domingo, 25 de setembro de 2022

A Rainha morreu! Viva o Rei

 

A frase clássica é “O Rei morreu! Viva o Rei!” Isto significa que no poder não há vácuo. A morte de um soberano implica a imediata ocupação do seu lugar por outro. A expressão “Rainha da Inglaterra” para designar o status dos que ostentam pompas, mas não têm poder efetivo, tem sua existência vinculada à Rainha Elizabeth II, recentemente falecida. Quando os chefes militares entreguistas, vinculados aos interesses de empresas transnacionais estadunidenses, pretenderam impedir a posse do vice-presidente João Goulart em 1961, exigiram que fosse implantado no Brasil o sistema parlamentarista, subtraindo os poderes do presidente.

A primeira vez que tal expressão foi registrada é atribuída ao Jango, que teria indagado ao seu interlocutor se o que pretendiam era transformá-lo na “Rainha da Inglaterra”, recentemente entronizada no trono britânico. O golpe foi dado. Jango tomou posse com o regime parlamentarista, mas o povo lhe restituiu os poderes num plebiscito, ainda que em 1º de abril de 1964 um golpe empresarial-militar o tenha destituído do poder e o levado ao exílio onde morreu.

A história da monarquia inglesa nos permite compreender a abrupta mudança de poder das mãos dos nobres para as mãos da burguesia na Idade Moderna. Embora falemos do ideário da Revolução Francesa, como marco da ascensão da burguesia, as ocorrências no Reino Unido não podem ser desprezadas. A Revolução Francesa de 1789 é o final do processo de apropriação do Estado pelas burguesias emergentes, enquanto as ocorrências na Inglaterra, mas não só neste país, são o prenúncio da mudança efetiva do poder das mãos de uma classe para outra.

Desde que o Rei Carlos I foi decapitado em 1649 a história das monarquias na Europa não mais foi a mesma. Daí que a execução do rei francês Luiz XVI, em 1793, foi apenas mais um desdobramento daquele processo de tomada do poder pela classe emergente. O Rei Carlos I, decapitado, se dizia ungido por Deus e antes da execução disse que o povo precisa é de um governo, não de participar do governo.

Em 1688 Jaime II, que também insistia em razões divinas para governar, foi deposto. A Revolução Gloriosa de 1688 levou ao poder o rei Guilherme III, Guilherme de Orange, que aprendera com o filósofo John Locke que o poder se exerce para atender aos interesses da sociedade, em suas expressões hegemônicas, e não para supostamente agradar aos deuses. Quem diz governar em nome de Deus na verdade esconde para quem realmente governa e despreza a fonte da legitimidade de todo o poder que é o povo.

A morte da Rainha Elizabeth II deve ser lamentada, como de qualquer pessoa. Mas ela era mais que uma pessoa. Era símbolo e herdeira de um legado de violências, atrocidades, exploração e racismo. A riqueza britânica, as pedras que incrustaram a coroa da rainha morta e os ornamentos da realeza só estão lá às custas da apropriação das riquezas alheias ao redor do mundo.

O enaltecimento indevido pela mídia da Coroa Britânica foi expressão da concepção colonialista que nos impregna, pois ignorou as atrocidades, crimes hediondos e crimes contra a humanidade cometidos contra os povos do Brasil, África e Ásia. Foram os ingleses os que instituíram o comércio de pessoas capturadas na África do século XVI ao século XIX. A escravidão no Brasil tinha a assinatura da realeza britânica. Os navios negreiros eram britânicos e os portos da costa oeste da ilha eram exportadores de gente escravizada.
Blackpool, Liverpool e outras cidades da região floresceram com o comércio escravagista. Quando a escravidão já não lhes era mais lucrativa os ingleses a proibiram.

O colonialismo inglês e sua pirataria foi sobretudo segregacionista, além de racista e preconceituoso. É preciso lembrar da invasão da Baía de Guanabara na metade do século XIX, afrontando o Imperador D. Pedro II, no caso conhecido como Questão Christie. Na China, é preciso lembrar a Guerra do Ópio, também na metade do século XIX, quando a Inglaterra fez guerra àquele país para impor o comércio do ópio aos chineses, em nome do livre comércio.

Mesmo no século XX as atrocidades britânicas foram gigantes. A Revolta dos Mau-Mau na década de 1950 quando dezenas de milhares de quenianos sofreram torturas, linchamentos, execuções, castramento, estupros e roubo de seus bens, tão somente porque pretendiam a libertação do seu país da colonização e exploração britânica. A glamourização de reis e rainhas expressa o esquecimento de que essas instituições somente existem em razão do sofrimento, da vida e do sangue dos explorados.

Publicado originariamente no jornal O DIA em 25/09/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/09/6491986-joao-batista-damasceno-a-rainha-morreu-viva-o-rei.html


sábado, 10 de setembro de 2022

A IRRACIONALIDADE CONTRA OS PRÓPRIOS INTERESSES

 

Napoleão III foi o primeiro presidente eleito diretamente pelo voto popular na França, na metade do século XIX. Impedido de concorrer à reeleição, deu um golpe e depois se proclamou imperador. Acreditava ser possível governar acima dos interesses dos setores que compõem a sociedade. E claro, sucumbiu!

Apoiado pelo clero e pelas Forças Armadas, Napoleão III descuidou dos interesses concretos da sociedade. Para satisfazer as massas empreendeu políticas assistenciais, gastando mais que o erário permitia. No exterior, pretendeu ampliar o poder da França. É do seu período a expressão América Latina. Foi uma tentativa de se contrapor aos interesses dos Estados Unidos que, na divisão neocolonialista do mundo, que pretendiam a América para os americanos, ou seja, a América do Norte, do Sul e Central deveriam ficar sob a influência estadunidense.

Dentre as atuações imperialistas, como a participação na Guerra da Crimeia de 1854 a 1856 que hoje se reacende em nova versão no conflito da Rússia com a Ucrânia, Napoleão III pretendeu entronizar Ferdinand Maximiliano de Habsburgo como Imperador do México.

As ambições expansionistas da França não surtiram bom resultado. A história registra que Ferdinand Maximiliano foi um golpista a serviço de outro golpista, o próprio Napoleão III. Ferdinand Maximiliano era austríaco da Casa de Habsburgo, era primo de D. Pedro II; seu pai era irmão da Imperatriz Leopoldina, mãe de Dom Pedro II. O amarelo da bandeira brasileira, que muitos se enrolam como se fosse símbolo nativo nacional, é referência à cor daquela casa imperial europeia: o amarelo de Habsburgo, assim como o verde se refere à casa portuguesa de Bragança.

Como os EUA estavam totalmente arrasados em decorrência da Guerra de Secessão, que aboliu a escravatura, Napoleão III acreditou que seria possível restaurar a presença francesa no continente americano se contrapondo aos interesses da Inglaterra. Foi neste cenário que um austríaco foi levado ao México para ser imperador de um povo e de um país que não conhecia. Demagogicamente se esforçou para se aproximar do povo e usava roupas nativas nas cores locais, se enrolava na bandeira do México e aprendeu a falar espanhol. Mas, não tinha condições de atender aos interesses concretos dos diversos grupos sociais: clero, conservadores e liberais.

O clero reivindicava a devolução das terras que se achava dono desde que ocupara o México e ajudara a dizimar os Astecas, apropriando-se dos seus valores materiais e imateriais. Por não poder atender a todas as exigências do clero e tendo que tomar algumas medidas contra os conservadores para conquistar o apoio das massas, Maximiliano perdeu o apoio destes setores. Os liberais sempre o consideraram um usurpador. Sem demora, o imperador austríaco no México, entronizado por Napoleão III, foi colocado diante de um pelotão de fuzilamento.

A primeira referência que se tem registrada dos brasileiros como pessoas cordiais é de Ferdinand Maximiliano. Ele a escreve para o primo D. Pedro II dizendo que mexicanos e brasileiros eram homens cordiais e que os impérios deveriam se apoiar reciprocamente. Veio ao Brasil visitar o primo, mas não contou com o apoio do imperador brasileiro, muito mais preocupado em manter seu trono e as relações com a Inglaterra.

É da troca de correspondência do cônsul brasileiro na França, Ribeiro Couto, com o embaixador do México no Brasil, Alfonso Reyes, que a expressão homem cordial se popularizou. Ribeiro Couto, autor do romance Cabocla, escreveu ao embaixador mexicano no Brasil que não somos nativos, nem africanos, nem ibéricos. Somos um novo povo, resultante de muitos povos e nossa contribuição ao mundo seria o homem cordial.

O tema foi apropriado por Sérgio Buarque de Holanda autor de Raízes do Brasil, gerando debate com Cassiano Ricardo para quem a cordialidade não era bondade, mas comportamento não balizado pela racionalidade. Tanto a bondade quanto o ódio podem ser cordiais. Cordial vem de cordis e expressa comportamentos ditados pelo coração, diversos dos comportamentos racionais decorrentes do uso do cérebro.

Talvez sejamos mesmo cordiais, no sentido empregado por Cassiano Ricardo. Daí a cultura do ódio que se alastra no presente momento. Em fim de campeonato de futebol e em períodos eleitorais a venda de ansiolíticos deve diminuir. O povo se entorpece com a torcida pelo time ou pelo candidato preferido, mesmo que sejam candidatos que preguem o ódio e atuem contra os seus reais interesses. Sem fazer parte do time em campo ou da cartolagem, os torcedores se esgoelam contra os seus próprios interesses atuais e futuros.

Mas analisando o período bonapartista, um filósofo escreveu que os fatos e personagens da história ocorrem duas vezes: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. A história do Imperador Maximiliano foi um episódio trágico da história do México.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 10/09/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/09/6482275-joao-batista-damasceno-a-irracionalidade-contra-os-proprios-interesses.html

 

PADRE CÍCERO E A POLÍTICA

A Grande Seca do Nordeste de 1877 a 1879 foi o mais tenebroso fenômeno de seca da história do Brasil. Matou cerca de 500 mil pessoas, provocou fome e migração. A República ao ser proclamada em 1889 não buscou solucionar nem o problema das pessoas que haviam sido libertadas da escravidão, nem dos retirantes que migraram para a Corte.

A seca de 1915 igualmente foi terrível e inspirou obras como o livro ‘O Quinze’, de Rachel de Queiroz. Trata-se de “um livro com muita coisa escrita” sobre aquele episódio. Para evitar que os “flagelados da seca” chegassem às cidades em busca de comida, a política oficial foi a criação de campos de concentração para aprisionamento dos retirantes em pontos espalhados estrategicamente nas rotas de migração. A indiferença com o sofrimento do povo não foi inventada durante a pandemia da covid-19.

Padre Cícero foi ordenado padre em 1870, mudou-se para o povoado de Juazeiro pertencente ao Crato, e passou a ensinar latim no Colégio Padre Ibiapina. Padre Ibiapina é tido como a inspiração de Padre Cícero e da Teologia da Libertação. A opção preferencial pelos pobres somente mais tarde foi instituída pela Igreja, no Concílio Vaticano II.

Independentemente da dimensão religiosa do trabalho de Padre Cícero, ele foi uma pessoa que apoiou os miseráveis que passavam com suas trouxas de roupas e pertences fugindo da fome e da miséria que os assolavam. Padre Cícero exercitou a opção preferencial pelos pobres e os visitava, ouvia e aconselhava. Mas seu trabalho não se limitava a tais apoios imateriais. Sua obra consistiu também em prover moradia digna, organizar o povoado e contribuir para o trabalho produtivo.

A hierarquia eclesiástica se indispôs com Padre Cícero e ele foi excomungado. Somente em 2001 foi aberta no Vaticano a possibilidade de sua reabilitação e em 2015 recebeu perdão. Semana passada o Papa Francisco retirou os óbices para que seja iniciado seu processo de beatificação e canonização. Padre Cícero teve envolvimento direto na política partidária no Ceará e chegou a liderar os coronéis numa guerra contra o governador. Quando da emancipação de Juazeiro em 1911, foi o seu primeiro prefeito. Mais tarde foi eleito deputado federal, mas não chegou a assumir o mandato. O fato conhecido como ‘Pacto dos Coronéis’ é exemplificativo do coronelismo brasileiro na Primeira República. Padre Cícero morreu em 1934.

Quando na década de 1910 do século XX o Brasil iniciou as pesquisas para exploração mineral. O médico e jornalista baiano Floro Bartolomeu da Costa se aproximou de Padre Cícero para explorar as terras sob domínio do padre. Floro Bartolomeu pretendia garimpar cobre, mas à sombra da consagração popular de Padre Cícero acabou se tornando líder político.

Tal como ocorre com toda organização de pessoas humildes, a cidade de Juazeiro era estigmatizada pelo poder federal. A República, proclamada na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, depois de um golpe militar, não fora instituída para o povo. Mas para os fazendeiros apoiados pelo Exército. A República, proclamada em 1889, foi uma vingança dos fazendeiros contra a Abolição da Escravatura, no ano anterior.

Floro Bartolomeu se aproveitava do prestígio do Padre Cícero, mas combatia o preconceito contra os sertanejos junto à imprensa e instituições do poder federal, para quem Juazeiro seria um antro de cangaço e fanatismo. O episódio de Canudos, de 1896 e 1897, era constantemente relembrado e fundamentava discursos para novo massacre.

Toda instituição tem os seus ícones. Aqueles que lhe dão riqueza, poder e honra são tratados como filhos diletos. E aqueles que desafiam os seus cânones são perseguidos, humilhados e até eliminados. Na Igreja não poderia ser diferente. Por isso se diz que há a ‘Igreja dos Padres’ com seus ritos, luxos e honrarias e a “Igreja do Povo’ com suas crendices e manifestações simplórias. As instituições resistem ao que é popular.

Mas quando a cultura popular se sobrepõe as instituições buscam domesticá-la, trazê-la para dentro de si, culpar os dirigentes de outras épocas e lhes atribuir a responsabilização pelo que agora chamam legítimo. Lampião, líder do cangaço, foi orientado a perseguir a Coluna Tenentista de Luiz Carlos Prestes. Mas foi demovido por Padre Cícero. O Exército também tenta domesticar a memória de Prestes, mas encontra coerente oposição de sua filha, Anita Leocádia Prestes, filha de Olga Benário Prestes.

Embora Floro Bartolomeu tenha aproveitado o prestígio de Padre Cícero em suas campanhas eleitorais, não foi o padre quem se aproveitou e enriqueceu com a fé do povo. Tampouco lhes retirou a comida da boca em troca de banquete divino. Inspirado em Padre Ibiapina, Padre Cícero tinha uma teologia fundada na opção preferencial pelos pobres. Não era uma teologia da extorsão, nem da prosperidade. Mas do amparo e cuidado.

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 27/08/2022, pag. 14. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2022/08/6472600-joao-batista-damasceno-padre-cicero-e-a-politica.html