A comunidade jurídica e os brasileiros de diversos
campos comprometidos com o Estado Democrático de Direito e com os
princípios consagrados na Constituição de 1988 saudaram a indicação do
ministro Flávio Dino, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para o
STF. Ao ministro Flávio Dino devemos a capacidade do desmonte do golpe que
se urdiu no dia 08 de janeiro passado. Já tive a oportunidade de
comentar neste espaço, em artigo anterior, o que poderia ter resultado se,
ao invés da intervenção na Polícia Militar do Distrito Federal, tivesse o
Governo decretado uma GLO e entregue o poder aos militares das Forças
Armadas mancomunados com o atentado às instituições democráticas.
O controle de constitucionalidade, tal como o conhecemos,
tem origem nos EUA. E decorreu da compreensão do funcionamento
das instituições judiciárias e políticas pelo juiz John Marshall, na
nascente nação estadunidense. Em 1803, a Suprema Corte estadunidense
deparou-se com o caso Marbury versus Madison, onde questões de ordem
política e jurídicas se entrecruzaram. Da solução deste caso, pelo juiz
John Marshall, resultou o que hoje se denomina "controle de
constitucionalidade das leis ou atos normativos".
Os Republicanos, liderados por Thomas Jefferson, derrotaram
os Federalistas, liderados por Alexander Hamilton. Antes da passagem
do poder em 1801, os Federalistas criaram cargos e fizeram nomeações que
os Republicanos não pretendiam manter. Dentre os cargos criados estava o
de Juiz de Paz do Distrito de Columbia para o qual o Presidente John
Adams havia indicado ao Senado William Marbury. O Senado aprovara
a nomeação. Os nomeados não haviam sido empossados, pois o
Secretário de Estado (da gestão do Presidente Adams), John Marshall, não
preparara os atos de posse. O novo Secretário de Estado, James Madison, se
recusava a preparar os atos para a posse dos nomeados.
William Marbury impetrou uma ação contra James Madison requerendo sua
condenação em preparar os atos e garantir as posses. John Marshall,
ex-Secretário de Estado do Presidente Adams e agora ministro da Suprema
Corte, anteviu que o deferimento da medida seria descumprido e que a
Suprema Corte ficaria desmoralizada em seu nascedouro. O Presidente John
Adams e seus auxiliares desdenhariam do judiciário e não dariam
cumprimento às suas decisões. Sem nem ao menos um cabo e dois soldados ou
uma horda preparatória da sua destituição, a Suprema Corte poderia vir a
ser desconstituída. Compreendendo a armadilha que lhe armaram, o Juiz John
Marshall lançou mão de argumento que o candidato derrotado à Presidência
escrevera numa carta ao Povo de Nova York, que resultou no número 78 d'O
Federalista. Tal argumento era de que as leis são elaboradas pelos representantes
do povo e por um poder constituído. Mas as leis que disponham de forma
diferente da Constituição, elaborada pelo povo, são com ela incompatíveis
e não podem ser aplicadas. A Constituição prevalece sobre as leis.
O caso Marbury vs. Madison foi o primeiro momento, que se
tem notícia, em que se deixou de aplicar uma lei, sob o fundamento
da supremacia da Constituição. Foi a primeira vez em que se julgou
causa desta natureza e se empreendeu resultado no qual a Suprema Corte dos Estados
Unidos passou a rever os atos do legislativo.
No Brasil, viemos a conhecer a possibilidade de controle
de constitucionalidade das leis a partir da Proclamação da República.
O Decreto 848 de 1890 dispunha que "O Poder de interpretar as leis
envolve necessariamente o direito de verificar se elas são conformes ou
não à Constituição, e neste caso cabe-lhe declarar que elas são nulas e
sem efeito". O controle de constitucionalidade das leis inexistia no
período monárquico, isto porque a sanção imperial excluía qualquer vício
nelas contido. Ainda assim, a Constituição de 1891 não conferia ao STF o
poder de apreciar ações diretas de inconstitucionalidade. Somente em
processos determinados se apreciava se o direito postulado deveria ser resolvido
à luz da lei ou se esta contrariava a Constituição, caso em que aquela
deveria ser afastada e aplicada a Constituição.
A atuação do ministro Flávio Dino no longo período no qual foi juiz
federal, atuando – também – como presidente da associação de classe, bem
como primeiro secretário geral do CNJ e sua notável atuação no campo
político, como governador de estado e ministro da Justiça, demonstra o
acerto da indicação presidencial. Com sua indicação ganha a democracia,
ganha o Estado de Direito, ganham as instituições e ganha o povo
brasileiro. Enfim, ganhamos todos!
Publicado originariamente no jornal O DIA, em 02/12/2023, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2023/12/6751332-flavio-dino-na-defesa-do-estado-democratico-de-direito.html