sábado, 16 de novembro de 2024

Execução de Marielle: a conta não fecha

 

Marielle tomou posse como vereadora no dia 01/01/2017. A intervenção federal na área de segurança pública no estado do Rio de Janeiro foi decretada em 16/02/2018. Marielle foi executada no dia 14/03/2018, no 27º dia após a decretação.

Intervenção federal é um mecanismo de exceção presente na Constituição da República que permite a suspensão temporária da autonomia de um estado federado para que o Governo Federal assuma o governo estadual, no todo em parte dele, a fim de resolver questão que comprometa gravemente a ordem, quando este demonstre incapacidade de resolver. É medida de exceção, tal como o estado de sítio e o estado de defesa. O decreto de intervenção deve determinar a duração, a forma de execução e nomeação de um interventor. Entra em vigor quando o decreto presidencial é aprovado pelo Congresso Nacional.

É estranho que uma intervenção aprovada no final de fevereiro de 2018, visando a solucionar o problema da segurança pública no estado do Rio de Janeiro, tenha sido desafiada pelo assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson, sem que o interventor, general Braga Netto, sequer tenha recebido os familiares das vítimas. Mais estranho ainda é se acreditar que Marielle tenha sido morta por questão imobiliária, assunto do qual jamais se ocupou com veemência, e que o “matador de aluguel” tenha feito o serviço fiado.

Após a decretação da intervenção, Marielle assim se pronunciou nas redes sociais: “Sabe o nome cotado para Sec. Seg? Richard Nunes? A MARÉ CONHECE! Comandou a ocupação das Forças Armadas na Maré, entre dez de 2014 e fev de 2015, mês, de barbaridades. Uma delas quando os soldados atiraram contra o carro q estava Vitor Santiago, hj sem uma perna e paraplégico”.

Da Tribuna da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro Marielle fez o seguinte pronunciamento: “Eu vivi na Maré a intervenção militar por quatorze meses. Os favelados e faveladas sabem exatamente o que é o barulho do tanque na sua porta. O fundamental é que ecoa nas redes sociais, ecoa em outros espaços e fica esse burburinho. Onde é que vai ser realmente a intervenção? Quem sabe aonde a ponta do fuzil vai ser apontada? Aí me desculpem, não é o que vocês chamam de partido de esquerda, fazendo de maneira pejorativa referência ao PSOL. Sim! O PSOL é contra. Mas a Defensoria Pública é contra, o Ministério Público é contra, vários órgãos... Por que afinal de contas, quem vai vigiar? A quem vai prestar contas, por exemplo, o tão ilibado Exército Brasileiro com relação às suas intervenções militares nas favelas? Porque na Maré durou mais de 14 meses e custou mais de seiscentos milhões. Sem contar a vida das pessoas. O Matheus, hoje a família do Vitor com ele na cadeira de rodas, as mortes que existiram... A quem é prestado conta? A que custo é esse debate da intervenção?”.

E leu nota com o seguinte teor: “O comandante do Exército, em face da gravidade, entende que a solução exigirá comprometimento”. Comentando disse: “Até aí tudo bem! Comprometimento temos de várias formas, de cada um com seu processo ideológico, a sua responsabilidade”.

Em continuidade da leitura prosseguiu: “...sinergia, sacrifício dos poderes constitucionais”. E comentou: “Eu quero saber se os legisladores dessa casa e do estado do Rio de Janeiro, por exemplo, os deputados estaduais estão tranquilos com a retirada de direitos? Que processo democrático é esse?” E concluiu a leitura: “...sacrifício dos poderes constitucionais, das instituições e eventualmente da população”.

Analisando a nota lida disse: “Ora, eu quero saber quem vigia os vigias? Eu quero saber qual é a responsabilidade dos legisladores, que não estão atentando para a gravidade do momento em que se fala da intervenção federal, da intervenção militar. Mas a gente não passou agora por um problema que deveria ter sido uma intervenção direta, nessa situação na cidade do Rio de Janeiro, com a última chuva da quinta-feira? A situação de calamidade, onde se apresenta que no último ano, por exemplo, não ocorreu a prevenção do que deveria ser feito. Eu prefiro ficar com o processo democrático no qual as nossas diferenças estão colocadas, mas o processo de verdade e coerência se mantém, do que uma autocracia em um lugar que será destinado e orientado por outro governador que não o governador eleito”.

O golpe que se ensaiou no Brasil no dia da diplomação do presidente Lula, em 12 de dezembro de 2022 ou sua forma tentada no dia 08 de janeiro de 2023, há muito estava sendo costurado. A prisão do presidente Lula, em 2018, com fundamentos políticos explicitados pelo The Intercept Brasil, a intervenção no Rio de Janeiro e o atentado à Marielle faziam parte de um plano para a eventualidade de não se conseguir emplacar projeto de poder contrário à democracia e aos direitos do mundo do trabalho.

A mídia, em 1981, no caso da bomba do Riocentro, desvelou o atentado à abertura democrática, mostrando que militares do Exército colocavam bombas para alarmar a população e justificar o fechamento do regime. Ao invés da clareza com que se pronunciava Marielle, que fazia cair as máscaras e promovia o fortalecimento das instituições democráticas, foi feita opção pelas versões oficiais, difundidas por quem estava comprometido com o processo.

Publicado originariamente no dia 16/11/2024, pag. 12. Link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/11/6952703-joao-batista-damasceno-execucao-de-marielle-a-conta-nao-fecha.html


sexta-feira, 1 de novembro de 2024

De Glauber a Silvio Tendler: arte e resistência

 

Em visita ao cineasta Silvio Tendler entabulamos uma conversa sobre o período da transição da ditadura empresarial-militar para a democratização do país, sobre a eleição a de 1982, que pela primeira vez elegia governadores desde 1965, e sobre a eleição de 1986, que elegeu a Assembleia Nacional Constituinte da qual decorreu a Constituição de 1988. Em 1984 Silvio lançara o documentário ‘Jango’, sobre o Governo João Goulart, vice-presidente do Brasil nos governos JK e Jânio Quadros e presidente de 1961 a 1964. O filme ‘Jango’ tinha o sugestivo slogan: "Como, quando e porque se derruba um presidente" e levou mais de meio milhão de espectadores às salas de cinema, tornando-se o sexto documentário de maior bilheteria da história do cinema brasileiro. O quarto filme de maior bilheteria também foi dirigido pelo Sílvio e foi ‘Anos JK”, que levou 800 mil pessoas aos cinemas.

Rememorando o período da ditadura empresarial-militar, falamos da censura, das atrocidades praticadas contra os que ousavam pensar um Brasil soberano, sobre Glauber Rocha e Darcy Ribeiro. Inadvertidamente falei do discurso de Darcy Ribeiro, que conheci, mas com quem não convivi, diante do caixão do emblemático cineasta Glauber Rocha, em agosto de 1981. Trata-se de um dos discursos mais impactantes que já ouvi. Darcy, chorando, se despediu assim do amigo:

“...sua breve vida, sem pele, com a carne exposta, capaz de gozo é certo, não é Glauber? Mas mais capaz de dor, da nossa dor. Uma vez, eu não vou esquecer nunca, Glauber passou a manhã abraçado comigo chorando, chorando, chorando compulsivamente. Eu custei a entender. Ninguém entendia que Glauber chorava a dor que nós devíamos chorar, a dor de todos os brasileiros. O Glauber chorava as crianças com fome, o Glauber chorava este país que não deu certo, o Glauber chorava a brutalidade, o Glauber chorava a estupidez, a mediocridade, a tortura que ele não suportava... Chorava, chorava, chorava! Os símbolos de Glauber são isso. É um lamento, é um grito, é um berro. Essa é a herança que fica de Glauber, fica de Glauber pra nós a herança de sua indignação. Ele foi o mais indignado de nós. Indignado com o mundo tal qual é, assim. Indignado, porque mais que nós, também Glauber podia ver o mundo que podia ser! Que vai ser Glauber! Que há de ser! Glauber viveu entre a esperança e o desespero, como um pêndulo louco”.

Silvio se voltou para mim e exclamou: “Fui eu quem filmou isso!” Claro que foi. Está no seu documentário ‘Glauber, o filme: Labirinto do Brasil’, que faz parte de um conjunto denominado ‘Quatro Baianos Porretas’, sobre Castro Alves, Carlos Marighella, Glauber Rocha e Milton Santos. Todos – tal como Sílvio Tendler - preocupados com o Brasil, com o povo brasileiro, com as liberdades e com a fome que sempre ameaçou os lares dos mais pobres.

O último filme que o Silvio Tendler produziu e dirigiu foi o documentário exibido durante a mostra de cinema do Rio de Janeiro, no mês passado, sobre a trajetória de Leonel Brizola. O documentário não esgota as facetas daquele líder popular e de seus projetos. Cada assunto abordado talvez merecesse um filme, suficiente para transformar os muitos feitos de Brizola numa série.

O documentário intitulado ‘Brizola, Anotações Para Uma História’ é uma narrativa do seu nascimento, em 1922, até sua morte, em 2004, com suas muitas causas abraçadas e lutas enfrentadas. Nas anotações para a história consta a fábrica de escolas, denominadas ‘brizoletas’, custeadas por bônus adquiridos pela população. De origem pobre e órfão, Brizola sabia a importância da educação para interromper o ciclo de pobreza ou empobrecimento. De tudo o que o Brizola fez tem um pouco no documentário. Um momento épico é aquele no qual os ‘gorilas fardados’ tentaram impedir a posse de Jango em 1961. Brizola empunhou uma metralhadora, formou a Rede da Legalidade conclamando o povo à resistência, venceu e empossou Jango na presidência. Assim, impediu que os militares entreguistas consumassem o golpe que tramavam desde quando levaram Getúlio Vargas ao suicídio em agosto de 1954 e o adiou para 1º de abril de 1964. Sílvio tudo documentou.

Inexiste “se” na história, pois esta é o que efetivamente ocorreu. Mas se os militares que levaram Vargas ao suicídio, que tentaram impedir a posse de JK, que por duas vezes tentaram golpe contra este e que tentaram impedir a posse de Jango tivessem sido punidos e excluídos das Forças Armadas e não anistiados, teríamos história diferente. O golpe empresarial-militar naturalizou a tortura nos quartéis, a violência e a criminalidade organizada em forma de esquadrões da morte, grupos de extermínio e justiceiros, legando-nos as atuais milícias. Patrícia Acioli e Marielle Franco são parte do que faz o terrorismo de Estado. Os que se opõem à barbárie correm risco de eliminação física ou eliminação política, tal como o risco que corre o outro Glauber indignado: o deputado Glauber Braga, sujeito à cassação por seus pares que com ele se incompatibilizam. A democracia é o poder do povo; é a razão da maioria, com respeito à minoria. Quando a maioria circunstancial tenta eliminar a minoria que dela diverge não é democracia; é fascismo.

 

Publicado originariamente no jornal O DIA, em 02/11/2024, pag. 12. Disponível no link: https://odia.ig.com.br/opiniao/2024/11/6945474-joao-batista-damasceno-de-glauber-a-silvio-tendler-arte-e-resistencia.html