foi sob a administração do Desembargador Cláudio Vianna que o 4º andar da lâmina I foi construído e instalado o elevador de acesso à Rua Erasmo Braga. Nagib era juiz auxiliar da Administração do Tribunal e Conferencista da Escola e participou do processo.

Em todos os momentos da Escola o juiz Nagib estava presente, que além de íntegro, técnico e competente, sempre foi também trabalhador. Não só no exercício da jurisdição, mas em atividades auxiliares ao funcionamento do Poder Judiciário. Foi quem introduziu no Tribunal os computadores de mesa com um esplêndido processador de 6 MHz, HD de 10 MB e disquetes de 5¼” de 1.2 MB de memória, substitutivos das máquinas de escrever manuais. Ah! O editor de texto era o adorável ‘Carta-Certa” que não formatava enquanto se escrevia e as impressoras eram matriciais gigantes mais barulhentas que um carro velho sem cano de escapamento. Era o melhor que havia. Uma revolução!

Naquele período, um desembargador, destes que ainda andam por aí ‘ensinando’ competentes e concursados, mas vitaliciandos, a serem juízes, chegou esbaforido ao antigo bar dos magistrados do 1º andar, o velho ‘Boca Maldita’, após reunião noturna semanal da AMAERJ. Reclamava que o Nagib com sua mania de computador havia instalado um aparelho em seu gabinete que estava prestes a explodir, pois estava expelindo umas bolas de fogo e que seu assessor tinha ido embora. Eu era o juiz mais novo e, naquele ambiente hierarquizado, solicitaram-me fosse socorrer o desembargador desesperado. Inexistia brigada de incêndio e DGSEI. Ao chegar ao gabinete do desembargador vi que se tratava de um descanso de tela, instalado pelo assessor, com imagens de fogos de artifício. Salvei os documentos abertos, desliguei o computador e tentei tranquilizar o desembargador. Mas, ele me olhava com desconfiança e dizia estar temeroso de que durante a madrugada aquela “máquina infernal do Nagib” ainda pudesse explodir.

Depois a Escola ganhou outros rumos. Numa fase quase foi chamada de “biombo das corporações” (instituições financeiras, operadoras de planos de saúde, empresas de telecomunicações, empresas de transporte...) que – por meio dela - convidavam magistrados e seus familiares para “congressos” em fins de semana em resorts, a fim de lhes contar suas agruras financeiras e dificuldades operacionais elisivas de responsabilidade civil. Noutra fase quase foi confundida com uma empresa privada prestadora de serviços educacionais, tamanha a simbiose.

A Escola tinha ficado rica e tudo passou a custar dinheiro e render dinheiro. Por ter participado de uma reunião por volta de 2009 ou 2010, durante o expediente forense, recebi um depósito bancário. Restitui o valor por meio de um cheque nominativo e cruzado, informando - por ofício - ao então Diretor da Escola que a reunião fora em horário de expediente forense e que já estava sendo remunerado. Ele mandou descontar o cheque, mas nunca mais me cumprimentou. Foi a primeira e única vez em minha vida que vi alguém ficar ofendido por repetição voluntária de indébito.

O desembargador Cláudio Vianna pensava a EMERJ como “A casa cultural do juiz”. Mas, depois de sua época, o tamanho das turmas, o formato das aulas, o valor da mensalidade e outras ‘idiossincrasias clânicas’ quase a transformaram num cursinho preparatório para concurso. Para forçar a presença dos juízes foi instituída a obrigatoriedade de frequência em cursos (alguns sofríveis) como requisito de inscrição para concorrência a remoção ou promoção por merecimento, apesar da Constituição dispor ser a frequência e aproveitamento nos cursos critério de aferição de mérito.

O Nagib sempre afirmou a importância dos cursos na EMERJ. Mas, não concordava em impô-los como requisito para inscrição para remoção ou promoção por merecimento, em contrariedade à Constituição.

No Órgão Especial, o Nagib foi o único desembargador a votar em quem não tinha impedimento e se caracterizava por produtividade e presteza no exercício da jurisdição, ainda que não frequentasse os cursos da EMERJ.

No Conselho da Magistratura – quando o compôs - somente o Desembargador Rogério de Oliveira Souza tinha igual entendimento. Recentemente, em razão de recurso ancorado em tese de voto vencido, no Conselho da Magistratura, do Desembargador Paulo de Tarso, o Órgão Especial, por unanimidade, declarou inconstitucional a exigência de curso como requisito para inscrição em promoção ou remoção por merecimento, restabelecendo o primado da Constituição sobre resolução do próprio tribunal.

Quando forem estabelecidos critérios objetivos para promoção ou remoção por merecimento, certamente a frequência e aproveitamento dos cursos da EMERJ serão considerados como critério objetivo de aferição do mérito. Assim, o filhotismo e o compadrio das oligarquias institucionais, capazes de formar ‘listas prévias’ com anos de antecedência, darão lugar a critério justo de aferição de efetivo merecimento.

Do quarto andar da lâmina I, a EMERJ foi para a Cidade do Samba, mas – desfilando - voltou para o complexo atual, ocupando o antigo prédio da Procuradoria Geral do Estado. Embora contrariado com a localização, Nagib não se recusou a ir para o Porto Maravilha. Foi, voltou e nela permaneceu por 28 anos.

A EMERJ cresceu muito em seus mais de 30 anos de existência e também já experimentou as agruras de quem vive no mundo, inclusive o cerceamento à liberdade de expressão, o mandonismo da ignorância, a tosca exclusão ideológica e o nepotismo. Mas, resiste!

Num período de reinado do mandonismo e de condutas violadoras dos princípios que devem nortear a administração pública, eu lembrei ao Nagib que deveríamos recitar aos truculentos o discurso, proferido em 12 de outubro de 1936, por Miguel de Unamuno, reitor da Universidade Salamanca, ante o ataque dos ‘Camisas Azuis’ da Falange apoiadora do general José Millán-Astray: “Vencereis porque tendes sobrada força bruta. Mas não convencereis porque para convencer há que persuadir. E para persuadir lhes falta algo que não tendes: razão e direito”.

A galeria dos conferencistas também cresceu e ganhou novas imagens. Nela há de tudo. Magistrados brilhantes, professores que honram o magistério e o mundo jurídico, mas também de quem cuja atividade preponderante é a que nos Estados Unidos foi regulamentada pelo Federal Regulation of Lobbying Act editado em 1946 e reformado pelo Lobbying Disclosure Act em 1995. Estes precisam de fotos em galerias, nomes em placas, diplomas honoríficos e medalhas, demonstrativos de prestígio.

Mas, na EMERJ e em sua galeria de fotos também há Nagibs, assim como ao tempo da Inquisição havia Galileus. O Desembargador Nagib Slaib Filho é uma das bases sobre os quais se assenta a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro/RJ. Sua carreira foi orientada pela competência, independência e apurado senso de justiça, requisitos indispensáveis a todo magistrado, sem os quais as sociedades afundam na vileza e iniquidade.

A magistratura precisa honrar os magistrados para ser honrada pela sociedade. Nagib é a melhor representação do que é ser um juiz; é um ícone. A homenagem possibilitada pelo Desembargador André Gustavo Corrêa de Andrade ao Nagib é uma demonstração do retorno à EMERJ dos valores caros a toda a magistratura e que faltaram por curto, mas triste, período.

Parabéns à EMERJ pela entronização do retrato do Professor e Desembargador Nagib Slaib Filho em sua Galeria de Conferencistas Eméritos.

O retrato do Nagib, juntamente aos de outros Conferencistas do mesmo quilate ético e intelectual, honrará a galeria.

Rio de Janeiro, 09 de outubro de 2020.