Antes de me
reportar ao que se denomina política de segurança pública na atualidade vou
lhes convidar a uma reflexão sobre o conteúdo desta expressão. Trata-se de expressão sem conceito que a
defina. Em Direito temos uma categoria de expressões que chamamos de “conceitos
juridicos indeterminados”. E nesta categoria podemos incluir a expressão “segurança
pública”. Não se trata de política que expresse o que assegura. Ao contrário,
no Estado do Rio de Janeiro, vitrina das políticas para o Brasil, tem se
notabilizado por políticas de violaçãos aos direitos. Não se trata, assim de
uma política de segurança dos direitos. Ao contrário, da sua supressão.
É uma
política que viola o direito de ir e vir a exemplo das blitz que apressionam
meninos negros e pobre a fim de impedir que cheguem às praias da Zona Sul da
cidade ou quando se promovem conduções para averiguação; é uma política que
viola os domicílios, invadidos sem mandado de busca e apreensão; é uma política
que viola a dignidade da pessoa humana quando submete presos a tortura para confissões
ou para satisfação da perversidade do torturador; é uma política que autoriza o
assassinato de pessoas com o acobertamento pelos autos de resistência.
A política
de segurança implementada no Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2007 foi
denominada pelo Estado de “política de confronto”, mas na época
editamos um manifesto que a qualificou como “política de extermínio”.
Tal “política
de exterminío” busca se legitimar na ordem jurídica por meio dos autos
de resistênica, cuja análise foi detidamente feita – em sede de doutoramento em
Ciência Política – pelo delegado Orlando Zaccone, da qual resultou o livro “Indignos de Vida, a forma jurídica da
política de exterminio de inimigos na cidade do Rio de janeiro”.
Os autos de
resistência são uma das espécies das violações aos direitos fundamentais que
vêm sendo praticados pelo Estado no Rio de Janeiro. Mas, para analisar outras
formas de abusos praticados no âmbito da política de segurança do Estado do Rio
de Janeiro, vou, também, me reportar a outras espécies de abusos perpetrados
por agentes estatais e aos papéis que são desempenhados pelas instituições em
nosso Estado que tem servido de escola para outras polícias no Brasil.
Muitos são
os abusos que se praticam contra a cidadania. Todos vêm envolvidos em roupagem
institucional, verdadeiras farsas, buscando legitimar o ilegitimável e tentar
fazê-los parecer com atos legais. Mas, somente a miopia institucional ou a
conivência permite tais comportamentos de quem tem o dever de resguardar o
Estado de Direito e estabelecer as diretrizes de funcionamento da Administração
Pública. Refiro-me ao uso imoderado da violência, e portanto uso de violência
ilegítima, às prisões para averiguação, aos latrocínios, e aos autos de
resistência no âmbito da atividade policial.
A força é a
última razão do Estado. Estado é o ente que no âmbito de um território
reinvindica o exercício da violência legítima. Daí é que não se pode conceber
Estado sem a força. Mas, não se pode tolerar que a dominação se pretenda justificar
pela força. A fonte de legitimação do Estado há de ser a crença na sua
eficácia. Não se está aqui falando de uma abstrata política de paz, fundada na
boa vontade, pois a força é legítima até em defesa pessoal para repelir mal
injusto e grave. O que estamos abordando é o uso imoderado da força como
fundamento de uma política de segurança.
Corroborando
a atuação do Estado à margem do Estado de Direito, temos também as
investigações feitas pelo Ministério Público, o emprego de policiais militares
em diligências que caberiam a órgãos do MP, os fundamentos dos pedidos de
arquivamento dos autos de resistência e o próprio arquivamento dos autos de resistência
pelo Poder Judiciário. Isto, sem tangenciarmos a questão dos instrumentos de escuta e
interceptação de telecomuncações à margem da lei, como aparelho “Guardião”,
instalado na Secretaria de Estado de Administração Penitenciária/SEAP, um órgão
administrativo sem poder investigatório, mas que maneja equipamento de escuta
telefônica.
O modo de
atuação da polícia do Estado no tempo presente é expressão do Estado Policial e
se contrapõe ao Estado de Direito. Um Estado Policial não se caracteriza,
necessariamente, pelo poder da policia. Mas, pelo funcionamento obsessivo e
opressivo dos órgãos do Estado, com acentuada e prepotente intervenção na vida
cotidiana e simplificação dos procedimentos, em contraposição à complexidade
das relações sociais, à dignidade da pessoa humana e a civilidade que
possibilita a existência comum. Nas “Jornadas de junho de 2013” tivemos a mais
candente expressão do que é o Estado Policial. Naquele momenot, o Estado se comportou
como dono do nosso destino e com poderes para transferi-lo a empreiteiros e
concessionários de serviços públicos. Não reconheceu a instância pública. Tudo foi
tratado como estatal e privatizável. Assustado com a reação da sociedade lançou
mão da truculência. Veículos descaracterizados da polícia foram flagrados
disparando a esmo em ruas da Zona Sul da cidade; agentes do Estado à paisana
foram flagrados promovendo tumultos, identificando-se para grupamentos
policiais e no meio deles trocando de roupa para se disfarçarem e tropas
policiais foram flagradas encurralando e atacando trabalhadores, crianças e
estudantes pelas ruelas do centro da cidade.
O Estado que
foi tão eficiente para criminalizar manifestantes das “Jornadas de Junho”,
muitos dos quais ainda respondem a processos e outros restaram condenados, não
teve a mesma eficiência para apurar os abusos cometidos por seus agentes. Isto
porque desempenhavam uma política de Estado, a denominada política de segurança
pública, e não se podia dizer tratar-se de desvio de conduta.
Os autos de
resistência são práticas dos Estados Policiais que converte os cidadãos em
inimigo a ser combatido. Mas, num Estado de Direito se traduzem em ilegalidade
do Estado, ainda quando aplaudido pela mídia e, por vezes, autorizado pela
opinião pública formada a partir da propaganda oficial e dos interesses da
classe dominante.
Também se
contrapõe ao Estado de Direito a prisão para averiguação, pois nada mais é que o
seqüestro praticado pela polícia. E somente a Lei do Abuso de Autoridade, lei
nº 4898 de 09 de dezembro de 1965, editada no início do regime
empresarial-militar que sufocou as liberdades por 21 anos neste país, atribui
nome diverso de seqüestro a tal conduta. Trata-se de uma ilegal privação de
liberdade da pessoa.
Quanto ao
estado de liberdade uma pessoa somente pode ostentar dois estados: livre ou
preso. A pessoa livre tem o direito de ir e vir e, se lhe convier, permanecer
onde estiver. O outro estado, o de prisão, somente se autoriza em caso de
flagrante de delito ou ordem escrita de autoridade judiciária competente.
Inexiste no Direito Brasileiro terceira possibilidade de cerceamento de direito
de ir e vir. Prisão para averiguação, condução para delegacia para fins de avaliação
pelo delegado ou outra desculpa que torne a pessoa sujeita à arbitrariedade
policial se afigura violação ao direito da pessoa humana. Portanto, fora da
prisão em flagrante ou mandado judicial que a autorize, qualquer cerceamento ao
direito de ir e vir se traduz em ilegalidade e há de ensejar a responsabilidade
do agente. Não convivêssemos pacificamente com as prisões para averiguação o
pedreiro Amarildo não teria tido seu direito constitucional de ir e vir
violado, não teria sido morto e não teriam desaparecido com seu corpo.
Além da
prisão para averiguação e ao lado dos autos de resistência, também temos
convivido com a prática policial do latrocínio. Em 2003, a morte em dependência
policial do chinês naturalizado brasileiro Chan Kim Chang, que tentava embarcar
num avião com alguns dólares não declarados, é emblemática. Daquele episódio
resultou a exoneração do Secretário Estadual de Direitos Humanos, João Luiz
Duboc Pinaud, que denunciara a ilegalidade do Estado. Em contraposição
reforçaram-se os poderes dos grupos truculentos que ampliaram o poder ilegal do
Estado. Para suceder o Secretário João Luiz Duboc Pinaud na Secretaria de
Direitos Humanos foi nomeado um coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro. É
emblemático que um jusfilósofo tenha sido sucedido na Secretaria de Direitos
Humanos do Estado por um coronel da polícia. Há precedente na história do
Brasil quando Floriano Peixoto, dunrante sua ditadura, inviabilizou o
funcionameno do STF e nomeou um oficial do Exército para chefiar a polícia,
quebrando a hegemonia dos bacharéis em Direito e magistrados em tal função.
Latrocínio
voltou a ser praticado por policiais contra a comerciante chinesa Ye Goue em
2008. Ela saíra de uma casa de câmbio no Shopping Downtown onde trocara R$ 220
mil por US$ 130 mil. O taxi que a conduzia fora parado por policiais que
disseram a levaria para a delegacia para fins de averiguação. Seu corpo jamais
apareceu. Em tais situações, o que o Estado faz é desqualificar a vítima e
atribuir qualidades positivas aos violadores do ordenamento jurídico. Diante do
latrocínio e ocultação do cadáver da chinesa Ye Goue, o jornal O DIA de 08 de
agosto de 2008 publicou o seguinte: “Delegado
da DHBF, Ruchester Marreiros disse que não há provas concretas contra os
policiais. ‘Não há imagens dos rostos
deles. Abrimos sindicância e nos surpreende porque eles são da equipe de
cumprimento de mandados de prisão, trabalham bem e têm condecorações’, afirmou".
Em meios às
manifestações de 2013 o chefe institucional do Ministério Público/MP, do Estado
do Rio de Janeiro, saiu do seu gabinete e foi à rua conversar com
manifestantes, com uso do megafone de um deles, num sinal de compreensão de que
somente a vontade popular legitima as instituições num regime democrático. O Procurador
Geral de Justiça/PGJ prometera requisitar investigação diante da truculência
policial praticada por ocasião das manifestações. E mais, dar transparência a
todos os seus atos. Mas, não temos ciência das apurações realizadas. Ao
contrário, a criação da Comissão Especial de Investigação dos Atos de
Vandalismo/CEIV, composta também pelo MP, foi a resposta aos manifestantes.
Aquele era o momento no qual o MP poderia ter implementado seu poder constitucional
de controle da atividade policial. Mas, além do MP compunha a CEIV o delegado
Ruchester Marreiros, conhecido desde o caso da comerciante chinesa Ye Goue e
notabilizado no relatório -não referendado pelo delegado titular da 15ª DP - no
Caso Amarildo.
O MP tem
poderes expressos para instaurar e presidir o inquérito civil público, promover
a ação civil pública, requisitar a instauração de inquérito policial e
diligências investigatórias, promover a ação penal pública e exercer o controle
da atividade policial. A Constituição não lhe outorga poderes expressos para
investigação criminal. E se não lhe conferiu, não pode promovê-la legalmente.
Não havemos de demandar do MP investigação direta das atrocidades cometidas
pelo Estado, sob pena de demandarmos que atue à margem dos seus poderes. Mas
pode requisitar informações e a instauração de inquéritos, bem como acompanhar
as diligências policiais.
Disse o Ministro
Luiz Roberto Barroso que “viver em Estado de Direito significa fazer
tudo o que eu posso, e não tudo o que eu quero”. O combate à
criminalidade ou a busca do fim da impunidade não podem ser feitos com os
agentes do Estado atuando à margem da lei, sob pena da perda da superioridade
ética que legitima a atuação do Estado. Uma política de segurança implantada
nestas bases está fadada ao fracasso, pois começa violando direitos e garantias
e acaba por ilegitimar todo o ordenamento juridico.
Abordadas
estas ilegalidades praticadas pelo Estado tratarei especificamente dos autos de
resistência. Este, em muitas vezes, encobre o homicídio com a apresentação do
cadáver. Pior que esta conduta somente o homicídio com o desaparecimento do
corpo como o do pedreiro Amarildo, da engenheira Patrícia, da chinesa Ye Goue e
de tantos outros. Em todas as situações o que se fez foi buscar desqualificar as
vítimas a fim de justificar a truculência estatal. No caso da engenheira
Patrícia a polícia chegou a fazer incursões na Rocinha sob o fundamento de que
ela teria ido até lá comprar drogas e teria sido morta por traficantes. No caso
da chinesa Ye Goue discutiu-se a origem do dinheiro que transportava e
elogiou-se a ficha funcional dos policiais. No caso de Amarildo tentou-se dizer
que era vinculado ao tráfico e que sua casa é rota de fuga, ainda que fisicamente
isto fosse impossível.
O auto de
resistência é o irmão siamês da ocultação de cadáver; do desaparecimento com os
corpos das vítimas. Neste desaparece o corpo. Naquele a dignidade da pessoa é
vilipendiada a fim de justificar o homicídio. Vivemos momento de contraposição
do Estado à sociedade civil. Esta é a tônica da atual política de segurança
pública do Estado do Rio de Janeiro. A desqualificação da vítima é a tônica deste
Estado Policial. A fim de legitimar os autos de resistência o que se faz é
juntar folha de antecedentes, registros de ocorrências ou depoimentos forjados
a fim de justificar a vileza e o arbítrio mórbido.
Estamos
diante de uma forma autoritária de relacionamento do Estado com a sociedade,
onde pela desqualificação da vítima se busca justificar a eliminação daquele
que é tratado como inimigo do Estado. O vendedor de mercadoria que em outras
épocas não era ilegal é tratado como indigno de viver. Se não é vendedor do que
se proíbe alega-se que é, a fim de promover a desqualificação que justifique a
morte ou o desaparecimento. Não se submete a julgamento por conduta concreta;
por fato praticado. Elimina-se pela qualidade que se diz negativa: traficante.
Em geral, negros, pobres e jovens.
Tenha a
qualidade que tiver, uma vítima será sempre uma vítima. Não há de ser tratada
como suspeita. A vida é o valor maior. E nenhum dos seus atributos há de ser
justificativa para sua eliminação. O levantamento de antecedentes da vítima é
forma odiosa de legitimar os crimes do Estado, mas que largamente se pratica
para legitimar os autos de resistências. Não há mecanismo legal que possa
impedir o delegado de fazê-lo, ainda que seja desejável a vedação de
investigação sobre antecedentes da vítima. Mas, o Ministério Público pode
requisitar informações do delegado das razões ensejadoras da juntada de
antecedentes do morto, quando dispensáveis à apuração do fato. Se apenas o
fato, ocorrência concreta no mundo natural, há de ser apurado, qual a razão da
juntada de informações desqualificadoras da vítima? Este abuso das autoridades
policiais haveria de ser controlado pelo MP, como forma de demonstrar sua
rejeição á politica de exterminio.
Em São Paulo
autoridade dirigente do Estado declarou, em tempos passados durante uma
chacina, que algumas vítimas tiveram seus antecedentes consultados momentos
antes de suas mortes, o que evidencia o tipo de Estado que estamos construindo
no Brasil. Mas, se inexiste mecanismo legal que impeça a juntada de folha de antecedentes
da vítima em inquérito que deveria apuarar sua morte, porque a lei que rege o
inquérito policial o autoriza, podemos, além da atuação do Ministério Público
no controle da atividade policial, pensar e tentar instituir novo modelo de
investigação criminal. Mas, é certo que de nada adiantaria ampliar os poderes
do MP, propiciando-lhe promovesse investigações criminais, sujeitando tão nobre
instituição ao resvalamento para as práticas hoje vivenciadas, hoje, em sede
policial.
Se a atuação
dos agentes do Estado com uso imoderado de violência, prisões para averiguação,
latrocínios, homicídios, desparecimentos e lavratura de autos de resistência
nos ocupam, havemos de nos ocupar também com os pedidos de arquivamento dos
autos de resistência pelo Ministério Público e sua efetivação pelo Poder Judiciário.
A qualidade
da vítima não pode ser fundamento justificador do arquivamento. Se o MP alega
que é legítima defesa não há muito a fazer, diante da privatividade da
competência para promover a ação penal pública. E esta é outra questão que
havemos de pensar, problematizar e buscar uma solução que contemple a dignidade
da pessoa humana.
Na Assembléia
Nacional Constituinte de 1988 atuaram – legitimamente - corporações e setores
organizados da sociedade. Um deles, o que talvez mais tenha saído fortalecido
foi o Ministério Público. Mas, não sei se a atribuição de competência privativa
ao MP para promover a ação penal pública foi a mais acertada para a cidadania.
O caso dos acordos políticos que ensejou a impunidade das atrocidades
praticadas durante o regime empresarial-militar é emblemático. O acordo fora
celebrado em patamar distinto do que se situavam as vítimas e seus familiares.
Portanto, aqueles que não fizeram parte do pacto que anistiou o Estado e seus
agentes pelas atrocidades, não estão a ele vinculados. Da mesma forma, no caso
da política de segurança do Estado do Rio de Janeiro.
As decisões
estatais sobre as violações aos direitos humanos, que isentam agentes do Estado
de responsabilidade, sejam emanadas do legislativo com seu poder de anistia,
sejam emanadas do MP ou do judiciário, não vinculam as vítimas de tais
violações ou seus familiares, a quem há de ser reconhecido o direito à verdade
e à justiça. Se não forem reconhecidas nas instituições públicas brasileiras, caberá
às cortes internacionais fazê-lo.
Hoje, diante
do pedido de arquivamento dos autos de resistência, formulado pelo MP, com
fundamento em desqualificação da vítima, pouco se pode fazer no âmbito judiciário.
Há o entendimento de que sequer cabe ao juiz – se discordar do pedido de
arquivamento - remeter ao Procurador Geral de Justiça para avaliação da
pertinência da propositura da ação com fundamento no art. 28 do CPP, pois não
teria sido recepcionado pela Constituição. Assim, nem mesmo os familiares da
vítima poderiam propor a ação competente para responsabilizar os assassinos.
Não queremos
viver numa sociedade punitiva. Mas, a vida é valor fundamental; o maior deles.
E, portanto, diante da violação ao direito de viver, havemos de reagir, sem que
com isto sejamos tratados como punitivos ou truculentos. Vivemos num sistema
que gera letalidade. O Estado mata. O Estado tem matado com suas armas de fogo;
paradoxalmente tem matado com armas não letais e por fim tem matado de
tuberculose no sistema prisional. Nestes casos, o Estado encarcera, subtrai a
liberdade, expõe ao risco do contágio e ao final não propicia e ainda impede o
tratamento. O Estado tem matado de diversas formas.
Vivemos num
sistema de altíssima letalidade. Neste sentido podemos dizer que os órgãos de
segurança do Estado são de altíssima periculosidade social. Queremos a vida e a
queremos em abundância. Queremos a paz. Mas, não a paz dos cemitérios. Não a
paz pregada pela Companhia de Jesus que impunha “Perinde ac cadaver”, locução latina que traduzida
literalmente significa “obedecer como um cadáver”. Este modo
de conceber o outro pelas instituições é que permitiu a edição, por D. João VI,
da Carta Régia ao governador de Minas Gerais Pedro Maria Xavier de Ataíde Melo,
em 13 de maio de 1808, nos seguintes termos:
“tendo-se
verificado... a inutilidade de todos os meios humanos, pelos quais tenho
mandado que se tente a sua civilização e o reduzi-los a aldear-se e gozarem das
justas e humanas leis que regem os meus povos; e até havendo demonstrado quão
pouco útil era o sistema de guerra defensivo... sou servido por justos motivos
que ora fazem suspender os efeitos de humanidade que com eles tinha mandado
praticar (e) ordenar-vos: que desde o momento que receberdes esta minha Carta
Régia, deveis considerar como principiado contra estes índios antropófagos uma
guerra ofensiva... que não terá fim senão quando tiverdes a felicidade de vos
senhorear de suas habitações e de os capacitar da superioridade das minhas reais
armas de maneira tal que movidos do justo terror pelas mesmas, peçam a paz,
sujeitando-se ao doce juizo das Leis e prometendo viver em sociedade, possam
vir a ser vassalos úteis”.
A paz que
havemos de querer não há de ser a de vassalos úteis. Não há de ser a paz das
cidades prestes a serem invadidas. Não há de ser a paz das comunidades
militarmente ocupadas, onde o exercício do direito de ir e vir ou de manifestar
pensamento é risco de morte. Isto não é paz. É silêncio por admoestação; é
quietude por intimidação.
A
truculência do Estado e seus agentes, sem possibilidade de defesa, não propicia
uma cultura de segurança cidadã; uma segurança dos direitos. A paz não pode ser
construída com a guerra, com a ocupação militar, com invasão de domicílios para
revistas ou com os esculachos.
Cadáveres,
corpos ocultados ou desaparecidos não são indicativos da construção da paz,
como pretendeu a gratificação faroeste, plantada pela militarização e cujos
frutos estamos colhendo.
É fácil
responsabilizar praças pelas más escolhas dos governantes. Mas, o soldado que
mata é brutalizado para não compreender que o mal que há de combater não é o
negro, pobre e favelado que lhe mandam enquadrar. Queremos uma polícia melhor.
Mas, somente teremos uma polícia melhor se o Estado abdicar da violência
ilegítima.
A polícia
não deixará de ser violenta se o Estado continuar a ser violento. A polícia
mata, porque foi brutalizada para fazê-lo. Foi brutalizada para não compreender
o mal que faz. Policiais cantam o refrão do seu hino evocando a luta contra o
mal e que ser policial é, sobretudo, uma razão de ser. É, enfrentar a morte e
mostrar-se um forte. Se a polícia é brutalizada para não compreender o que faz,
os demais atores do sistema de justiça não podem se brutalizar e perder a compreensão.
Assim, governantes, parlamentares, membros do Ministério Público e do Poder
Judiciário hão de ter a compreensão do que fazem e impedir que a brutalidade
continue a ser semeada. Igualmente os jornalistas. Não podemos nos brutalizar.
Havemos de ser o diferencial. Não podemos legitimar a matança e a ocultação dos
cadáveres por meio da desqualificação da vítima. As empresas de comunicação
ajudam a formar a opinião pública. Os donos das empresas de comunicação têm
interesses que, por vezes, se contrapõem aos interesses da sociedade. Mas, os
profissionais qualificados da mídia podem contribuir com uma nova cultura.
Precisam ter valores e pautar suas condutas profissionais na valorização da
vida e da dignidade da pessoa humana. Não basta que tenham compromisso com a notícia,
notadamente quando ela se limita à divulgação da versão oficial, sem necessária
apuração. Para a divulgação das versões oficiais existem as assessorias de
imprensa.
Nós que
atuamos no sistema de justiça havemos de pautar nossas condutas funcionais pela
estrita legalidade, exercendo os poderes que nos foram conferidos pela ordem
jurídica em proveito da sociedade. A atribuição de cada cargo por nós
titularizado somente nos é dada pela lei e pela lei é delimitada. A atuação à
margem da lei se traduz em ilegalidade. E, à margem da lei, todos seremos
marginais.
Para
concluir, vou parafrasear Bertold Brecht:
Primeiramente,
durante a ditadura empresarial-militar eles torturaram, mataram, roubaram,
estupraram e desapareceram com aqueles que eles chamavam de subversivos. E
muitos não disseram nada. Afinal, não eram subversivos.
Em seguida
eles instituíram a gratificação faroeste que premiava com dinheiro e reconhecia
bravura naqueles que matassem traficantes ou assaltantes. E muitos não se
importaram. Afinal, não eram traficantes ou assaltantes.
Depois eles
passaram a colocar portões em vias públicas no subúrbio e periferia, instituir
o que chamavam de “condomínios de rua” e cobrar compulsoriamente cotas de
manutenção e segurança. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
editou a súmula 79 autorizando a cobrança da taxa, a pretexto de que – de outro
modo, estar-se-ia diante de enriquecimento sem causa. A repercussão geral de
tal questão foi decidida pelo STF. E não dissemos nada.
Depois
mataram uma juíza para admoestar a sociedade e mostrar que já tudo podiam. Os
oficiais da PM condenados, até hoje, não foram excluídos da corporação. E não
dizemos nada.
Ainda
podemos nos manifestar. Mas, logo começarão a querer nos intimidar ou nos
asfixiar para não mais falarmos. E por não termos dito nada antes, já não
poderemos dizer mais nada. Falemos, enquanto temos voz!
ICHS, Campus da UFRRJ, Seropédica,
14/09/2015.